Um remédio contra a tagarelice CÁSSIO STARLING CARLOS EDITOR-ADJUNTO DO MAIS! Praticamente em silêncio, Roberto Romano, professor de filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) preparou e está lançando um minucioso ensaio sobre o filósofo iluminista Denis Diderot (1713-1784). Em "Silêncio e Ruído - A Sátira em Diderot", Romano investiga, a partir de "O Sobrinho de Rameau", de Diderot, o modo de funcionamento da sátira e seus vínculos com a tradição clássica, sobretudo em Plutarco e Luciano (leia crítica nesta página). Para Romano, a sátira serve para indicar nossos limites. Ela é um purgatório contra os excessos do discurso. Não se trata ainda de criticar o logocentrismo, mas de vitimar a logorréia. A sátira de Diderot permanece válida em tempos em que a garrulice e a adulação se tornaram vícios coletivos. Nesta entrevista à Folha, Roberto Romano fala de seu trabalho e critica o subjetivismo que tomou conta do discurso intelectual. * Folha - Que razões levaram o sr. a investigar a obra de Diderot? Roberto Romano - Primeiro, para desmentir os clichês em torno da obra deste filósofo, considerado vulgarmente um pensador eclético, sem rigor, superficial, ligeiro. Segundo, para entrar numa área, a estética, considerada um lugar menor dentro da filosofia "séria". E dentro desta área menor quis pegar uma questão ainda mais desprezada, que é a da sátira. A partir dali, tento mostrar como, via sátira, você chega a certos pontos essenciais tanto na perspectiva epistemológica quanto na política. Folha - Que lugar ocupa a sátira na filosofia contemporânea? Romano - Hoje temos, por um lado, pensadores da Escola de Frankfurt, como Habermas, tentando encontrar uma ética do discurso, da vida em comum. Por outro, o positivismo lógico, realizando um trabalho seriíssimo de limpeza da linguagem, tendo em vista a questão da ciência. Ora, o que faz Diderot com a sátira ao longo de seus trabalhos? Discute a questão da comunicabilidade numa perspectiva paralela à de Rousseau na mesma época. Ambos concordam que a civilização chegou a uma situação de ruído, de incomunicabilidade, na qual o que se ouve é apenas um amontoado de sujeitos falando sozinhos. A diferença é que para Rousseau este é um ponto terminal, de opacidade completa dos sentimentos. No caso de Diderot, é o momento -propriamente poético da filosofia e da linguagem- de gerar fórmulas novas, que é o que ele tenta fazer. Folha - Como a sátira funciona nas situações de incomunicabilidade por excesso de ruído? Romano - A sátira, junto com o ceticismo, será sempre uma espécie de alavanca do pensamento, ela vai impedir que ele descanse, que seja invalidado pelo palavrório. Folha - Na sua opinião, a filosofia está contaminada pelo palavrório? Romano - Esta espécie de papinha que hoje se produz sob a denominação de desconstrucionismo, de pensamento pós-moderno, não responde a nada que seja profundo. Houve uma dessubstancialização do pensamento, uma desmaterialização, para utilizar uma expressão em voga, e nada foi colocado em seu lugar. Hegel, na "Estética", interpreta a sátira como um momento de decadência da "polis", um momento de severidade, com a qual a sátira vai se identificar. De certo modo, o satírico é um censor. Na verdade, tal como se vê em Plutarco e Luciano, a tradição satírica, junto com a censura política, quer mostrar o quanto é ridículo o abuso da palavra, sobretudo o abuso pedante da palavra. Diante do ridículo que afasta a linguagem do que é substancial, a sátira funciona como purgatório. Folha - Quais são os sinais de excesso da linguagem hoje? Romano - Vivemos uma inflação de palavras que não haverá Plano Real capaz de conter. Pode-se dar o exemplo de uma palavra que justifica planos econômicos, serve como modelo explicativo, como palavra de ordem etc.: globalização. É um fetiche. Ela aparece hoje