De olhos bem fechados
Sérgio Malbergier, editor do caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo, na Folha Online
"Eles começaram por nos cumprimentar com apertos de mão. Dissemos "salaam aleikum" (a paz esteja com vocês), e então as primeiras pedrinhas pequenas voaram. Um menino tentou agarrar minha bolsa. Depois outro. Então alguém me deu um soco nas costas. Rapazes quebraram meus óculos e começaram a me bater no rosto e na cabeça com pedras. Eu não conseguia enxergar por causa do sangue que jorrava de minha testa e inundava meus olhos. Mas, mesmo naquela hora, entendi. Eu não podia culpá-los pelo que estavam fazendo. Na verdade, se eu fosse um dos refugiados afegãos de Kila Abdullah, perto da fronteira entre Afeganistão e Paquistão, eu teria feito a mesma coisa com Robert Fisk ou com qualquer outro ocidental que encontrasse.
Assim o impagável Robert Fisk, correspondente do "Independent" para o Oriente Médio, há mais de 30 anos baseado em Beirute, iniciou um dos textos que mais me diverti editando o caderno Mundo. Sim. Fisk apanhou e gostou, quero dizer, entendeu. Seu relato é extraordinário: Fisk justifica seu próprio linchamento em dezembro de 2001, quando ia do Paquistão ao Afeganistão, onde tropas da coalizão liderada pelos EUA tinham deposto o Taleban, o regime islamofascista que baniu as mulheres dos hospitais e das escolas, proibiu a música, tornou a barba obrigatória, destruiu monumentos de outras religiões, massacrou opositores e abrigou Osama Bin Laden, entre outros feitos. Mas para Fisk, e simpatizantes do que sobrou da tal esquerda reacionária, a culpa de tudo isso é do Ocidente, que merece tomar porrada!
O melhor do relato fiskiano, publicado na Folha na edição de 11 de dezembro de 2001, é quando ele diz que se salvou justamente ao dar porrada (até você, Fisk?) nos seus agressores (o que aliás soa muito estranho vindo de um sujeito franzino como o intrépido correspondente inglês).Embora o uso da força tenha salvado sua vida, foi também causa de enorme culpa. Escreveu Fisk (na tradução de Clara Allain): "Comecei a enxergar de novo e percebi que estava chorando. O que foi que eu fiz?, repetia. Eu tinha socado e atacado refugiados afegãos, exatamente as pessoas sobre as quais vinha escrevendo havia tanto tempo, as pessoas mutiladas e miseráveis que meu próprio país, entre outros, estava matando".
Fisk é exemplar desse contingente enorme de ativistas e seus colunistas e repórteres ativistas para quem o Ocidente (mas principalmente a hiperpotência americana e os 7 milhões de israelenses ou mesmo os 14 milhões de judeus no mundo) está sempre errado e é a origem de todo o mal no planeta. Seu artigo "vintage" me voltou à cabeça depois de assistir à melhor comédia em cartaz nos cinemas brasileiros hoje: "O Novo Século Americanono", do cineasta italiano Massimo Mazzucco, um libelo antiamericano no qual acusa o governo Bush de ter realizado os ataques terroristas do 11 de Setembro. Sim. O filme, montado a partir de colagens da internet, justapõe imagens das quedas das torres do World Trade Center e de implosões de outros prédios para "provar" que as construções caíram com o mesmo método de implosões, não pelo impacto dos aviões sequestrados pela Al Qaeda. Mais: sugere que os aviões de carreira usados pelos terroristas possam ter sido trocados por aviões falsificados guiados por controle remoto (essa parte eu não entendi direito).
Mais: diz que os eternamente malignos governos americanos criaram várias megacatástrofes como a do 11 de Setembro para ganhar o apoio do país para suas empreitadas imperialistas, como o ataque a Pearl Harbor. Mais: Osama Bin Laden, tratado como um cordeirinho vítima do lobo americano, é inocentado dos ataques terroristas, apesar do próprio já ter se gabado do fato em vídeo e ter aparecido com alguns dos sequestradores dos aviões. A lista de disparates é enorme. O fluxo de bobagens é inebriante, até hilário no docutrash de Mazzucco, que deixou a Itália e hoje mora, adivinhem, nos EUA! Pior que isso só pessoas de bem, como dizem, acreditarem no conto do Mazzucco, o que prova que não se deve nunca subestimar a ignorância alheia nem o poder da ideologia sobre o cérebro humano, mesmo nessa era pós-tudo.
