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TENDÊNCIAS/DEBATES
Em defesa do cinismo ROBERTO ROMANO
Nos últimos tempos da República brasileira, os eventos políticos atingiram um grau inédito de corrosão. De momentos assim, só me lembro os que antecederam o golpe de 1964. Mas hoje as coisas são mais graves. Não é o Executivo nem são os quartéis a ameaça ao Parlamento, mas a sua autocorrosão. Os analistas que procuram descrever os costumes de nossos representantes no Congresso sempre repetem uma palavra mágica. A atitude e a fala dos parlamentares e dos agentes do governo, para não falar nas togas, têm sido alcunhadas de "cínicas". Em defesa da verdade factual e histórica, é preciso dizer que isso é uma injustiça gritante. Os cínicos receberam tal apelido (do latim "cynicus", de origem grega, para designar o cachorro) porque mordiam como cães ferozes os hipócritas e os poderosos. O modo cínico de agir é o exato oposto do empregado pelos senhores do Parlamento. O bom padre Vieira, no atualíssimo "Sermão do Bom Ladrão", elogia o cínico Diógenes, "que tudo via com mais aguda vista do que a dos outros homens", quando ele, apontando o dedo para os "ministros da justiça" que levavam à forca uns ladrões, "começou a bradar: "Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos" ". Quem vive em tempos de Nicolau dos Santos Neto percebe a justeza dessas frases do jesuíta austero, inspiradas na conduta cínica. Aqueles filósofos ensinavam que a alma humana é imortal, sendo preciso bem administrá-la, pois a sua estrutura, embora mais elevada do que a do corpo, possui uma imensa fragilidade. O autoconhecimento mostra-se estratégico, bem como a vida em perfeita amizade ("um amigo é uma só alma em dois corpos"). Dentre os empecilhos à boa amizade, ensinam os cínicos, estão a lisonja, a inveja, a ignorância e as humilhações recíprocas. Contra elas, o treino ascético é fundamental. Quem se acostuma a bajular o próprio corpo logo estará apto, na alma, a ser bajulado pelo primeiro inimigo disfarçado. A felicidade só pode ser atingida se resultar da mais rigorosa justiça e da mais rigorosa liberdade. Não depender dos confortos ilusórios trazidos pela riqueza e pelo mando político é o modo de ser livre e de conquistar a plena autarquia, o domínio sobre si mesmo. Sem ela, a escravidão ronda as almas e os corpos. Assim falavam os cínicos. Disso resulta a franqueza da língua. A palavra livre, segundo os cínicos, é a mais bela das conquistas humanas. Nem preso aos ricos e poderosos nem sujeito à multidão, o verbo consciente recusa a lisonja pessoal e a demagogia. Do mesmo cínico Diógenes é a frase famosa: "Quando sou aplaudido por muitos, certamente devo examinar-me para saber se não disse uma bobagem". A liberdade assim percebida se baseia na ascese (leia o belo texto de Goulet-Cazé, M.O: "L'Ascèse Cynique"). A virtude ascética fez o filósofo jogar longe o seu caneco ao ver um menino bebendo da fonte com a palma da mão.
Os cínicos receberam tal apelido porque mordiam como cães ferozes os hipócritas e os poderosos
| Apenas o necessário à vida, sem luxos, sem pedantismos e sem lauréis. Essa é a doutrina cínica. Os cínicos ajudam-nos, até hoje, a romper com a hipocrisia da fala "politicamente correta". Tamanha potência da virtude fez o pensador gritar ao poderoso Alexandre: "Saia daí. A tua presença me retira a luz do sol". Ah, se os nossos políticos e "democratas" fossem de fato cínicos! Todos os ensinamentos dessa escola resistiriam ao tempo e aos regimes políticos. O prisma negativo que essa escola recebeu foi dado justamente pelos ardilosos donos do poder, político ou religioso. A calúnia perdura até os nossos dias, em proveito dos inimigos da disciplina, da liberdade de atos e palavras e dos que amam a riqueza (sobretudo a pública) para seu conforto e ostentação. O cachorro é símbolo, na cultura grega, da amizade política mais nobre. Platão afirma que os dirigentes da república devem ser como os cães: gentis e leais para com os de casa; ferozes contra os inimigos. E o tirano seria como o lobo que devora os bens dos cidadãos em proveito próprio. Daí a tese de Jean Bodin sobre a tirania: "Tirano é o que usa os bens dos súditos como se fossem seus". Vivemos em contínua tirania neste país. Tudo entre nós está invertido e pervertido. A começar pelo tom errado que damos à uma das mais rigorosas éticas filosóficas do Ocidente, a cínica. Os políticos, lobos que dominam o picadeiro de Brasília, se distanciam dos cínicos. Eles são hipócritas e corruptos, amolecidos nos costumes e luzidios de riqueza roubada. Se não temos a coragem dos cínicos, pelo menos não aceitemos as calúnias contra eles, que apenas servem para absolver os seus alvos, os relaxados na moral que enodoam as instituições públicas brasileiras.
Roberto Romano, 54, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp. |