Últimos dos bárbaros
O trote mancha a ética universitária. Nele surge o fascismo que jaz nas camadas urbanas. País que viveu o século anterior sob tiranias, o Brasil ainda não se adequou ao convívio sob a lei. Getúlio Vargas, com polícia e censura unidas à propaganda do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), e o regime de 1964, com suas câmaras de tortura aliadas aos censores da imprensa, muito fizeram para corroer o caráter dos governados. Como o poder oposto à democracia tem origem direta na força não mediada por ordens jurídicas liberais, parte da sociedade nele enxerga a única forma correta de existência.
Acostumados a obedecer a dirigentes truculentos e arbitrários, os supostos cidadãos ignoram direitos dos mais fracos e os transgridem sempre que possível. Linchamentos, trotes, intimidações hoje marcadas como bullying na internet reiteram os mais baixos padrões éticos. Na sarjeta, tais formas de agir são intoleráveis. Nos câmpus, elas arruínam a essência institucional, põem abaixo todo o labor heroico para gerar saberes e técnicas que favoreçam o povo, o pagador de impostos.
Quando um brasileiro compra alguma coisa, nem que seja uma simples caixa de fósforos, o Estado cobra-lhe taxas, que seguem para os estudos de jovens cientistas ou eruditos em literatura, humanidades, artes. Se o ensino é gratuito, imperativo deve ser o respeito a quem assegura o acesso ao conhecimento. Estudante que acha engraçado ferir o corpo e a alma de cidadãos externos à escola, ou de seus colegas - digamos as coisas sem mascar palavras -, é ladrão.
Em vez de aproveitar o dinheiro público nas formas dignas e belas do currículo acadêmico, ele suga verbas como parasita. Temos o costume de invectivar a corrupção dos Executivos e Legislativos. No entanto, a fraude ética, ao se manifestar no espaço universitário, atinge uma das matrizes de transmissão e invenção de valores científicos e morais. Universidade que tolera trotes ruma para o rebaixamento axiológico. Quem fere colegas e não é punido será legislador corrupto, profissional sem escrúpulos, médico contrário ao juramento de Hipócrates: "Nunca causar dano ou mal a alguém."
O trote universitário surgiu nas primeiras escolas superiores europeias. Ainda vigorava naquele continente o sistema feudal. Os camponeses, embrutecidos pelo domínio dos nobres, para fugir do inferno usavam as peregrinações (como a São Tiago de Compostela). Massas consideráveis, escapando do tacão, seguiram para as periferias urbanas. Naquelas multidões, os estudantes que vinham do campo eram caracterizados como "bichos" pelos colegas citadinos (existiam embates para definir se camponeses e mulheres tinham alma, donde ser "natural" julgar que lavradores embrutecidos eram animais, não humanos). Daí os ritos de "passagem" impostos aos pobres no vestíbulo da universidade. Todos os atos cruéis se justificavam para forçar os "bichos" rumo à "humanidade".
Semelhantes proezas mostram o quanto existiu (existe...), nos câmpus, em matéria de preconceito criminoso em face dos mais fracos, animais ou humanos. Os estudantes que merecem o nome encontrarão notícias sobre a prática hedionda em dois livros distintos. O primeiro, do grande historiador Jacques Le Goff (18 Essais sur le Moyen-Âge), e o segundo, da filósofa E. de Fontenay (Le Silence des Bêtes).
O elo entre os dois livros é fornecido por Claude Lévi-Strauss: "A única esperança, para cada um de nós, de não ser tratado como animal pelos semelhantes, é que todos os semelhantes e cada um deles se experimente como seres que sofrem, cultivando em seu foro íntimo a aptidão interna da piedade que, no estado de natureza, assume o lugar das "leis, costumes e virtude" e sem cujo exercício começamos a compreender que, no estado da sociedade, não pode existir nem lei, nem costume, nem virtude." A passagem encontra-se no magnífico volume da Antropologia Estrutural, Dois.
Uma universidade que não ensina o modo piedoso, a compaixão no trato dos semelhantes, é teratologia ética. Não reprimir trotes significa acatar a via da cumplicidade com o fascismo. Não foi por carência de informações científicas e técnicas que os universitários alemães, italianos, franceses e outros colaboraram nos piores crimes consubstanciados no Holocausto. A causa reside, além da propaganda sobre a "superioridade" etnocêntrica, na absoluta pravidade em relação aos mais fracos.
O caso da Unesp, de agora, não é único na história negra de nossa triste vida acadêmica. Para a leniência muito colaboram doutrinas "libertárias" que buscam apagar as noções de lei e de Estado de Direito. Entre tais doutrinas, a de Michel Foucault. Denunciar o autoritarismo das instituições sem maiores cuidados é esquecer que elas foram produzidas para atenuar a lei do mais forte.
Termino com algo real na própria biografia de Foucault. O autor da História da Loucura, ainda na ditadura, deu palestras na USP sobre o seu tema predileto. O Centro Acadêmico de Filosofia abrigava um ex-aluno acometido de perturbações mentais e que incomodou o filósofo. Este, rápido, pediu ajuda para retirar a pessoa da sala. Repressão...
A Unesp merece todo o respeito, tanto pela pesquisa científica quanto pela integridade dos seus docentes, alunos, funcionários. Mas se estudantes, nos câmpus, agem como pura massa de perseguição, é tempo de exigir a sua retirada.
Spinoza não hesitou em erguer um cartaz contra impiedosos inimigos da lei: "Ultimi barbarorum." Na violência cometida contra "as gordas da Unesp", não seguir a ética spinozana é assumir coautoria.
FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP), É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ''O CALDEIRÃO DE MEDEIA'' (PERSPECTIVA)
Excepcionalmente, Mauro Chaves não escreve seu artigo hoje.