E uma das maiores vítimas de Mazzucco é justamente um de nossos melhores cineastas, Fernando Meirelles, responsável pela exibição do filme no Brasil. É o primeiro filme a ser distribuído no país pela produtora de Meirelles, a O2. O autor do seminal "Cidade de Deus" e do enfadonho "Ensaio sobre a Cegueira" disse que só entrou na área de distribuição por achar fundamental a exibição do libelo mazzuccista no Brasil. Meirelles?! Já sir Salman Rushdie, que há 20 anos foi alvo de uma sentença de morte dos aiatolás iranianos por seu livro "Os Versos Satânicos", sabe por experiência própria dos perigos do apaziguamento do islamofascismo. "Acabamos de ver em Mumbai uma demonstração do extraordinário barbarismo que as pessoas estão preparadas a lançar contra o mundo. Quantos desses ataques precisamos para entender o que está acontecendo?", disse ele ao "Times" de Londres em entrevista recente.
Mas os órfãos da esquerda clássica estão de olhos bem fechados para o que acontece no mundo. Atrás de uma bandeira que justifique seu ódio ao sistema democrático-capitalista, tomou o antiamericanismo e o antissionismo como luta primordial. Não importa que no caminho adotem um antissemitismo execrável que só eles não conseguem enxergar, como é o caso do panfleto esquerdista londrino "The Guardian". E ecoem e marchem junto a grupos islamofascistas obscurantistas e antissemitas pelas cidades livres do Ocidente, embora fossem alvos preferenciais desses mesmos grupos se vivessem sob os regimes defendidos por eles, num verdadeiro ensaio sobre a cegueira É uma turba de difícil educação, filhos de ideologias totalitárias vencidas e de um maniqueísmo que não cansava de denunciar na administração Bush. Quem sabe a eleição de Barack Obama venha a reduzir as fileiras ou os argumentos desse exército de Brancaleone extremista que só vê preto e branco num mundo bastante colorido.
O Brasil e a bomba iraniana
Sérgio Malbergier, editor do caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo, na Folha Online
Deu no "Times" de Londres (ainda o melhor jornal britânico) no sábado: potências ocidentais como EUA, Reino Unido, Alemanha e França acreditam que o Irã esteja com pouco estoque de urânio processado para seguir seu programa nuclear clandestino. Por isso, estão pressionando grandes produtores do minério a não vendê-lo à teocracia islâmica. Entre os países pressionados estão Cazaquistão, Uzbequistão e o Brasil. O Brasil, seguindo os passos da Venezuela, está se aproximando de Teerã. Planeja para este ano receber o presidente iraniano, Mahmoud Ahmedinejad, aquele que nega o Holocausto, promete varrer Israel do mapa e busca produzir armas atômicas para tornar mais crível sua ameaça.
No meio do conflito Israel-Hamas, o assessor especial de Lula para equívocos internacionais, Marco Aurélio Garcia, recebeu o ministro iraniano Mohammad Abbasi em Brasília, que saiu dizendo que posições em comum entre Brasil e Irã devem impulsionar uma união entre os dois países para o cumprimento de metas em relação ao conflito em Gaza e Israel. Por tudo que se viu de Marco Aurélio, não me surpreenderia que defendesse a venda de urânio aos aiatolás.
Ateus, poetas & messias
Joao Pereira Coutinho na Folha Online
A estupidez humana não cessa de me espantar. Leio na imprensa do dia que uma associação "humanista" da Grã-Bretanha lançou em Londres uma campanha pública para defender a provável inexistência de Deus. A ideia foi escrever nos ônibus da cidade duas frases de arrasadora profundidade filosófica: "Deus provavelmente não existe. Por isso, deixa de te preocupar e aproveita a vida". A tese espanta, não apenas pela infantilidade que a define --mas pela natureza ilógica que a contamina. Se Deus não existe, haverá necessariamente motivos para celebrar?
