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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 13 de agosto de 2012 a 19 de agosto de 2012 – ANO 2012 – Nº 535
Famílias
no passivo
Economista vai na raiz da crise imobiliáriaque atingiu os Estados Unidos em 2007
Em
um espaço de quase um século, a família norte-americana prosperou e
passou não só a consumir mais, como também adquiriu um imóvel que
começou a valorizar. Sobre este mesmo imóvel tomou mais crédito dos
bancos, fez novas hipotecas, já que havia lastro: um imóvel que seguia
valendo mais. O problema é que chegou o dia em que o processo foi
interrompido e se reverteu, ou seja, o ativo real (imóvel) foi perdendo o
valor, enquanto as dívidas só aumentavam. Foi o princípio da grande
crise imobiliária de 2007 nos Estados Unidos, que desencadeou a crise
financeira internacional em 2008.
Nas
primeiras análises, o abalo ficou conhecido como crise do subprime.
Isso porque os bancos deram crédito às famílias menos abastadas, com
histórico financeiro ruim, o que teria propiciado a instabilidade. Na
realidade, a questão é muito mais complexa, como observa o economista
Everton Rosa, autor da dissertação de mestrado “O papel macroeconômico
das famílias e a geração de fragilidade financeira“, orientada pela
docente Simone Silva de Deos, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp.
Rosa usou o caso norte-americano para comprovar o papel das famílias
como agentes que, da mesma forma que as empresas e as instituições
financeiras, podem tanto contribuir para o dinamismo da economia, como
para o aumento de sua vulnerabilidade.
Para
o pesquisador, as famílias do subprime apenas entraram em um processo
de endividamento que já estava em curso. O aspecto importante seria
justamente as dívidas contraídas pelas famílias intermediárias, algo que
abrange ampla classe média e a classe trabalhadora. Após décadas de
endividamento, juntam-se as famílias menos abastadas, quando o ciclo dos
imóveis já estava se esgotando. O fato de grande parte dos economistas
não atentar para estas questões era algo que incomodava o pesquisador.
Segundo
ele, o instrumental desenvolvido para análise dos ativos e passivos das
relações financeiras pode ser aplicado a qualquer contexto histórico e
econômico, inclusive o brasileiro. “Se a renda e os mecanismos de
crédito continuarem evoluindo no Brasil, acredito que, com o tempo, as
famílias brasileiras terão novas prioridades que excedem a dimensão e as
motivações do consumo, como as aplicações financeiras e as decisões
para o futuro”. Segundo o autor da pesquisa, o Brasil ainda precisaria
criar mercados secundários e sofisticar seus instrumentos financeiros de
longo prazo, bem como modificar a regulamentação do mercado
imobiliário, para abrir uma possibilidade de fragilidade. “Até o
momento, uma crise imobiliária no Brasil, como a americana, é uma
possibilidade afastada”, ressalta Rosa. O crédito imobiliário, que foi o
epicentro da crise de 2007, representa nos Estados Unidos, segundo o
pesquisador, 65% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto no Brasil a
porcentagem é de apenas 5%.
Dados do FED
Rosa
optou por estudar a economia dos EUA justamente pela complexidade das
relações financeiras do país e pelo capitalismo norte-americano ser o
mais sofisticado, profundo e diverso em relação aos instrumentos
financeiros, instituições de crédito e mercado de capitais. Também
contribuíram para a pesquisa as vastas bases de dados disponibilizadas
pelo Federal Reserve (Fed), que é o banco central norte-americano.
Sabe-se
que a crise de 2007 ganhou as devidas proporções em função do processo
de securitização e de difusão dos instrumentos derivativos. De um lado
foram eliminadas as restrições aos empréstimos dos bancos e, de outro,
permitiu-se a difusão de papéis financeiros derivados de compromissos de
crédito nos diferentes investidores. A contribuição das famílias para
explicar a crise era, de certa maneira, colocada em segundo plano. Em
geral as análises se voltavam ao crédito para o consumo. Rosa avalia que
as famílias devem ser vistas além de suas decisões de consumo, isto é,
como agentes que constituem dívidas e adquirem ativos. “A forma como
decidem sobre seus estoques de ativos e/ou dívidas tem efeitos sobre as
próprias decisões de consumo, ou seja, ele pode ser estimulado, indo
além das restrições de renda no caso do enriquecimento com ativos ou com
acesso difundido ao crédito”, argumenta.
