Formuladores do futuro
Nossos partidos progressistas venderam sonhos belíssimos, mas não entregaram a mercadoria, diz professor de ética
Roberto Romano*
Karl
Marx, pensador importante mesmo para quem o combate, expõe um saber
atualíssimo sobre a vida política. É célebre o seu enunciado, segundo o
qual os teóricos “apenas interpretaram o mundo de maneiras diversas,
mas trata-de transformá-lo” (11a Tese contra Feuerbach). O termo
germânico para indicar a mudança do mundo é “torná-lo outro”(verändern).Não
se trata de aplicar um cosmético para encobrir as carnes senís da
sociedade, mas de alterar a essência das relações humanas.
Marx
zomba da Alemanha que procura ser moderna após Bismarck, mas guarda a
forma obsoleta do Antigo Regime. Ela se reduz ao papel de "comediante,
numa ordem mundial cujos heróis reais morreram" . Impossível retroagir a
política ao pretérito, pensa o jovem escritor, porque o progresso é
atraído pelo futuro. A frase vem das "Lições" hegelianas sobre estética e
filosofia da história. Ao falar sobre a decadência de Roma, Hegel expõe
a passagem da república ao império. César "abre um novo teatro e cria a
cena que será o núcleo da história universal". A república é apenas uma
casca, mas Brutus imagina que o assassinato do imperador trará os bons
velhos tempos. Hegel considera um "erro espantoso" a atitude do
tiranicida e assevera: "a revolução política geralmente é sancionada
pela opinião dos homens quando ela se renova" . E foi de tal modo que
Napoleão caiu duas vezes e os Bourbons foram duas vezes expulsos do
trono.
O
pano de fundo suposto por Hegel é a Revolução Francesa. Fingir que 1789
não existiu é para ele um erro tão grave quanto o de Brutus. Inimigo
da livre imprensa e da representação parlamentar, o Estado alemão vai
contra a história, deixa o terreno da tragédia e se torna o "palhaço da
cena mundial”. E surge na pena de Marx a frase batida sobre o teatro:
"Hegel nota em algum lugar que todos os grandes eventos e personagens
históricos se repetem, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de
acrescentar: a primeira vez enquanto tragédia, a segunda, enquanto
farsa" .
O
anseio pela mudança absoluta do mundo, assumida por Marx e seguidores,
conduziu ao futuro, ridículo e trágico, que marcou o destino do poder
soviético. Segundo Roman Jakobson, que analisou o regime instaurado após
os movimentos de 1917, a mudança política na URSS foi ilusória.
"Lançamo-nos em direção ao futuro com excessivo ímpeto e avidez” diz
ele, “para salvaguardar algum passado. O laço dos tempos rompeu-se.
Vivemos demais no futuro (…) perdemos o sentido do presente.Tínhamos
apenas os encantadores cantos que nos falavam do futuro, e, de repente,
esses cantos, saídos da dinâmica do presente, transformaram-se em fato
de história literária" . Outro "fato" literário: o massacre de poetas,
intelectuais, pesquisadores, acadêmicos. Maiakóvski diz tudo: "O
massacre terminara… Sós, acima do Kremlin, os farrapos do poeta
flamejavam ao vento como uma bandeira vermelha" . ( R. Jakobson e K.
Pomorska, Diálogos, Cultrix Ed.).
As
mudanças trouxeram Zhdanov que delatou Anna Akhmatova, Prokofiev,
Shostakovich, Einsenstein, o filósofo Aleksandrov e a massa dos que
ousavam dizer não aos burocratas. Surge a máscara do "nós", que
identifica os indivíduos ao poder do Estado. Nos processos de Moscou os
promotores exigiam que os réus inocentes declarassem culpas imaginárias
para não desmentir o "seu” Partido. Depois vem a máscara do traidor.
Quem critica os líderes quebra o comando, enfraquece a luta, boicota a
mudança histórica. Os auxiliares do Partido, com a polícia, são os
intelectuais. Eles deixam "exibir, atravessando-os, o grande saber do
Partido, e mostram-se cada um como o seu reflexo; como bem diz
Soljenitsin, este saber os atravessa como se eles fossem um ser de
cristal, eles são belos pensamentos" (Lefort. Un homme en trop).
Unanimidade: baldes de água eram postos no fundo das salas onde
discursava Stalin, para aliviar as mãos inchadas dos bajuladores. É
fato, não anedota.
A
procura de mudanças, portanto, nem sempre pode ser vista com
entusiasmo. Ela exige prudência porque, quase é regra, o futuro entrega
pesadelos em resposta aos sonhos de progresso social, político,
econômico. Falamos em demasia, agora, em “nova política”, “formas
diferentes de governar”, “mudanças na sociedade e no Estado”, e assim
por diante. Para que algo novo apareça é necessário que as bases da
antiga ordem sejam superadas. No Brasil tal objetivo exige tarefas
árduas (não impossíveis) como a federalização do país. Nada que seja
novo pode surgir de uma terra onde o governo central age como exército
vencedor contra Estados e municípios. A maioria esmagadora de nossas
políticas públicas são monopólio de Brasilia. Como inovar procedimentos,
se é mantida a pesada burocracia que esmaga as instâncias inferiores de
poder ?
Nada
efetivamente novo aparecerá na política brasileira se nos partidos
persistirem as oligarquias (ou monarquias) de dirigentes que neles
mandam por décadas, sem renovação de quadros. Nenhum fato inovador pode
advir da atual forma partidária que, passadista, escolhe para se
candidatar aos cargos os que dobram a cerviz diante dos oligarcas.