Os mais radicais "philosophes" do século 18 concordariam que sim. O próprio projeto iluminista, na sua crítica à instituição religiosa como autoritária e obscurantista, defendia que a libertação dos Homens passava pela libertação do divino. Nem todos os "philosophes" eram ateus, é certo: Rousseau ou Diderot, impenitentes "deístas", não são comparáveis a La Mettrie ou Helvétius. Mas o iluminismo continental abriria a primeira brecha na cultura ocidental, ao retirar a Fé do seu trono e ao coroar a deusa Razão. Foi esse gesto primordial que tornaria possível as devastadoras críticas posteriores do trio maravilha (Feuerbach, Marx e Freud). Deus criou os Homens? Pelo contrário: Deus é uma criação dos Homens por razões várias e todas elas racionalmente explicáveis.
Os Homens criaram Deus por temerem a sua própria mortalidade (Feuerbach). Os Homens criaram Deus por contraposição às condições materiais das suas existências precárias (Marx). Os Homens criaram Deus por puro sentimento de culpa: parricidas arrependidos, eles buscam ainda uma autoridade perdida; Deus é o "fétiche" infantil de quem se recusa a viver uma vida adulta (Freud). Infelizmente, aparece sempre alguém para estragar a festa. Falo de Doistóievski, claro, disposto a contrariar o otimismo liberal da burguesia russa oitocentista, para quem Deus era um empecilho de modernidade. Pela boca de Karamazov, Dostoiévski formularia a pergunta que Feuerbach, Marx, Freud e também Nietzsche se recusaram a enfrentar: e se a ausência de Deus significa também a ausência de qualquer limite ético para a acção humana? Essa possibilidade seria confirmada no século seguinte: um século devastado por grandes construções coletivistas, utópicas e rigorosamente ateias que libertaram um fanatismo e uma crueldade indistinguíveis do fanatismo e da crueldade das antigas religiões tradicionais. Quando os Homens não acreditam em Deus, eles não passam a acreditar em nada; eles acreditam, antes, em qualquer coisa, como dizia profeticamente Chesterton. Antes de festejarmos a provável inexistência do barbudo, convém saber o que essa coisa será.
Sérgio Malbergier, editor do caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo, na Folha Online
"Eles começaram por nos cumprimentar com apertos de mão. Dissemos "salaam aleikum" (a paz esteja com vocês), e então as primeiras pedrinhas pequenas voaram. Um menino tentou agarrar minha bolsa. Depois outro. Então alguém me deu um soco nas costas. Rapazes quebraram meus óculos e começaram a me bater no rosto e na cabeça com pedras. Eu não conseguia enxergar por causa do sangue que jorrava de minha testa e inundava meus olhos. Mas, mesmo naquela hora, entendi. Eu não podia culpá-los pelo que estavam fazendo. Na verdade, se eu fosse um dos refugiados afegãos de Kila Abdullah, perto da fronteira entre Afeganistão e Paquistão, eu teria feito a mesma coisa com Robert Fisk ou com qualquer outro ocidental que encontrasse.
Assim o impagável Robert Fisk, correspondente do "Independent" para o Oriente Médio, há mais de 30 anos baseado em Beirute, iniciou um dos textos que mais me diverti editando o caderno Mundo. Sim. Fisk apanhou e gostou, quero dizer, entendeu. Seu relato é extraordinário: Fisk justifica seu próprio linchamento em dezembro de 2001, quando ia do Paquistão ao Afeganistão, onde tropas da coalizão liderada pelos EUA tinham deposto o Taleban, o regime islamofascista que baniu as mulheres dos hospitais e das escolas, proibiu a música, tornou a barba obrigatória, destruiu monumentos de outras religiões, massacrou opositores e abrigou Osama Bin Laden, entre outros feitos. Mas para Fisk, e simpatizantes do que sobrou da tal esquerda reacionária, a culpa de tudo isso é do Ocidente, que merece tomar porrada!
O melhor do relato fiskiano, publicado na Folha na edição de 11 de dezembro de 2001, é quando ele diz que se salvou justamente ao dar porrada (até você, Fisk?) nos seus agressores (o que aliás soa muito estranho vindo de um sujeito franzino como o intrépido correspondente inglês).Embora o uso da força tenha salvado sua vida, foi também causa de enorme culpa. Escreveu Fisk (na tradução de Clara Allain): "Comecei a enxergar de novo e percebi que estava chorando. O que foi que eu fiz?, repetia. Eu tinha socado e atacado refugiados afegãos, exatamente as pessoas sobre as quais vinha escrevendo havia tanto tempo, as pessoas mutiladas e miseráveis que meu próprio país, entre outros, estava matando".
Fisk é exemplar desse contingente enorme de ativistas e seus colunistas e repórteres ativistas para quem o Ocidente (mas principalmente a hiperpotência americana e os 7 milhões de israelenses ou mesmo os 14 milhões de judeus no mundo) está sempre errado e é a origem de todo o mal no planeta. Seu artigo "vintage" me voltou à cabeça depois de assistir à melhor comédia em cartaz nos cinemas brasileiros hoje: "O Novo Século Americanono", do cineasta italiano Massimo Mazzucco, um libelo antiamericano no qual acusa o governo Bush de ter realizado os ataques terroristas do 11 de Setembro. Sim. O filme, montado a partir de colagens da internet, justapõe imagens das quedas das torres do World Trade Center e de implosões de outros prédios para "provar" que as construções caíram com o mesmo método de implosões, não pelo impacto dos aviões sequestrados pela Al Qaeda. Mais: sugere que os aviões de carreira usados pelos terroristas possam ter sido trocados por aviões falsificados guiados por controle remoto (essa parte eu não entendi direito).
Mais: diz que os eternamente malignos governos americanos criaram várias megacatástrofes como a do 11 de Setembro para ganhar o apoio do país para suas empreitadas imperialistas, como o ataque a Pearl Harbor. Mais: Osama Bin Laden, tratado como um cordeirinho vítima do lobo americano, é inocentado dos ataques terroristas, apesar do próprio já ter se gabado do fato em vídeo e ter aparecido com alguns dos sequestradores dos aviões. A lista de disparates é enorme. O fluxo de bobagens é inebriante, até hilário no docutrash de Mazzucco, que deixou a Itália e hoje mora, adivinhem, nos EUA! Pior que isso só pessoas de bem, como dizem, acreditarem no conto do Mazzucco, o que prova que não se deve nunca subestimar a ignorância alheia nem o poder da ideologia sobre o cérebro humano, mesmo nessa era pós-tudo.
E uma das maiores vítimas de Mazzucco é justamente um de nossos melhores cineastas, Fernando Meirelles, responsável pela exibição do filme no Brasil. É o primeiro filme a ser distribuído no país pela produtora de Meirelles, a O2. O autor do seminal "Cidade de Deus" e do enfadonho "Ensaio sobre a Cegueira" disse que só entrou na área de distribuição por achar fundamental a exibição do libelo mazzuccista no Brasil. Meirelles?! Já sir Salman Rushdie, que há 20 anos foi alvo de uma sentença de morte dos aiatolás iranianos por seu livro "Os Versos Satânicos", sabe por experiência própria dos perigos do apaziguamento do islamofascismo. "Acabamos de ver em Mumbai uma demonstração do extraordinário barbarismo que as pessoas estão preparadas a lançar contra o mundo. Quantos desses ataques precisamos para entender o que está acontecendo?", disse ele ao "Times" de Londres em entrevista recente.
Mas os órfãos da esquerda clássica estão de olhos bem fechados para o que acontece no mundo. Atrás de uma bandeira que justifique seu ódio ao sistema democrático-capitalista, tomou o antiamericanismo e o antissionismo como luta primordial. Não importa que no caminho adotem um antissemitismo execrável que só eles não conseguem enxergar, como é o caso do panfleto esquerdista londrino "The Guardian". E ecoem e marchem junto a grupos islamofascistas obscurantistas e antissemitas pelas cidades livres do Ocidente, embora fossem alvos preferenciais desses mesmos grupos se vivessem sob os regimes defendidos por eles, num verdadeiro ensaio sobre a cegueira É uma turba de difícil educação, filhos de ideologias totalitárias vencidas e de um maniqueísmo que não cansava de denunciar na administração Bush. Quem sabe a eleição de Barack Obama venha a reduzir as fileiras ou os argumentos desse exército de Brancaleone extremista que só vê preto e branco num mundo bastante colorido.
