terça-feira, 15 de setembro de 2009

Blog Vi o Mundo

Ao me deparar com o artigo de Veríssimo, abaixo, publicado no blog Vi o Mundo (http://www.viomundo.com.br) recordei de imediato um texto meu, saído na Folha em 2000. O tema é o mesmo, a ironia quase a mesma. Um leitor do Blog lembrou o meu escrito, dizendo que valeria a pena reler a minha catilinária contra juristas arrogantes.

Ocorre que a determinação sacerdotal dos saberes e técnicas é algo que se enraizou na consciência ética do Ocidente. E no Brasil a dose de sacralidade foi piorada pelo exercício da "importância" social e política. Em nosso torrão natal (bota torrão e torrado na coisa!) um pateta que ostenta o título de dentista é DR. Um médico idem —pateta e com tendências a pensar e agir como Hitler ou Mussolini— é DR. O "paciente" é paciente e deve submeter-se à autoridade infalível (os atestados de óbito mostram tamanha infalibilidade, não disputada sequer pelo Papa) sem direito sequer a dúvidas. O "cliente" (termo infamante, trazido da república romana, uma das nada livres no mundo antigo) diante do advogado deve apenas...obedecer. Diante do engenheiro, deve dobrar a lingua e os joelhos. E vamos por aí.

Doutores, arrogantes,em vasto número medíocres escondidos sob um diploma
E não raro, muitos dos tais doutores são corruptos. "Com recibo ou sem recibo" ? A pergunta já evidencia a ética dos baitas sabichões. E é esta gente que abre e entorta a bocona, faz cara de nojo ao falar dos políticos nacionais. A coisa é bem mais feia do que a pintada por Michel Foucault: na verdade, há uma comunhão negra entre os dirigentes do Estado e a classe média fascista que se abriga sob títulos doutorais (é bom recordar: nem todo usuário do título de doutor tem, de fato, doutorado, a Dra. Dilma não vai nos deixar desamparados, não é mesmo?) para garantir domínio sobre os demais seres humanos. Vingança: o arrogante médico que impõe sentenças e medo no próximo, na oficina mecânica é leigo, no escritório de advocacia é leigo. E assim segue a dança no interior da Stultifera navis cujo nome (leigo...) é mundo e Brasil. RR

PS: Apenas para lembrar: foi com estas linhas que terminei minha palestra ao Unafisco, em Porto Alegre, no final de 2008, quando se tratava de comemorar o aniversário de nossa Constituição:

"Com os exemplos do passado e do que assistimos no Brasil -basta recordar a notícia com que iniciei estas considerações- temos muitas e ponderáveis razões para exigir que o poder dos juízes receba fortes contrapesos dos demais poderes e, sobretudo, que eles sejam obrigados a prestar contas ao povo soberano. Aquele mesmo que nos textos jurídicos e nos discursos judiciários é dito "leigo" Ainda vivemos, infelizmente, no mundo hierarquizado de Dionisio Areopagita. Nele, o cosmos natural e político vai dos seres mais próximos do divino, anjos e arcanjos e deles aos sacerdotes. Abaixo dos quais vive o laós, composto pelos mortais comuns que só merecem receber lições e governo. Esta escala sagrada foi destruída por Lutero e pelas Revoluções inglêsa (século 17), norte-americana e francesa. Parece que em muitos setores do Estado, em especial no Judiciário, ainda estamos muito longe da Reforma e da moderna democracia."

Fui profético? Ou apenas sei onde as coisas se encontram?

RR

O leigo

Atualizado e Publicado em 14 de setembro de 2009 às 11:59

Jornal O Globo, 13/09/2009

O leigo

Luis Fernando Verissimo

"Leigo" é o nome genérico de quem não está entendendo. Na sua origem "leigo" era sinônimo de "laico", o contrário de "clérigo", um cristão que não pertencia à hierarquia da Igreja.

Com o tempo a palavra passou a identificar quem está por fora de qualquer assunto, e não apenas os eclesiásticos.

O Leigo é mal-informado, ingênuo e simplista. As coisas precisam ser explicadas com muita clareza ao Leigo, e mesmo assim ele custa a compreendê-las.

Ele próprio costuma invocar sua condição e dizer "Sou leigo na matéria" quando se vê diante de um desafio intelectual. Diz muito isto. Porque tudo é um desafio intelectual para o Leigo.

Mas o Leigo nos presta um grande serviço. Como seu raciocínio é simples, ele muitas vezes faz as perguntas óbvias que nós não fazemos para não parecermos simples.

Há anos, por exemplo, não entra na cabeça do Leigo por que as tais "riquezas naturais" brasileiras de que ouvimos faltar desde a escola não enriqueceram o Brasil, ou pelo menos melhoraram a vida da maioria dos brasileiros, que, ao contrário, parece piorar quanto mais as riquezas são extraídas e exportadas.

O Leigo nunca entendeu a venda, que mais pareceu uma doação, da Vale do Rio Doce, como nunca entendeu a campanha antiga e sistemática para desacreditar e doar a Petrobras.

Agora o Leigo — na sua ingenuidade — não está entendendo essa discussão sobre o controle estatal do petróleo do pré-sal e o destino a ser dado ao produto da sua exploração, como se não estivesse na cara o que precisa ser feito.

No plano internacional, o Leigo imagina que, se todo o dinheiro gasto no comércio de armas fosse aplicado em projetos sociais, acabaria a miséria no mundo.

Você e eu, que somos pessoas sofisticadas e por dentro, sabemos que o mundo não funciona assim, com esse altruísmo simétrico. Que se não gastasse com armas o mundo só gastaria em bebida e mulheres.

E essa de que um país com os problemas sociais do Brasil não tem nada que estar comprando submarino atômico só pode ser coisa do Leigo. Bendito Leigo.

DUNGA

No Brasil, como se sabe, ninguém é leigo em futebol. Todos são clérigos, ninguém é laico. Mas os últimos sucessos da seleção criaram uma cisão entre os eclesiásticos com relação ao Dunga. Há os que os fatos obrigaram a aceitá-lo, e os que nada os fará aceitá-lo, muito menos os fatos.


Marcelo de Matos (14/09/2009 - 14:53)

"O Leigo é mal-informado, ingênuo e simplista". Discordo veementemente. Embora concorde com os argumentos do Veríssimo sobre a venda da Vale do Rio Doce, etc, acho que nós, os leigos, já fomos muito desconsiderados. Em artigo na Folha de São Paulo, três juristas defenderam a indicação do primo do Fernando Collor, jurista Marco Aurélio de Mello, para uma vaga no STF. Disseram que só os leigos poderiam se opor a essa indicação. Em 21.08.2000, no mesmo jornal, em artigo antológico, o professor de filosofia da Unicamp Roberto Romano fez a defesa dos leigos. "Prezados juristas, porque fomos invocados no artigo de vossas senhorias, pedimos vênia para nos apresentar. Nós, os leigos, temos uma história muito antiga... Vale a pena ler.

Folha de São Paulo, 21/Agosto/2000

ROBERTO ROMANO

Nós, os leigos

"Leigos em Direito (...) têm a tendência de falar sobre ele com uma desenvoltura que não teriam se se tratasse de medicina ou de antropologia. Por isso, além de "julgar" os casos de acordo com o "clamor público" -que é o mesmo que leva a linchamentos-, ainda "julgam o julgador", esquecendo que, no Estado de Direito, paga-se um preço pela garantia de todos e de cada um, de tal forma que só após a conclusão de um processo regular é que se pode obter uma certeza jurídica." (Américo Lacombe, Celso Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, Folha, 10/8)

Prezados juristas , porque fomos invocados no artigo de vossas senhorias, pedimos vênia para nos apresentar. Nós, os leigos, temos uma história muito antiga. Na Grécia, éramos conhecidos como "laós", em oposição aos nossos chefes. É verdade que também fomos identificados por um nome de maior prestígio, "demos". As funções arriscadas da cidade eram nossas, especialmente a de lutar com nossas armas, prestando a chamada liturgia em prol dos concidadãos. Não temos muita idéia (nos apontam como ignaros) das causas que nos transformaram de povo em plebe. Primeiro nos alcunharam como "os muitos", opostos aos "melhores". Em Roma, disseram que éramos o "improbante populo", ou a "imperita plebs". Os grandes do universo nos bajulavam, mas tinham nojo de nossa presença.

