quarta-feira, 10 de Março de 2010
As artes maquiavélicas
Texto de João Boavida, na sequência de um outro, intitulado As fracturas morais.
Sobre as “fracturas morais” é bom não concluir logo que elas resultam das perfídias modernas, embora também seja. Nós até podemos dizer que a antiga moralidade assentava em bases claras, e que a nova é mais confusa. É assim, mas só em parte. O mesmo se pode dizer de outras “variáveis” do nosso tempo. A verdade, por exemplo. Poderemos pensar que ela era um conceito simples e claro e que facilmente sabíamos quem falava verdade ou quem mentia, quem merecia confiança e quem não era de fiar. Era deste modo, pelo menos, na infância, quando se tratava de saber quem ratara no pudim; o mundo parecia então dividir-se ao meio, quando apanhados nalguma, caindo-nos a culpa em cima com todo o peso. Depois, com o crescer da idade e do conhecimento as coisas complicaram-se.
O nosso grande problema é que quase tudo hoje funciona com base na opinião, que confundimos com a certeza, e a nossa verdade com a verdade mesma e toda, nua e crua. E, pior ainda, misturamos "direito à opinião" com opinião sem direito, isto é, ignorante, criamos uma prodigiosa nuvem de perdigotos morais, meias verdades, meias mentiras, meias tintas, invencionices, malandrices, tolices, que se cruzam, chocam, sobrepõem e substituem constantemente tornando quase impossível encontrar a verdade.
Entretanto, para complicar, desde 1532 que Nicolau Maquiavel ensina os políticos a serem modernos. Não veio ensinar o padre-nosso aos curas, porque estes já o sabiam, mas veio dar-lhes uma legitimidade que passa por cima da moral, criando, digamos, uma nova dimensão para a verdade. E é assim que temos outra vez Sócrates em cena. E uma multidão com ele, de cá e de lá, por todos os lados, porque a verdade tem uma razão política à parte. Ou a política tem uma razão moral que a moral não entende, mas que é muito forte, e sempre foi. O pior, porém, é que, com a liberdade e a massificação, aquilo que na Renascença era arte para príncipes passou a ser usado por muitos outros poderes, pequenos e grandes. Por alguma razão se diz que o poder corrompe. Talvez, mas é verdade para a política em sentido restrito e em sentido lato. Mais uma vez Portugal é um bom teatro com profissionais e amadores de todas as escolas e companhias; em suma, demasiados actores a fazer o papel do político e a usar, sem limites, as artes maquiavélicas.