Sigilo fiscal e golpe de Estado
Diante do ocorrido na Receita Federal, crime que o governo busca esconder, indico um artigo meu publicado em periódico universitário: “Reflexões sobre impostos e Raison d’État” (Revista de Economia Mackenzie, Vol. 2, número 2, 2004, texto eletrônico em http://www3.mackenzie.br/editora/index.php/rem/article/view/766). Ali aponto o saber que obtiveram os poderes estatais de suas respectivas sociedades. A transparência dos governados aumentou com o avanço da máquina fiscal e da bisbilhotice política exercida contra a cidadania. Espionagem, escuta, delação, toda uma panóplia de meios a serviço do poder conduz ao abuso fiscal e político do Estado. A sociedade revela-se diuturnamente aos olhos e ouvidos dos governantes.
Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. No mundo moderno “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais ‘fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas’. O segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno”. (J-P. Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in L. Christian: Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, p. 137). Nas democracias históricas - inglesa do século 17, a norte-americana e a francesa no século 18 - o segredo do Estado foi enfraquecido pelas noções de “accountability” e transparência. Passada a era das revoluções (E. Hobsbawn) o poder de Estado apresenta agudos problemas. Demagogos prometem transparência ao povo, mas precisam manipular o segredo estatal. Eles são eleitos pelo voto secreto e, nos palácios, usam o segre do para domar as massas que os sufragaram.
Segundo N. Bobbio: “O governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente à urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (…) O poder oculto não transforma a democracia, a perverte. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina”. (“Il potere in maschera.” In L´ Utopia capovolta. Torino, La Stampa, 1990.p. 62).
O Estado, na democracia, deve respeitar o sigilo dos governados e abrir ao público a maior parte de seus procedimentos. No poder ditatorial ou totalitário ocorre o inverso. Se um governo segue o segundo caminho, ele nega aos dirigidos as informações necessárias para a proteção da vida biológica, social, econômica. Quando funcionários do Estado, ocultos pelo segredo, violam covardemente o sigilo das pessoas ao arrepio da Constituição, cometem um pequeno golpe de Estado. Pelo ocorrido na Receita Federal, o golpismo possui alcance macrológico. O partido no poder (e militância mais obtusa e fanática) se especializou em denunciar supostos golpes alheios. Mas diante da evidência - a ilegalidade domina alguns integrantes da Receita - ele se cala e acusa as vítimas como fossem elas as causadoras do crime.
Aos que, para garantir o poder, violam o sigilo fiscal alheio, o sociólogo Simmel adverte: “A preservação do segredo é instável, as tentações de trair são múltiplas; a estrada que vai da discrição à indiscrição é em tantos casos tão contínua, que a fé incondicional na discrição envolve uma incomparável preponderância do fator subjetivo”. E mais: “o segredo é cercado pela possibilidade e tentação de trair; e o perigo externo de ser descoberto é entretecido com um perigo interno, que se parece com o fascínio de um abismo”. Nenhum poder é eterno: ele sofre fraturas, concorrência pelo butim. É o que assistimos no Brasil. O presidente da república e os funcionários da Receita devem saber que não dirigem ou servem aos seus correligionários, mas ao povo inteiro, incluindo a oposição. O resto é cinismo e golpe de Estado.