sexta-feira, 24 de abril de 2009

Sobre a Universidade Brasileira...


Para "comemorar" as bolsas do Prouni, segue abaixo uma entrevista não muito recente, não muito antiga, saída no Jornal da Unicamp.
RR























Crédito da imagem: Neldo Cantanti , Envolverde/Jornal da Unicamp

A história oficial registra o surgimento da primeira universidade brasileira em 1920: a atual Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Criada sem grandes debates e recebida sem maior interesse, conta a lenda que a instituição - que de 1937 a 1965 foi conhecida como Universidade do Brasil - era "para belga ver", pois surgira, essencialmente, para que se pudesse conceder um título de Doutor Honoris Causa ao Rei da Bélgica, por ocasião de sua visita ao Brasil. Somente 14 anos mais tarde o país ganharia de fato sua primeira universidade, idealizada e criada como instituição integral: a Universidade de São Paulo (USP), que surge em meio a importantes transformações políticas, sociais e culturais. Desde então, a universidade brasileira vem consolidando uma relação direta com o desenvolvimento da sociedade e o fortalecimento do Estado. Na entrevista que segue, o filósofo Roberto Romano, professor titular de Ética e Filosofia Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, autor de obras como "O Caldeirão de Medéia", analisa essa relação e traça cenários para o futuro.

Jornal da Unicamp: Embora a vinda da Corte Portuguesa, em 1808, tenha motivado os primeiros cursos superiores na colônia, as primeiras universidades de fato só começaram a surgir no Brasil no século 20, com a criação da Universidade de São Paulo em 1934. Quais as razões para esse surgimento tardio?

Roberto Romano: Em primeiro lugar, o fato de que a política de Portugal para as colônias foi extremamente restritiva ao desenvolvimento do saber, da técnica e sobretudo da cultura laica. Portugal foi um campeão da contra-reforma, que significou um atraso na Europa inteira. A relação só começou a mudar com o Marquês de Pombal (1699-1782), um adepto das luzes. Mesmo assim ele não modificou substancialmente a política em relação às colônias. Por outro lado, o saber no Brasil, como aliás em toda a América do Sul, tinha como núcleo principal as ordens religiosas. Os dominicanos no Peru e no México, e os jesuítas no Brasil. Eles tinham a política de fazer colégios. Estes colégios eram entendidos como eficazes transmissores de cultura. Claro que dentro do espírito da contra-reforma, o que fazia com que fossem passados apenas os conteúdos permitidos pela Igreja. Mas não eram totalmente ineficazes. Francis Bacon (1561-1626), por exemplo, o grande instaurador da pesquisa moderna na Inglaterra, fazia elogios à educação jesuítica. Entretanto, era uma educação muito restrita aos domínios permitidos pela Igreja. Então, ao longo da colônia, há uma grande responsabilidade dos jesuítas. Pode-se dizer, grosso modo, que certos colégios jesuítas, se houvessem sido criados no Peru, poderiam ser chamados de universidade. Há um pouco de mito sobre as universidades hispânicas na América. Eram, na verdade, grandes colégios, que não tinham todas as características das grandes universidades norte-americanas ou européias. Eram setores de ensino, com pesquisa limitada do ponto de vista de ciências da natureza.

JORNAL DA UNICAMP: O surgimento tardio, portanto, se deve principalmente à postura de contra-reforma praticada por Portugal?

Romano: Exatamente. É bom lembrar que nos programas dos insurgentes contra o domínio de Portugal, sobretudo na Inconfidência Mineira, nos projetos para a instalação de uma república no Brasil, havia dois eixos essenciais: a indústria e a universidade. Os insurgentes queriam uma universidade e uma fábrica. Isso é bem emblemático do que significava o domínio português.

JORNAL DA UNICAMP: Com o retardo cronológico da universidade brasileira, o Brasil foi um dos últimos países latino-americanos a contar com instituições universitárias congruentes. Basta pensar que o Peru, São Domingos e o México já contavam com universidades no século XIV e que em 1918 a Argentina já experimentava sua primeira reforma universitária. Apesar disso, pode-se afirmar que a universidade brasileira é hoje a mais sólida e produtiva da América Latina, sobretudo a partir da consolidação de sua pós-graduação. Como isso foi possível?

