Quinta, 5 de agosto de 2010, 08h20
Felipe Massa e os atos de fala indiretos
Reuters Felipe Massa adota um discurso firme em sua chegada a Hungaroring e garante: corre em condições de igualdade com seu companheiro de Ferrari , Fernando Alonso |
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Um dos episódios da corrida de Fórmula 1 em que Felipe Massa teve o mesmo comportamento que Rubens Barrichello teve há alguns anos fornece um bom exemplo para o que seria uma aula introdutória ao tópico dos atos de fala indiretos. Calma, leitor mal acostumado, que só ouve aulinhas sobre a correta pronúncia de "subsídio" ou sobre a forma que o verbo "fazer" deve assumir em frases como "faz oito anos que isso aconteceu com Rubinho". Calma, que eu explico.
Um inglês muito sagaz descobriu que há verbos que não servem para falar de (como chover, dormir, caçar, votar), isto é, para constatar ou narrar pequenos fatos, mas sim para fazer coisas. Expõe suas teses num livro chamado exatamente Como fazer coisas com as palavras, originalmente, How to do things with words; em francês, a tradução é Quand dire c´est faire (Quando dizer é fazer), muito boa, eu acho.
O inglês sacador se chama Austin. Ele se deu conta de que, se alguém diz "prometo ir a sua casa amanhã", não está se referindo a nenhum evento que pode ocorrer ou não, mas faz uma promessa. Por isso, se não vai, o ouvinte pode cobrar, reclamar. E porque esses verbos fazem coisas, foram chamados de performativos.
Um engenheiro da equipe disse a Felipe Massa, lentamente, pausadamente, escandindo as sílabas: "O - Fer-nan-do - es-tá - mais - rá-pi-do - do - que - vo-cê" (Fernando - is - faster - than - you). E, em seguida, perguntou: "Você entendeu a mensagem?". Um idiota da objetividade (estou lendo um bom ensaio sobre Nelson Rodrigues, de Luis Augusto Fischer, daí a lembrança da expressão) seria capaz de pegar essa oração e fazer dela um exemplo de comparativa. Ou expectorar - mais influência de Nelson! - que o sujeito da oração é "Fernando", um nome próprio, por falar nisso. Ou, pior, é bem capaz de propor uma interpretação de texto com perguntas inteligentes do tipo "quem está mais rápido?". Ou, ainda pior (sim, as coisas sempre podem piorar): se o engenheiro diz isso para Felipe (atenção, para Felipe!), quem é o ouvinte?
Convenhamos que seria ainda pior se mandasse classificar a oração, porque, pela gramatiquinha bem humorada que anda na moda (da Dad Squarisi ou da TV Cultura), a resposta seria que é uma afirmativa. Mas estaria errada! Com o risco da repetição, aliás, tão do gosto de Nelson, só é uma afirmativa para os idiotas da objetividade. Mais idiotas que objetivos.
Pois não é que o Felipe entendeu que era uma ordem para deixar Alonso, o Fernando, passar por ele? Mas como será uma ordem, dirá outro idiota da objetividade, se não há verbo no imperativo? Alternativamente, cadê o verbo "ordenar" conjugado na primeira pessoa do presente do indicativo (Eu ordeno que você deixe o Alonso ultrapassá-lo)?
Felipe pode ser muito obediente (um jornalista disse que ele é um cara legal demais para ser campeão!), pode até ser um pouco lento para a profissão que escolheu, mas burro ele não é: ele ouviu "Fernando está mais rápido do que você" e sacou (e como tem gente que não saca!) que se tratava de um ato de fala indireto. A sintaxe da oração é a de uma afirmativa, mas, no contexto, ela quer ser entendida (o engenheiro tem a intenção de, diria Austin) como uma ordem. Disfarçada de oração afirmativa, mas uma ordem. Um caso típico de "para bom entendedor, meia palavra...". A estratégia é boa também para evitar punições na Justiça, especialmente se a Justiça, além de lenta e cega, for literal também quando não deve ser.
Mas o que é isso, ato de fala indireto? Atos de fala diretos são aqueles em que aquilo que se faz por meio deles está literalmente expresso: "Declaro que" é uma declaração. "Aconselho a" é um conselho, "Afirmo que" é uma afirmação, "Convido para" é um convite. Se um presidente publica um texto no qual diz que, no uso de suas atribuições, "nomeia" ou "demite" alguém, alguém fica nomeado ou demitido. Atos de fala diretos também podem ser realizados sem esses verbos performativos. Se digo "Ganhei 20 000 reais na loto", faço uma declaração, mesmo sem "declaro". Verdadeira ou falsa (no caso, completamente falsa), mas uma declaração.
Como demonstrou ao vivo uma repórter da Globo que cobre a Fórmula 1 (esqueço o nome dela), perguntar a alguém se está cansado pode não ser uma pergunta, mas um convite ou sugestão para que sente (E ela sentou! Juro! Estava ao lado de um banco e sentou! A consideração que a TV tem pela inteligência dos ouvintes é de lascar).
Se pergunto a um padeiro "Tem pão italiano?", espero que ele me traga um, e não que diga que sim. Isto é, que entenda a pergunta como um pedido indireto, e não como uma pergunta direta.
Eu escolho - escolhia, na verdade - os bares pela capacidade dos garçons de entender atos de fala indiretos. Para poder dizer "Tem X?", em vez de pedir que me trouxesse X. Mas acabaram os garçons sacadores. Quase não vou mais aos bares.
Massa, quando parar de correr, pode dar aulas de interpretação "de texto" a quase todos os participantes de mesas redondas.