como um novo sistema, como se nunca alguém tivesse pensado em circulação de mercadorias, de idéias etc. Essa inflação do discurso está a exigir uma espécie de gargalhada com a sátira. Folha - Quem estaria apto a provocar esta risada? Romano - Eu não sou satírico, não tenho essa capacidade poética, sou apenas um analista. Mas em alguns autores você encontra este tipo de remédio. Neste século, o encontramos em Joyce, Musil e Günter Grass, por exemplo. Folha - Numa passagem do livro, o sr. critica, sem citar nomes, o que chama de "bajuladores das confrarias". A quem o sr. se refere? Romano - O que acontece hoje é um enquistamento ao redor de pessoas e não mais de idéias. Nós chegamos a uma espécie de intersubjetivismo muito grave, no qual as questões do pensamento não são propriamente colocadas. Eu me espanto com o que está ocorrendo no debate filosófico no Brasil. Não é ranhetice, mas alguma coisa está acontecendo quando as pessoas, em vez de pensarem, falam sobre si mesmas. Eu tenho algum interesse sobre a subjetividade deste ou daquele filósofo? O último livro de Paulo Arantes, por exemplo, é de uma tristeza global. Alguém que escreveu um texto magnífico sobre Hegel, hoje publica um livro de diálogos no qual se transcreve até uma ida ao banheiro. O mesmo acontece com Giannotti e Ruy Fausto. Que interesse tem para o público o "modus operandi" de Giannotti? Falar de nós mesmos não interessa a ninguém. O culto à subjetividade chegou a um ponto perigoso, a partir do qual se está abrindo o caminho para o autoritarismo. Fomos tomados pela embriaguez da confissão sem sermos Santo Agostinho ou Rousseau. 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Um milagre, papa Francisco!
Roberto Romano
Novalis, poeta e teórico político
conservador do século 19, afirma que a Igreja foi o modelo de todas as
sociedades. Segundo ele, as pessoas comuns encontravam na vida católica
"proteção, respeito, escuta". De fato, em milênios ela inspirou povos e
governantes, nem sempre de modo esplêndido (a Inquisição, no setor
judiciário). Não existe poder moderno sem que os hierarcas tenham
indicado as vias e as técnicas de comando. Max Weber adianta que os
processos burocráticos de governo nasceram na Cúria, com a centralização
do mando pelo papa. Carl Schmitt, discípulo conservador de Weber,
mostra que a catolicidade instaura a hegemonia do mando executivo,
portador da suprema decisão (plenitudo potestatis papae) acima dos
bispos. A máquina jurídica e religiosa, construída racionalmente, venceu
as doutrinas conciliaristas que davam aos pastores reunidos peso maior
do que ao romano pontífice.
A tenaz oposição ao absolutismo papal, sobretudo após Lutero,
inspirou as lutas contra o mando irrestrito dos reis e gerou as teses
sobre a monarquia limitada. Exemplo dessa campanha temos na Franco
Gália, tratado calvinista de François Hotman (1574). O parlamentarismo
sempre foi avesso ao Executivo, combatendo-o na figura católica ou na
tese laica do direito divino dos reis. O cardeal Caetano (Auctoritas
Papae et Concilii sive Ecclesiae Comparata, 1511) exemplificara a
dificuldade de conduzir os cristãos ao acordo entre papa (iudex
ordinarium omnes, juiz comum de todos) e bispos. Um defensor da Igreja
contra o Estado civil, o cardeal Bellarmino (ele causou longas
digressões de Hobbes no Leviatã) pondera que "a monarquia temperada é
melhor do que a pura" (De Summo Pontifice). O poder petrino sobre as
igrejas é reforçado em 1870, no dogma da infalibilidade. Weber nele
enxerga a base da organização curial, cujos diplomatas modelaram o
acordo entre a Santa Sé e Mussolini, mais a desastrosa Concordata de
Império com Hitler.
O absolutismo do papa sofre quebras no Vaticano II, mas é
refeito pela mente cálida de João Paulo II e mostra sua fragilidade sob
Bento XVI, o que possibilita a eleição de Bergoglio.