Romano: Temos vários elementos compondo esse contexto. Apesar de serem contrários à universidade, os positivistas labutaram muito para divulgar o ensino e a prática científica no país. Em Luis Pereira Barreto (1840-1923), por exemplo, médico no interior de São Paulo, percebe-se a insistência nos ensinos tecnológicos e científicos. Os militares brasileiros, influenciados pelo positivismo, valorizavam muito o saber científico e tecnológico. As academias militares, com Benjamin Constant (1836-1891) à frente, eram um centro de produção de saber no campo da matemática, da engenharia, etc. Isso vai ocorrer de maneira paradigmática nos batalhões do marechal Cândido Rondon (1865-1958), que eram ao mesmo tempo de exploração do território indígena, estabelecimento de fronteiras e criação de estradas. Por outro lado, falando especificamente de São Paulo, temos uma situação muito conflitante, que foi a luta dos paulistas contra a ditadura de Getúlio Vargas (1882-1954). Ficou evidente para os paulistas a necessidade do saber politécnico e do saber científico. No brasão da USP, por exemplo, está escrito "A Ciência Vence". Ou seja: "a ciência vence Getúlio Vargas". Todo o impulso dado à formação da USP coincidiu com a intenção de criar em São Paulo um pólo de produção do saber que garantisse a autonomia do estado em relação à federação. Havia um sentimento separatista muito forte em São Paulo naquele período. A USP é o legítimo produto da oligarquia cafeeira, que tinha sua expressão no jornal O Estado de São Paulo e no Movimento Constitucionalista.

JORNAL DA UNICAMP: Quais são as matrizes de pensamento da universidade brasileira? Em que as diferentes matrizes se distinguem?

Romano: São Múltiplas. Em primeiro lugar, as teses do Renascimento, acentuadas no século 18, espalhadas pelos insurgentes. Aqueles republicanos eram ávidos leitores das luzes, do pensamento inglês, liam Bacon com toda a sua proposta de reforma e instalação da ciência. Também liam os enciclopedistas franceses. Em Minas Gerais, no século 18, existiam bibliotecas públicas freqüentadas pela população, onde eram lidos livros de ciência, a enciclopédia publicada por Denis Diderot e jornais dos Estados Unidos e Europa. Portanto, havia um padrão civilizatório selvagemente perseguido pela censura de Portugal e mesmo depois do Império. Essa matriz do pensamento é indelével. Há uma forte presença do pensamento inglês, francês, alemão e italiano. Nos cursos de direito, por exemplo, em momentos alternados, há maior presença do pensamento inglês, francês ou italiano. Entretanto, estas matrizes são constantes. E, sempre, o exemplo dos Estados Unidos como grande fator de emulação. Houve um interesse permanente dos universitários brasileiros pelas universidades norte-americanas em todos os setores do saber.

JORNAL DA UNICAMP: E a Unicamp, como se insere nesse contexto?

Romano: A Unicamp, assim como a Universidade de Brasília (UnB), seria o último florão da prática desenvolvimentista espalhada no período Juscelino Kubitschek (1902-1976). No começo daquele governo existiam alguns desafios estabelecidos no plano de metas. O primeiro deles era retirar o Brasil do litoral Atlântico e interiorizar a vida coletiva de uma forma eficaz. Para isso, o programa de estradas era um elemento fundamental. Logo, era preciso não apenas o saber dominado pelas escolas tradicionais de engenharia, mas também um conhecimento maior, porque as empreiteiras precisavam de pessoas tecnicamente bem formadas. Esse movimento de interiorização, somado ao plano de metas, deu um patamar de exigência de mercado de trabalho, em termos de ciência e tecnologia, que não podia ser coberto apenas pelo modelo anterior de universidade. Daí o grande incentivo, a partir desse momento, aos centros politécnicos especializados. É nesse plano que se dá a instalação da Unicamp e da UnB, como modelos diferentes. Até então, o Brasil continuava com um padrão universitário que repetia o europeu: havia as faculdades importantes - medicina, direito e teologia - e as outras especialidades eram satélites. A USP deu um passo adiante, consolidando uma dimensão mais horizontal às ciências e à pesquisa, não dando privilégios à teologia. Ela era laica. Os institutos de filosofia que surgiram no interior de São Paulo tinham departamentos de biologia, física, química, etc. Ou seja, já não se tratava de uma filosofia serva da teologia. Estes institutos de ensino deram um impulso imenso à vida científica e tecnológica no interior de São Paulo. Mas as demais universidades eram todas dominadas pelo espírito bacharelesco, mais beletrista e menos voltados para a biologia, a química, etc. Por outro lado, o saber da USP era um saber desenvolvido pelas elites e dirigido para as elites. Não era um saber dirigido para as massas. Já o modelo da UnB apresenta uma democratização do acesso ao saber, com o Estado brasileiro garantindo. A UnB trouxe uma modernização ainda maior na pesquisa e no ensino. A Unicamp é o último florão desse modelo. Um modelo voltado para a técnica, para a ciência de ponta, sem a hierarquia das faculdades, que caracterizava a idéia de universidade até os anos 30.

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Fonte: Envolverde, revista Digital - Ambiente, Educação e Cidadania
Data: 11/10/2006