domingo, 18 de janeiro de 2009

Ao retornar aos textos do Renascimento, no preparo do curso a ser dado por mim no Departamento de Filosofia neste semestre, topei com a seguinte passagem de Montaigne (Ensaios, livro III, capítulo XII) na qual o pensador examina a situação política da França do seu tempo:

"O estado de saúde de que partimos só era sadio por comparação com o que se lhe seguiu, e não caímos de muito alto. Menos suportável se me afiguram a corrupção e o banditismo instalados nos altos cargos, pois menos nos ofende ser roubados em um bosque do que onde deveríamos estar em segurança. Em verdade a classe dirigente era então composta de tarados e cada qual mais do que o outro. Todos com úlceras e feridas e muitas incuráveis".

Uso a tradução publicada no livro de Jean Starobinski,
Montaigne em Movimento (SP, Cia das Letras, 1993), p. 316, nota 45.

1) Notemos a lingua ainda não amordaçada pelo Estado absoluto frances, uma lingua franca como a de Rabelais.
2) Notemos a justeza do diagnóstico, com a fala direta: os dirigentes eram tarados e bandidos. Teríamos uma lingua e uma atitude tão clara e tão livre hoje?
3) A fineza psicológica: a pessoa particular se ofende com a falta de respeito aos seus direitos. E ofensa é o que sentimos, sobretudo quando desprezam nossa inteligência.
4) A doença da corrupção atinge todos os dirigentes, alguns com feridas incuráveis. O diagnóstico serve para o passado, o presente e o futuro, e mostra a lucidez do pensador.

5) Quem deseja aplicar os ditos acima ao Brasil de hoje, só encontra terreno favorável. É ruim ser roubado por bandidos comuns. Mas quando o Estado caminha para a delinquência, ficamos feridos e ofendidos. Mas os dirigentes não percebem nada, porque sua tara os faz surdos e tagarelas.

RR