Veio a Igreja Católica e passamos a constituir um tipo de gente menor, sem qualificações plenas para viver, por nossos próprios méritos, na terra. Recebemos todos o epíteto de "laicus", em oposição, como no Egito dos faraós, aos sacerdotes. Justiniano consagrou esse insulto singular no seu código. Dionísio Areopagita imaginou o universo como imensa hierarquia, dos arcanjos aos padres. Fomos relegados à base da escada celeste. Leigo era sinônimo de pura tolice. Certo dia, um poeta e crítico dos padres, Dante Alighieri, começou, com outros escritores, a louvar uma política não-sacralizada. O poder, dizia ele, deve ser secular. Sacerdotes e teólogos o perseguiram por meios interpostos.

A partir dessa época, as coisas pioraram para os donos do saber e do poder sacerdotal. Lutero incomodou muito aqueles senhores dizendo que nós, os leigos, éramos sacerdotes! Ainda ouvimos as frases do antigo monge: "Über das sind wir Priester". Deus nos acuda: a patuléia elevada ao estado sacerdotal! O reformador se referia, às vezes, à nossa pessoa como "o senhor todo mundo", com desprezo. Mas, a partir daí, homens de cabeça quente começaram a escrever (e nas doutrinas do direito!) que somos a fonte da soberania. E que, numa República, constituímos a vida. Tais homens não possuíam nem um átimo sequer do grande saber jurídico brasileiro do século 20, seu nome era modesto, como certo Althusius.

No século 18, uma revolução foi feita para apagar os resquícios do mando clerical sobre a política. Nas mudanças trazidas por ela, o princípio de igualdade e de nossa soberania foi definido e proclamado. O nome de Rousseau surgiu em todas as bocas. Com ele, a condenação de todas as corporações que pudessem usurpar as prerrogativas nossas, os soberanos. Não mais cabia a distinção clerical entre "leigos" e "sapientes". Mas os contra-revolucionários do Termidor disseram que o povo nada sabia dos assuntos de Estado. Um deles, D'Anglas, retomou a idéia de que homens sem propriedades, de coisas ou de saberes, seriam nocivos à vida pública. E vieram os engenheiros positivistas da sociedade, os novos advogados. O romantismo conservador viu em nós "eternas crianças", como o poeta Novalis, grande entusiasta da ressacralização política.

Assistimos, os leigos, às lutas ao redor da boa definição republicana. De um canto, alguns nos jogam fora do Estado e de sua gerência, pois confiam apenas nas elites, treinadas em economia, leis, direito. De outro, existem os sonhadores, ou tolos, que asseguram ser a democracia o império dos leigos, um ideal sublime. Temos aliados na imprensa, entre promotores e procuradores públicos (afinal, público também se liga a povo...). Mas eles sempre recebem insultos dos sacerdotes jurídicos e econômicos, quando não dos eclesiásticos, para que deixem a mania de tudo pesquisar segundo os nossos interesses. Com isso, seguimos ignorando o nosso papel no mundo. A nossa única certeza é não mais confiar nas falas sagradas e "infalíveis" dos que fizeram esta monstruosidade que aí está, e que eles chamam "democracia" ou "Estado de Direito", expulsando o juízo do povo. Por falta de nossa confiança, tornou-se ingovernável a República. Mas essa é uma outra lenda, da qual falaremos um dia. Por enquanto fica o nosso testemunho do mais profundo respeito pelas vossas figuras jurídicas, apesar da arrogante amostra de sacralidade corporativa, evidenciada no vosso último artigo coletivo.


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O artigo recebeu, no dia seguinte, o comentário no Painel do Leitor:

Em defesa dos leigos:

"Comovente o artigo de ontem de Roberto Romano ("Tendências/Debates'). Desde quando um douto sábio afirmou que "quem crucificou Cristo foi a opinião pública", faltava uma grande resposta para nos defender à altura. Obrigado, Romano."
Rogério Bonsaver (São Paulo, SP)