Marco Politi, respeitado na academia e na imprensa, acaba de
publicar um estudo sobre os desafios do novo líder (Francesco tra i Lupi
- Il Segreto di una Rivoluzione). Ele expõe o pontificado de Bento XVI e
narra a conduta de Bergoglio à frente da Igreja argentina. No argentino
ressalta o trabalho do bispo com seus padres e leigos. Após sumarizar
os eventos que abalaram o trono pontifício, Politi descreve com saber
maquiavélico o que chama de "golpe de Estado" cometido por Ratzinger.
Maquiavélico: poucos cientistas políticos perceberam, com semelhante
acume, os atos de um papa contra a Cúria tingida pela corrupção, sede de
poder, baixa cortesania. Ao perder o controle, Bento XVI, no sigilo e
com frio cálculo do tempo (O Príncipe teoriza esses elementos de modo
ímpar), aplica o golpe perfeito. Se o Vaticano está dividido entre
potentados da púrpura, terminemos as escaramuças entre eles e o trono.
Com a renúncia, todos devem entregar os cargos, o que permite ao novo
líder administrar a guerra intestina.
Após a descrição do golpe papal, digna de Gabriel Naudé, Marco
Politi analisa a rede das Igrejas nacionais e seus líderes no conclave.
Ele expõe o desejo dos hierarcas de atenuar o centralismo católico.
Capítulo importante é o quinto, O fim da Igreja imperial. A escolha de
Francisco significa a retomada do colégio eclesiástico, porque não é
mais possível admitir que os "bispos sejam meros prefeitos, subordinados
a um pontífice monarca". Politi mostra o projeto, assumido por
Bergoglio, de refazer o programa conciliar, estabelecendo comissões de
consulta às Igrejas locais na busca de apurar temas da fé, da
disciplina, costumes. Questionários foram distribuídos pelo mundo
católico para ouvir os fiéis e sua hierarquia. O autor exagera a
novidade de tais procedimentos.
Em texto publicado na Revista de Economia Mackenzie (Reflexões
sobre Impostos e Raison d'État, 2003), exponho o caso dos questionários
presentes no Livro do Estado de Almas, feito sob a égide de Carlos
Borromeu (1538-1584). Neles a Igreja tem um guia para saber a condição
econômica, higiênica, social e religiosa dos católicos. As fichas são
bem elaboradas e, diz um especialista de hoje, "só falta o computador"
para sintetizar rapidamente os resultados. Depois, a técnica dos
questionários serve aos soberanos civis como instrumento de sondagem
para fins de impostos, controle e segurança, etc.
Mesmo com a crise do Dictatus Papae, mudar o sentido do mando é
difícil. Como observa Politi, "a ideia de uma hierarquia onipotente, que
nunca erra, está profundamente enraizada na autocompreensão da Igreja
Católica. Pio XII, no exercício do seu poder, gostava de enunciar: 'Não
quero colaboradores, quero executores'". É a dura realidade que analiso
em minha tese de doutoramento, Brasil, Igreja contra Estado (1979),
odiada pela direita e pela esquerda eclesiásticas. Ainda em 2014 haverá
um Sínodo com agenda precisa e, nele, emissários das conferências
episcopais, "vindos de vários continentes, poderão exprimir-se com
clareza sobre pontos específicos".
Francisco deve responder, com atos e doutrina, ao repto do
conservador De Maistre: "Se não há centro nem governo comum, não pode
existir unidade nem, por conseguinte, Igreja universal (ou católica),
pois nenhuma igreja particular tem o meio constitucional de saber se ela
está em comunhão de fé com as outras"(Du Pape). O pastoreio deve manter
a universalidade da Igreja, protegendo as nações e os indivíduos. A
Igreja é modelo de toda sociedade.
Caso Francisco seja bem-sucedido, talvez Brasília, demoníaca
cúria sem Deus nem lei, bastião do absolutismo centralizador, escute os
povos que habitam suas terras. Então, poderemos falar em democracia e
federalismo. Por tal milagre, Francisco mereceria a glória dos
altares...
*Roberto Romano é professor da Universidade Estadual de Campinas, é autor de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva).