http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,odio-genocida-ao-outro,360680,0.htm
domingo, 26 de abril de 2009,
Para racistas, os seres humanos que são seu alvo simplesmente não merecem viver no planeta
Roseli Fischmann* -
- A Conferência da ONU em Genebra traz questionamentos, reforçando a pergunta: por que há tanta dificuldade no debate sobre o racismo?
Uma resposta é que a atual geopolítica se baseou em ideologias racistas, expressas nos colonialismos, submetendo alguns povos aos interesses de outros, com repercussões perversas até hoje. Questionar a situação é questionar a história e encontrar formas de reparação, considerando o prejuízo causado a gerações e à dignidade humana (conforme Dworkin e Arendt). Pesa também o desconforto de precisar mudar algo "que sempre foi assim", como a preguiça imoral propõe para fugir ao debate, já que as mudanças requeridas pedem desde novas atitudes individuais à proposta de novas estruturas sociais para superar injustiças.
Tentando esboçar identificador universal para o flagelo, o racismo é uma atitude que se permite considerar que os seres humanos que são seu alvo não merecem viver sobre a face da terra e sob a luz do sol, gabando-se de assim pregar. Essa é a desrazão que leva do ódio ao Outro à promoção efetiva de genocídios que, irrecuperáveis, deixam marcas indeléveis para os sobreviventes diretos e indiretos.
O racismo é uma guerra permanente, declarada ou tácita, mediante uso de quaisquer armas, materiais ou imateriais, com o fim de eliminar o grupo a quem se rejeita a condição humana e a quem se nega a mera possibilidade de existir. A arrogância racista encontra-se exatamente aí, em um inexistente direito que se autoatribuem os racistas de decidir que alguns não merecem coabitar o planeta.
Talvez em nenhum outro tema seja tão árdua a possibilidade de um debate em direção ao universal. Porque, por um lado, são muitos os grupos vitimados em histórias de discriminação e prejuízos coletivos, cada qual a reivindicar para si, compreensivelmente, a dor maior, a urgência mais extrema e a maior legitimidade. Por outro, grupos que são perseguidos em um espaço podem ser perpetradores de injustiça em outro, e a presença na arena coletiva mundial relativiza queixas e expõe fraquezas comuns a todos, na facilidade de constatar erros alheios e na dificuldade de assumir os próprios. Por isso a cautela deveria ser a atitude mais básica na escolha dos protagonistas de espaços que buscam os direitos humanos como construção universal (à Bobbio).
Se o racismo é uma guerra, tratar do racismo exige metodologias próprias à resolução de conflitos por meios não violentos. Caberia pensar que conferências mundiais deveriam se constituir como um tipo de resolução interativa de conflitos. A tradição de Gandhi e Martin Luther King gerou metodologias interativas que têm base no diálogo e na busca de reconhecimento mútuo, pelo respeito das identidades e dos valores, mesmo não coincidentes (como em Kelman). Mais complexo, há o fato de que as reuniões contam com uma memória mundial que não está disposta a esquecer os fatos terríveis que a humanidade viveu, e com a presença de sobreviventes indiretos de genocídios.
Sucede que, além dos sobreviventes e de seus descendentes (que poderiam não existir, tivesse o genocídio atingido seus objetivos plenamente, no maior horror possível), os refugiados constituem-se como grupos de sobreviventes que escapam ao furor do ódio genocida, instalam-se em outro território que os acolhe e ali reconstroem suas vidas, formam famílias e criam seus filhos, que vão para a arena mundial em luta para que não se repita o que poderia ter impedido suas vidas mesmo de existir. No Brasil, o racismo entranhado na história sistematicamente ignorou os refugiados, tratados como se fossem imigrantes, sem discernir os que imigraram e os que se refugiaram, dentro de um mesmo grupo.
É o mesmo racismo causador da ignorância sobre os mais de 230 grupos indígenas, homogeneizando-os e relegando-os a condições lamentáveis, que promoveu injustiças brutais contra afrodescendentes, mesmo após o fim da escravidão, ou pelo menos se calou frente à desigualdade que evidentemente tem fundo racial em nosso país. A situação ainda é tal que esses grupos têm se renovado, geração após geração, como sobreviventes do racismo que persiste, enquanto se busca combatê-lo, pelos movimentos sociais e pelas instituições. Para essas populações brasileiras, o Plano de Ação da Conferência contra o Racismo realizada em Durban, em 2001, trouxe benefícios importantes, que poderiam ser mais reforçados, houvesse sido outro o resultado da reunião em Genebra.
Uma conferência para debater o racismo precisaria encarar a História para encontrar possibilidades de transformação social em direção à construção do universal, que a todos permita viver como livres e iguais. Alguns limites se colocam a todos os participantes de semelhantes encontros, como os que ensinam que, na necessária compatibilização de direitos de diferentes grupos em conflito, o direito à livre expressão não pode corresponder a um inexistente direito à mentira. Mais ainda, uma mentira que subjuga a amplitude e profundidade do debate sobre o racismo, impossibilitando o diálogo que, em si, é complexo e difícil.
Sendo positivo que o governo brasileiro tenha se manifestado oficialmente contra o conteúdo da fala de Ahmadinejad, a situação anunciada para breve obriga a dizer que é inaceitável que o Brasil receba com honras alguém que, sendo no momento presidente de um país com quem o Brasil legitimamente mantém relações diplomáticas, pessoalmente vem se posicionando publicamente contra os princípios de nossa Constituição Federal, que rejeita o racismo, no campo internacional, e o considera crime imprescritível e inafiançável, no campo nacional. É a Constituição brasileira que será insultada, e o alegado interesse econômico se sobreporá ao dever ético do Estado para com toda a cidadania brasileira que, se consumada essa visita, estará de luto.
*Professora da pós-graduação em Educação da USP e da Universidade Metodista de São Paulo. Tem colaborado como Expert Unesco para a Coalizão de Cidades Latino-Americanas contra o Racismo e a Discriminação, uma das atividades ligadas a Durban-2001
Uma resposta é que a atual geopolítica se baseou em ideologias racistas, expressas nos colonialismos, submetendo alguns povos aos interesses de outros, com repercussões perversas até hoje. Questionar a situação é questionar a história e encontrar formas de reparação, considerando o prejuízo causado a gerações e à dignidade humana (conforme Dworkin e Arendt). Pesa também o desconforto de precisar mudar algo "que sempre foi assim", como a preguiça imoral propõe para fugir ao debate, já que as mudanças requeridas pedem desde novas atitudes individuais à proposta de novas estruturas sociais para superar injustiças.
Tentando esboçar identificador universal para o flagelo, o racismo é uma atitude que se permite considerar que os seres humanos que são seu alvo não merecem viver sobre a face da terra e sob a luz do sol, gabando-se de assim pregar. Essa é a desrazão que leva do ódio ao Outro à promoção efetiva de genocídios que, irrecuperáveis, deixam marcas indeléveis para os sobreviventes diretos e indiretos.
O racismo é uma guerra permanente, declarada ou tácita, mediante uso de quaisquer armas, materiais ou imateriais, com o fim de eliminar o grupo a quem se rejeita a condição humana e a quem se nega a mera possibilidade de existir. A arrogância racista encontra-se exatamente aí, em um inexistente direito que se autoatribuem os racistas de decidir que alguns não merecem coabitar o planeta.
Talvez em nenhum outro tema seja tão árdua a possibilidade de um debate em direção ao universal. Porque, por um lado, são muitos os grupos vitimados em histórias de discriminação e prejuízos coletivos, cada qual a reivindicar para si, compreensivelmente, a dor maior, a urgência mais extrema e a maior legitimidade. Por outro, grupos que são perseguidos em um espaço podem ser perpetradores de injustiça em outro, e a presença na arena coletiva mundial relativiza queixas e expõe fraquezas comuns a todos, na facilidade de constatar erros alheios e na dificuldade de assumir os próprios. Por isso a cautela deveria ser a atitude mais básica na escolha dos protagonistas de espaços que buscam os direitos humanos como construção universal (à Bobbio).
Se o racismo é uma guerra, tratar do racismo exige metodologias próprias à resolução de conflitos por meios não violentos. Caberia pensar que conferências mundiais deveriam se constituir como um tipo de resolução interativa de conflitos. A tradição de Gandhi e Martin Luther King gerou metodologias interativas que têm base no diálogo e na busca de reconhecimento mútuo, pelo respeito das identidades e dos valores, mesmo não coincidentes (como em Kelman). Mais complexo, há o fato de que as reuniões contam com uma memória mundial que não está disposta a esquecer os fatos terríveis que a humanidade viveu, e com a presença de sobreviventes indiretos de genocídios.
Sucede que, além dos sobreviventes e de seus descendentes (que poderiam não existir, tivesse o genocídio atingido seus objetivos plenamente, no maior horror possível), os refugiados constituem-se como grupos de sobreviventes que escapam ao furor do ódio genocida, instalam-se em outro território que os acolhe e ali reconstroem suas vidas, formam famílias e criam seus filhos, que vão para a arena mundial em luta para que não se repita o que poderia ter impedido suas vidas mesmo de existir. No Brasil, o racismo entranhado na história sistematicamente ignorou os refugiados, tratados como se fossem imigrantes, sem discernir os que imigraram e os que se refugiaram, dentro de um mesmo grupo.
É o mesmo racismo causador da ignorância sobre os mais de 230 grupos indígenas, homogeneizando-os e relegando-os a condições lamentáveis, que promoveu injustiças brutais contra afrodescendentes, mesmo após o fim da escravidão, ou pelo menos se calou frente à desigualdade que evidentemente tem fundo racial em nosso país. A situação ainda é tal que esses grupos têm se renovado, geração após geração, como sobreviventes do racismo que persiste, enquanto se busca combatê-lo, pelos movimentos sociais e pelas instituições. Para essas populações brasileiras, o Plano de Ação da Conferência contra o Racismo realizada em Durban, em 2001, trouxe benefícios importantes, que poderiam ser mais reforçados, houvesse sido outro o resultado da reunião em Genebra.
Uma conferência para debater o racismo precisaria encarar a História para encontrar possibilidades de transformação social em direção à construção do universal, que a todos permita viver como livres e iguais. Alguns limites se colocam a todos os participantes de semelhantes encontros, como os que ensinam que, na necessária compatibilização de direitos de diferentes grupos em conflito, o direito à livre expressão não pode corresponder a um inexistente direito à mentira. Mais ainda, uma mentira que subjuga a amplitude e profundidade do debate sobre o racismo, impossibilitando o diálogo que, em si, é complexo e difícil.
Sendo positivo que o governo brasileiro tenha se manifestado oficialmente contra o conteúdo da fala de Ahmadinejad, a situação anunciada para breve obriga a dizer que é inaceitável que o Brasil receba com honras alguém que, sendo no momento presidente de um país com quem o Brasil legitimamente mantém relações diplomáticas, pessoalmente vem se posicionando publicamente contra os princípios de nossa Constituição Federal, que rejeita o racismo, no campo internacional, e o considera crime imprescritível e inafiançável, no campo nacional. É a Constituição brasileira que será insultada, e o alegado interesse econômico se sobreporá ao dever ético do Estado para com toda a cidadania brasileira que, se consumada essa visita, estará de luto.
*Professora da pós-graduação em Educação da USP e da Universidade Metodista de São Paulo. Tem colaborado como Expert Unesco para a Coalizão de Cidades Latino-Americanas contra o Racismo e a Discriminação, uma das atividades ligadas a Durban-2001