Zelaya, o diabo e o bom Deus
O mundo assistiu um ato comum entre ditadores e monarcas do mundo moderno. Recordemos a cena: na embaixada brasileira de Honduras, o deposto Zelaya recebe, boca aberta, uma hóstia dada por sacerdote. O que é dito na foto? Deus estaria com Zelaya e não com os que o expulsaram do poder. Que um líder empreenda instrumentalizar o fato religioso, não é novidade. Basta a memória de Henrique IV, protestante que, para assumir o trono, abandonou sua crença. Na hora decisiva ele teria afirmado: “Paris vale a missa”. Para garantir o mando, a religião se define como um trampolim. A blasfêmia foi partilhada pelo dono da ordem civil e pela Igreja. A “conversão” tardia transforma um serviço divino em comédia. A peça terminou de maneira sangrenta, pois o ator foi assassinado por Ravaillac, fanático que agiu em nome do ser divino.
Napoleão, que supostamente herda as formas democráticas da Revolução Francesa, não abriu mão da comédia religiosa ao ser entronizado. Para deixar bem claro o papel subalterno da Igreja, ele arrancou das mãos pontifícias a coroa imperial e a colocou na própria cabeça. Humilhação para o Papa, antigo titular da plenitude de todos os poderes na defunta República Cristã. No século 20, tanto Mussolini quanto Hitler aproveitaram a vacilação eclesiástica e a busca vaticana de recuperar poderes, abençoando celerados. Depois tivemos os ditadores que usaram a Igreja para se legitimar: Franco (Cruzada do Cristo Rei), Salazar, Peron, Vargas e militares brasileiros.
Nada pior do que o encontro de João Paulo 2 e Pinochet. O fato é narrado por Berstein e Politi, na sua biografia do Sumo Pontífice. Quando o Papa e o ditador estavam na porta do último, surgiu uma senhora com a pele queimada pela tortura. O papa virou-lhe as costas e, abraçado ao algoz, entrou na casa de quem, parece, salvou a “civilização cristã e ocidental” com meios piores do que os inquisitoriais.
Essas recordações nos conduzem ao golpe (ou contragolpe) ocorrido em Honduras. Quando Zelaya, sem nenhum pudor, comunga “urbi et orbe”, com evidente instrumentalização do culto em proveito político, ele evidencia o quanto seu governo ou estilo de mando é ligado à pior tradição autoritária da modernidade. Quando se fala em golpe, vale citar o clássico livro de Gabriel Naudé, as Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1640). Ali, o defensor do mando absoluto diz com evidência solar: “Nada ajuda mais os assuntos de um príncipe, do que a crença de sua união com Deus”. Esta é a divisa da Razão de Estado e dos regimes modernos e malditos. O governante deve mentir e dissimular quando se trata de convencer os dominados: “quem não sabe dissimular, não sabe governar” dizia o rei Luis 11, não por acaso apelidado “rei aranha”.
E por falar em Naudé, ele enuncia com clareza o que se passa nos golpes de Estado (ou contragolpes). Naqueles atos tudo se inverte “as matinas são ditas antes de serem anunciadas, a execução precede a sentença e tudo se faz (...) ao inverso. Um sujeito recebe o golpe, quando imaginava dá-lo”. Todos os golpes de Estado são ditos, pelos que os perpetram, contragolpes preventivos. Assim, os nazistas golpearam a República de Weimar porque, diziam eles, os comunistas dariam um golpe na Alemanha, à semelhança de 1917 na Rússia. A mesma desculpa é fornecida pelos citados Franco, Salazar, Peron, Vargas, militares e civis da “Redentora” em 1964.
Em Honduras não existe lobo mau nem Chapeuzinho Vermelho. Zelaya tentou dar um golpe e, como já avisara Naudé em 1640, recebeu um contragolpe. Quando ele ia com o milho golpista, os adversários apareceram com o angu de caroço de um regime difícil de ser definido. Fanáticos, como Ravaillac, enxergam Deus de um lado e de outro o Diabo. Mas esta é a comédia maniqueísta do poder, nada mais. Quem pensa com a própria cabeça conhece o truque de Zelaya e os recursos de seus oponentes. Os democratas não precisam, nem devem, preferir um ou outro, mas recusar os dois, meros irmãos gêmeos quando se trata de impor tiranias.