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ANÁLISE
Constituição justifica a deposição de Zelaya DALMO DE ABREU DALLARI ESPECIAL PARA A FOLHA
No Estado democrático de Direito, o respeito às normas constitucionais é absolutamente necessário, e não deverá ser tolerada qualquer tentativa de fazer o que elas proíbem, pois, muito mais do que simples aparato formal, a Constituição autêntica é o conjunto das normas fundamentais do sistema político e jurídico, e obedecê-la integralmente é requisito indispensável para que o sistema seja democrático. Todos, governados e governantes, estão obrigados a respeitar a Constituição, ficando sujeitos à punição legalmente prevista caso pratiquem atos visando, direta ou indiretamente, introduzir emendas que a própria Constituição não admite que sejam propostas. Normalidade constitucional e normalidade democrática são inseparáveis. Para correta avaliação do caso de Honduras, é importante procurar conhecer com objetividade os fatos que lá ocorreram recentemente, as decisões tomadas e sua conformidade com as disposições da Constituição hondurenha. Conforme noticiou a imprensa, a Suprema Corte decidiu destituir em 28 de junho o presidente da República, Manuel Zelaya, e, depois disso, solicitou o apoio do Exército para garantir o cumprimento de sua decisão. Agindo com exagerado rigor, os militares foram à residência do presidente destituído e forçaram-no a sair de casa como estava, de pijama, colocando-o num avião que o transportou para a Costa Rica. Em seguida o Congresso Nacional empossou na Presidência da República, na condição de presidente interino, o presidente do Congresso Nacional, Roberto Micheletti. Para avaliar a significação desses fatos, é necessário ter em conta as disposições constitucionais aplicáveis a todo esse conjunto de circunstâncias. A destituição do presidente pela Suprema Corte e a posse dada ao presidente do Congresso Nacional estão de acordo com a Constituição hondurenha? O presidente destituído pretendia realizar naquele 28 de junho uma consulta pública sobre sua pretensão de mudar a Constituição, num sentido que abriria a possibilidade de reeleição do presidente da República. Ressalte-se que a Constituição de Honduras estabelece expressamente, no artigo 4º, que a alternância no exercício da Presidência da República é obrigatória. E, pelo disposto no artigo 239, o cidadão que tiver desempenhado a titularidade do Poder Executivo não poderá ser presidente ou vice-presidente no período imediato. Além disso, a Constituição não se limita a estabelecer a proibição de reeleição, mas no mesmo artigo está expresso que quem contrariar essa disposição ou propuser sua reforma será imediatamente destituído de seu cargo e ficará inabilitado por dez anos para o exercício de qualquer função pública. Reforçando essa proibição, dispõe ainda a Constituição, no artigo 374, que não poderão ser reformados, em caso algum, os artigos constitucionais que se referem à proibição de ser novamente presidente. Essa é uma cláusula pétrea da Constituição. Ainda mais, para obstar a consulta foi aprovada uma lei pelo Congresso Nacional proibindo consultas populares 180 dias antes e depois das eleições, estando estas já convocadas para o mês de novembro desde o ano passado. Sucessão legal Foi com base nesses dispositivos expressos da Constituição que a Suprema Corte considerou inconstitucional a consulta convocada pelo presidente da República e fez a aplicação do disposto no artigo 239, afastando-o do cargo. É importante assinalar que a Constituição de Honduras é omissa quanto ao processo de destituição de quem atentar contra ela. Só se dispõe que são da competência da Corte Superior de Justiça os processos instaurados contra o presidente da República, estando aí compreendida a possibilidade formal de destituição do cargo, prevista no artigo 239. Quanto à entrega da Presidência ao atual presidente em exercício, Roberto Micheletti, também existe previsão constitucional. De acordo com o disposto no artigo 242, na falta do presidente e do vice-presidente da República, a chefia do Poder Executivo será exercida pelo presidente do Congresso Nacional. Com a destituição de Zelaya ocorreu essa hipótese, pois o vice-presidente Elvin Santos já havia renunciado ao mandato em dezembro de 2008 para poder candidatar-se à Presidência da República nas eleições de novembro. Assim, pois, é juridicamente errado qualificar o governo do presidente em exercício Roberto Micheletti como "governo de facto", pois ele assumiu o cargo com rigorosa obediência aos preceitos constitucionais. Em conclusão, foi absurda e ilegal a violência dos militares na retirada forçada de Zelaya do território de Honduras, mas é certo que naquele momento ele já não era o Presidente da República, pois havia sido destituído por decisão da Corte Suprema. E o cargo foi entregue ao sucessor legal.
DALMO DE ABREU DALLARI, 78, é professor emérito da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário de Negócios Jurídicos do município de São Paulo (gestão Erundina). |