quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Correio Popular de Campinas, 23/09/2009

Publicada em 23/9/2009


Ilibada reputação


Roberto Romano

“O que é reputação ilibada? Você poderá dizer que eu não a tenho, mas eu também posso afirmar que você não a tem. A questão é mais complexa”. A frase foi emitida neste final de semana por um deputado do PT por São Paulo. Ele respondia à interrogação de jornalistas sobre o ungido ao Supremo pelo presidente da República. Alguém já condenado em primeira instância pode subir ao Excelso Pretório (como a palavra pode ser ridícula, quando a coisa mergulha no hilariante...) sem óbices de todos os matizes?

Antes de outros comentários, recordo que o parlamentar acima tentou fugir de uma questão objetiva sobre valores e usou as subjetividades como simples camuflagem. Vejamos o raciocínio: sendo a reputação, no seu entender, algo que reside na cabeça de cada indivíduo, ela não apresenta nenhuma diretiva na escolha dos cargos públicos. Sigamos o conselho de Imanuel Kant, o maior conhecedor de moral e de ética da modernidade: o critério mais verdadeiro para aquilatar a moralidade das máximas e ações, reside na sua elevação à universalidade. Se elas puderem ser aplicadas a todas e a cada uma das pessoas humanas, trazem o selo da moral.

Apliquemos o enunciado subjetivista do nosso parlamentar a pelo menos alguns setores da sociedade. Se você, leitor ou leitora, procura um médico, o que dele pensará ao saber que ele já foi censurado (não digo condenado...) no Conselho de Medicina, por quebra da norma ética? Ir até o seu consultório pode ser escolha sua, visto que um médico, mesmo ao quebrar determinados aspectos do código, pode ser exímio especialista na doença que tomou conta de seu corpo. Mas a decisão em favor da ida até ele é, em termos éticos, no mínimo temerária da sua parte. Você poderá sempre escolher inúmeros outros profissionais, tão competentes quanto ele, e que não ostentam a marca de uma sanção negativa, aplicada pelos que examinaram oficialmente a prática do censurado.

O mesmo pode ser feito com engenheiros, psicólogos, economistas, etc. Não se trata, nos casos de censura, punição disciplinar e outras penas “brandas”, de um juízo apenas subjetivo. Antes de punir, os conselheiros examinaram laudos, casos, testemunhas, leis e regras, aplicando-as ao indivíduo ou grupo acusado de erro técnico ou ético. É evidente que todo um Conselho pode errar. Por tal motivo são exigidos processos, documentos, testemunhos lidos e meditados em caso de recurso a outros julgadores ou instâncias mais elevadas. Mas é ilícito reduzir a questão do comportamento profissional ao ângulo da subjetividade. Leis e regulamentos existem para objetivar atos e palavras incompatíveis com a ordem correta da profissão, em favor da sociedade. Reduzir os valores consubstanciados em códigos ao âmbito da consciência de cada um define uma tarefa que, desde a Grécia antiga, é conhecida como perniciosa maestria dos sofistas. No mundo moderno, tal operação que tenta dissolver valores tem o nome apropriado de niilismo moral.

Por mais eficácia que tenha o niilismo, ao impor pessoas e cargos à sociedade, ele conduz à dissolução dos laços sociais, ao esmaecimento das obrigações éticas. Ninguém compraria um carro de alguém já condenado por vender automóveis subtraídos dolosamente aos seus legítimos proprietários. Este argumento foi mais do que fulminante contra Richard Nixon, em memorável campanha nos EUA.

Quando se trata de escolher um magistrado para o Supremo, a questão é mais delicada do que na escolha de um médico ou engenheiro para fins privados. Falamos do interesse coletivo, da ordem pública, do lugar onde as paixões devem ser submetidas às mais lúcidas e isentas análises. É possível discutir se alguém possui, ou não, reputação ilibada. É possível dosar o grau do erro e dosar a pena, considerando os atenuantes devidos à falibilidade de todos os seres humanos, por maiores os seus conhecimentos técnicos.

Mas afirmar, como o fez o nosso deputado, que o juízo sobre a reputação e a prática das pessoas é um caso de... opinião, lança a sociedade e o Estado na corrida para a perda objetiva dos valores. E aí, temos o Brasil de hoje como resultado.