O
crédito ao consumo, que pode alavancar a atividade econômica, apenas
seria um fator de fragilidade caso as relações de endividamento fossem
generalizadas entre as famílias e houvesse desemprego em massa. “Nesse
caso, a contrapartida das obrigações financeiras é diretamente a
magnitude da própria renda. Quando se trata de ativos, a comparação é
direta com o valor da dívida”, diz. No caso estudado, o endividamento
das famílias americanas era sobretudo de longo prazo, associado à
aquisição de imóveis. “A abordagem da crise em geral foi de que as
famílias se endividaram para o consumo pela facilidade do crédito. Eu
coloco que a dívida não é para o consumo. As famílias se endividaram no
longo prazo para a compra de ativos que se valorizavam. Essa valorização
permitiu acesso a mais crédito e isso lastreou novas decisões das
famílias, tendo inclusive reflexo na ampliação do consumo. É outra
dinâmica”. Os norte-americanos tinham a sensação de ter enriquecido
rapidamente, mas na realidade o que havia era um ativo carregado por uma
dívida.
Rosa não está demonizando o
crédito. “Nas economias desenvolvidas, o crédito representa em geral
mais de 100% do PIB. A economia acelera pela disponibilidade de
crédito”. No entanto, o endividamento das famílias sugere outros pontos:
enriquecer com a valorização dos ativos representa uma atitude
especulativa segundo o autor. “Elas podem não saber que estão
especulando, mas quem só tem uma casa e decide aumentar o endividamento
em vez de pagar a dívida ou exercer o ganho que teve, quer o ganho”.
Ademais a crise dos EUA não teria sido conjuntural.
O
pesquisador fundamenta sua opinião com base nos estudos de dados do Fed
desde a crise de 1929, especialmente no pós-Segunda Guerra Mundial. “O
endividamento das famílias norte-americanas é estrutural, parte
constitutiva da economia daquele país desde o pós-guerra. O processo
ganha maior dimensão nos anos 80 quando são realizadas reformas no setor
financeiro em resposta à crise das instituições de poupança. A
securitização e a forte presença de gigantes estatais (Fannie Mae e
Freddie Mac) constituíram um amplo mercado secundário de hipotecas,
garantindo a ampliação do crédito imobiliário e o acesso à casa própria.
Nos anos 90, ocorrem novos saltos de endividamento até as crises de
2001 e 2007. O endividamento de longo prazo é o que indica a mudança no
comportamento das famílias, sugerindo um papel mais dinâmico na
economia”.
Cânones revisitados
As
bases para o trabalho de Rosa estão em John Maynard Keynes e Hymman
Minsky. Em 1936, Keynes, considerado o pai da macroeconomia, lançou “A
Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”. Consumo e investimento
determinavam a renda e o produto. “Já estava claro que as duas variáveis
precisam ser analisadas conjuntamente” afirma o pesquisador, muito
embora ressalte que a teoria keynesiana apresenta a especificidade de
ter sido criada num período no qual a massa trabalhadora não tinha
acesso ao sistema financeiro e a formas de renda eram distintas das do
trabalho. “O padrão de disseminação do consumo e produção em massa
começa a se desenvolver a partir de meados do século passado e, além da
distribuição de renda e dos mecanismos do Estado de bem-estar social, a
difusão do crédito foi fundamental neste processo”, acrescenta.
Já
Minsky explorou as relações financeiras da economia descrita por
Keynes, destacando o papel do financiamento das decisões, em particular
do investimento a partir da Hipótese de Instabilidade Financeira (HIF). O
próprio autor destacava que a abordagem dos ativos e passivos – e dos
fluxos monetários que estes estabelecem – deveria ser aplicada a outros
agentes da economia. Rosa trouxe a análise para as famílias. “Eu não
podia olhar para o endividamento familiar a partir do enfoque keynesiano
de curto prazo e sem incorporar os passivos. Minsky, por outro lado,
seguindo e criticando a construção de Keynes, enfatizou os impactos da
dívida no sistema, e embora tratasse de diversos agentes, volta sua
exposição para as empresas e ao investimento. A crise imobiliária
norte-americana não poderia ser avaliada com referência apenas na função
consumo de Keynes”, salienta.
A
conclusão do trabalho aponta para a importante evolução do papel das
famílias na economia. Ressalte-se que, quando fala em “família”, Rosa
está tratando da família em geral, uma vez que as mais ricas já estariam
“sujeitas” aos fatores de crédito e de aquisição de ativos. “As
relações financeiras que eram restritas aos mais ricos se generalizam.
As famílias, de forma geral, apresentam uma inserção financeira dupla,
via ativos e passivos. O crédito facilitado contribui, mas não justifica
a crise norte-americana. As famílias tomam decisões que não estão
relacionadas ao consumo e que afetam a economia, principalmente em
função do acesso aos ativos reais, isto é, à facilidade de crédito
somam-se as expectativas e motivações das famílias que excedem a decisão
de consumo”.
Publicação
Dissertação: “O papel macroeconômico das famílias e a geração de fragilidade financeira”
Autor: Everton Sotto Tibiriçá Rosa
Orientação: Simone Silva de Deos
Unidade: Instituto de Economia (IE)
Autor: Everton Sotto Tibiriçá Rosa
Orientação: Simone Silva de Deos
Unidade: Instituto de Economia (IE)