Nenhuma forma de mudança pode ocorrer em partidos que não escutam seus
próprios militantes em eleições primárias, escolhas de alianças, opções
de programa. Impossíveis todas as alterações políticas se os jovens
fogem dos partidos, enojados pelo exemplo do “realismo” abjeto que neles
impera.
Mudança
alguma surgirá na ordem científica, artística, industrial, num país
onde a aplicação do PIB em ciência e tecnologia patina em plano
miserável. Nada pode se esperar em termos de renovação numa terra onde a
maior parte dos municípios sofre a carência de esgoto e de água. Pouco
se pode querer, para alterar o que existe entre nós, sem uma política
nacional que defina cenários econômicos e fiscais democráticos,
destravando a produção brasileira e refinando produtos destinados ao
mercado mundial. Nada pode ser almejado quanto à agregação de valor às
nossas mercadorias, se a mão de obra não recebe o amplo e imperativo
preparo técnico. Nenhuma ordem nova surgirá em nossa vida, se aos
gestores dos três poderes forem garantidos privilégios jurídicos,
fiscais, políticos que anulam a república. No Antigo Regime, com todos
os benefícios usufruídos pelo clero e aristocracia, a carruagem de
bispos ou condes não era mantida pelos cofres do Estado. Aqui, do
vereador ao parlamentar federal, todos vivem às custas do erário
público. Os carros, os motoristas, a gasolina, tudo recai sob os ombros
do contribuinte. Se tais abusos não desaparecerem, retóricas sobre as
mudanças serão farsa, comédia, escárnio. E a prerrogativa de foro,
negação bruta da forma republicana?
No
afã de monopolizar a pretensa mudança, partidos rivais anunciam a si
mesmos como formuladores do futuro, guardiões do passado, soberanos do
presente. Tais fórmulas hipnóticas, tantas vezes repetidas, geram
momentânea e sonolenta aquiescência no eleitor. Mas de tal devaneio ele
será desperto depois do escrutínio, e logo retornará às carência
urbanas, às violências das ruas, às truculências repressivas. Além da
inflação de slogans e moeda, ressurge a dança frenética da consciência
coletiva sem rumo. A desconfiança nos políticos que tudo prometem e nada
cumprem se transforma em fé nos demagogos que garantem a morte dos
inimigos, como ocorreu nas ditaduras que desgraçaram o século vinte.
Mudança
para valer, exigiria o abandono de atitudes antigas, comuns no governo
federal, mas pioradas nas últimas administrações. A primeira postura a
ser mudada está no vezo de afirmar dogmas e indicar pessoas infalíveis.
Quando tais indivíduos ou grupos estão no poder para se apropriar de
bens públicos em benefício partidário e, mesmo, privado, outro modo de
não prestar contas surge naos lábios dos que habitam os palácios.
Segundo eles mesmos e seus bajuladores, ninguém soube, teve notícia ou
viu os "mal feitos"do próprio governo. Note-se que a desculpa só é
aceita em país como o nosso, onde não existe responsabilidade dos
gestores públicos, accountability. Em outras terras, se um subordinado
comete crime com o dinheiro público, responde o superior e mesmo todo o
governo. Aqui, os mandatários dizem que "não sabiam" e tudo fica pelo
mesmo para a midia, para os tribunais, para o Congresso.
Outro
ponto que precisa desaparecer, se o alvo é o hábito de um governo se
apropriar de programas instaurados pelos anteriores, proclamando aos
quatro ventos serem os benefícios (quando os programas de fato
beneficiam parte da população) de sua única invenção e propriedade.
Mudança existirá quando todas as políticas públicas, da economia ao
social, forem assumidas como próprias do Estado e não de um ou outro
governo com seu partido. Mudança real existirá quando políticas sociais
sejam rigorosamente separadas dos alvos eleitoreiros. O benefício que
vem do Estado, pago pela totalidade dos contribuintes, sejam eles deste
ou daquele partido e ideologia, não pode ser apropriado por uma
agremiação, numa retomada infame do coronelismo que exige votos dos
cidadãos em troca de "favores" mantidos pelos cofres públicos.
Mudança
efetiva ocorrerá quando os meios de governo deixarem de ser usados como
instrumentos de captação de votos nas urnas. Mudanca, só com o fim da
reeleição e, caso tal coisa não ocorra, com a licença obrigatória do
cargo exigida legalmente dos mandatários. Mudança real vai ocorrer
quando fazer oposição ao governo deixar de ser visto como crime de lesa
majestade, como ocorre no Brasil de agora.
Os
partidos brasileiros sempre falam em mudanças mas apoiam carcomidas
oligarquias e políticos que odeiam o regime democrático. O resultado, já
o temos no “Congresso novo” que vai atormentar, de 2014 a 2018, o
eleito à Presidência. Sua composição reacionária (contra os direitos
civis das minorias, dos indios, das mulheres, dos homossexuais)
prenuncia uma torsão violenta rumo ao passado. Os nossos partidos
progressistas venderam sonhos de belíssimos futuros. Não entregaram a
mercadoria. A tragédia veio com a ditadura Vargas e o regime de 1964.
Estamos no limiar de uma tragicomédia. Seria prudente se políticos e
intelectuais parassem de interpretar o Brasil e, de fato, o
modificassem. Para que tal feito se realize, o primeiro passo é conter o
palavrório dos que proclamam mudanças porque, diz o nosso Camões,
“afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto, Que não
se muda já como soía”…
Professor da Unicamp, autor de Razão de Estado e outros estados da Razão (Ed. Perspectiva, 2014).