O Brasil e a bomba iraniana
Sérgio Malbergier, editor do caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo, na Folha Online
Deu no "Times" de Londres (ainda o melhor jornal britânico) no sábado: potências ocidentais como EUA, Reino Unido, Alemanha e França acreditam que o Irã esteja com pouco estoque de urânio processado para seguir seu programa nuclear clandestino. Por isso, estão pressionando grandes produtores do minério a não vendê-lo à teocracia islâmica. Entre os países pressionados estão Cazaquistão, Uzbequistão e o Brasil. O Brasil, seguindo os passos da Venezuela, está se aproximando de Teerã. Planeja para este ano receber o presidente iraniano, Mahmoud Ahmedinejad, aquele que nega o Holocausto, promete varrer Israel do mapa e busca produzir armas atômicas para tornar mais crível sua ameaça.
No meio do conflito Israel-Hamas, o assessor especial de Lula para equívocos internacionais, Marco Aurélio Garcia, recebeu o ministro iraniano Mohammad Abbasi em Brasília, que saiu dizendo que posições em comum entre Brasil e Irã devem impulsionar uma união entre os dois países para o cumprimento de metas em relação ao conflito em Gaza e Israel. Por tudo que se viu de Marco Aurélio, não me surpreenderia que defendesse a venda de urânio aos aiatolás.
Ateus, poetas & messias
Joao Pereira Coutinho na Folha Online
A estupidez humana não cessa de me espantar. Leio na imprensa do dia que uma associação "humanista" da Grã-Bretanha lançou em Londres uma campanha pública para defender a provável inexistência de Deus. A ideia foi escrever nos ônibus da cidade duas frases de arrasadora profundidade filosófica: "Deus provavelmente não existe. Por isso, deixa de te preocupar e aproveita a vida". A tese espanta, não apenas pela infantilidade que a define --mas pela natureza ilógica que a contamina. Se Deus não existe, haverá necessariamente motivos para celebrar?
Os mais radicais "philosophes" do século 18 concordariam que sim. O próprio projeto iluminista, na sua crítica à instituição religiosa como autoritária e obscurantista, defendia que a libertação dos Homens passava pela libertação do divino. Nem todos os "philosophes" eram ateus, é certo: Rousseau ou Diderot, impenitentes "deístas", não são comparáveis a La Mettrie ou Helvétius. Mas o iluminismo continental abriria a primeira brecha na cultura ocidental, ao retirar a Fé do seu trono e ao coroar a deusa Razão. Foi esse gesto primordial que tornaria possível as devastadoras críticas posteriores do trio maravilha (Feuerbach, Marx e Freud). Deus criou os Homens? Pelo contrário: Deus é uma criação dos Homens por razões várias e todas elas racionalmente explicáveis.
Os Homens criaram Deus por temerem a sua própria mortalidade (Feuerbach). Os Homens criaram Deus por contraposição às condições materiais das suas existências precárias (Marx). Os Homens criaram Deus por puro sentimento de culpa: parricidas arrependidos, eles buscam ainda uma autoridade perdida; Deus é o "fétiche" infantil de quem se recusa a viver uma vida adulta (Freud). Infelizmente, aparece sempre alguém para estragar a festa. Falo de Doistóievski, claro, disposto a contrariar o otimismo liberal da burguesia russa oitocentista, para quem Deus era um empecilho de modernidade. Pela boca de Karamazov, Dostoiévski formularia a pergunta que Feuerbach, Marx, Freud e também Nietzsche se recusaram a enfrentar: e se a ausência de Deus significa também a ausência de qualquer limite ético para a acção humana? Essa possibilidade seria confirmada no século seguinte: um século devastado por grandes construções coletivistas, utópicas e rigorosamente ateias que libertaram um fanatismo e uma crueldade indistinguíveis do fanatismo e da crueldade das antigas religiões tradicionais. Quando os Homens não acreditam em Deus, eles não passam a acreditar em nada; eles acreditam, antes, em qualquer coisa, como dizia profeticamente Chesterton. Antes de festejarmos a provável inexistência do barbudo, convém saber o que essa coisa será.