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Roberto Romano encerra seminário “O futuro da Justiça”
O princípio da responsabilidade, com base em elementos filosóficos dos deveres atribuídos aos que dirigem o Estado, deu o tom da palestra proferida pelo filósofo, livre-docente e professor titular da Unicamp, Roberto Romano da Silva, na manhã desta sexta-feira (28), durante o seminário “O futuro da Justiça”. Partindo do princípio da responsabilidade segundo Platão, Romano teceu considerações sobre a cultura política e a ordem jurídica do Brasil.Publicado 28 de setembro de 2012
O princípio da responsabilidade, com base em elementos filosóficos dos deveres atribuídos aos que dirigem o Estado, deu o tom da palestra proferida pelo filósofo, livre-docente e professor titular da Unicamp, Roberto Romano da Silva, na manhã desta sexta-feira (28), durante o seminário “O futuro da Justiça”. Partindo do princípio da responsabilidade segundo Platão, Romano teceu considerações sobre a cultura política e a ordem jurídica do Brasil.
“Como afirma o maior autor ético do ocidente, no
mundo tudo é fluído, tudo pode se dissolver. E assim é a Justiça. O
princípio de responsabilidade está aí: tudo pode ser destruído. A
Justiça significa a vida. Se não houver compromisso com a vida, não há
compromisso com a Justiça, tampouco com a ética”, sustentou o filósofo. O
seminário “O futuro da Justiça”, reuniu renomados juristas em uma
reflexão sobre atuais desafios da Justiça brasileira e possíveis
caminhos em direção a um futuro auspicioso.
Em painel sobre o tema “Solução de litígios: origem,
atualidade e futuro”, o juiz federal Friedmann Wendpap falou sobre “O
futuro do Judiciário e a Tecnologia da Informação”, abordando a
concentração de poder no Judiciário e o seu deslocamento para o STF.
“Com esse deslocamento do poder, o protagonismo fica com o STF. A
sociedade tem medo do Executivo, descrédito no Legislativo e aposta no
Judiciário devido à eficiência, essa é a explicação racional”, comentou
Wendpap. A unificação do processo eletrônico no Poder Judiciário é
visto pelo juiz como estratégico e necessário, em vista da quantidade de
instâncias na Justiça, o que levaria à existência e necessidade de uso
por parte dos advogados de mais de 100 sistemas diferentes.
A socióloga Maria Tereza Aina Sadek, na palestra
“Perspectivas sobre a solução de litígios”, disse que é necessário
distinguir os tipos de conflitos, os de natureza individual e os de
natureza pública, com o entendimento de que o “judiciário não é um
poder”. “Trata-se de um serviço público de primeira grandeza, que
resolve questões públicas, dos governos, instituições e questões
universais, da população em geral”, comentou a socióloga.
A jurista paranaense Teresa Celina Arruda Alvim Wambier, na palestra “A reforma do Processo Civil: uma análise realista”, falou sobre o trabalho do qual fez parte, para o novo Código de Processo Civil. “O problema do processo civil brasileiro não é o procedimento e sim a performance do Judiciário. Devido ao excesso de trabalho, o Estado não funciona bem e algumas mudanças substanciais poderiam fazer o processo render”, afirmou.
A jurista paranaense Teresa Celina Arruda Alvim Wambier, na palestra “A reforma do Processo Civil: uma análise realista”, falou sobre o trabalho do qual fez parte, para o novo Código de Processo Civil. “O problema do processo civil brasileiro não é o procedimento e sim a performance do Judiciário. Devido ao excesso de trabalho, o Estado não funciona bem e algumas mudanças substanciais poderiam fazer o processo render”, afirmou.
Ela criticou a dispersão exagerada de jurisprudência,
que, na sua análise, acontece quando muda a composição humana do
tribunal. “Os tribunais superiores deveriam pacificar, ter
jurisprudência unificada. Na realidade vivemos situações que se alteram
constantemente. A mudança saudável de jurisprudência se dá de forma
lenta e não com grandes viradas a cada três anos. Isso gera mais
recursos, mais trabalho para os tribunais”, comentou. “Hoje não temos
estabilidade, segurança, com a jurisprudência dos tribunais superiores”,
disse.
O presidente da OAB Paraná, José Lucio Glomb, ressaltou a importância da discussão do tema, suscitando uma reflexão sobre possíveis soluções para os problemas do judiciário brasileiro. O evento contou com a presença do desembargador Noeval de Quadros, do presidente do IAP-PR, Carlos Eduardo Manfredini Hapner; do ex-presidente da OAB Paraná, Newton de Sisti; do advogado Carlos Fernando Correa de Castro, dos conselheiros estaduais Lucia Maria Beloni Correa Dias, Cássio Lisandro Telles e Edni de Andrade Arruda, do conselheiro federal Paulo Henrique de Arruda Gonçalves, entre outros advogados, conselheiros e juízes.
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Palestra de Roberto Romano da Silva
OAB-Paraná, Curitiba 28 de setembro de 2012
O presidente da OAB Paraná, José Lucio Glomb, ressaltou a importância da discussão do tema, suscitando uma reflexão sobre possíveis soluções para os problemas do judiciário brasileiro. O evento contou com a presença do desembargador Noeval de Quadros, do presidente do IAP-PR, Carlos Eduardo Manfredini Hapner; do ex-presidente da OAB Paraná, Newton de Sisti; do advogado Carlos Fernando Correa de Castro, dos conselheiros estaduais Lucia Maria Beloni Correa Dias, Cássio Lisandro Telles e Edni de Andrade Arruda, do conselheiro federal Paulo Henrique de Arruda Gonçalves, entre outros advogados, conselheiros e juízes.
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Palestra de Roberto Romano da Silva
OAB-Paraná, Curitiba 28 de setembro de 2012
Prof.
Dr. Roberto Romano da Silva/Depto. de Filosofia, IFCH-Unicamp.
SOBRE O PRINCÍPIO DE RESPONSABILIDADE
Sumário
:
A) A responsabilização
na filosofia platônica.
B)
A responsabilização no mundo moderno e no Brasil.
C)
Responsabilização cósmica, o nosso planeta.
Sobre o
princípio da responsabilidade. Ementa.
A
reflexão que proponho liga-se aos primeiros
elementos filosóficos da responsabilidade atribuída aos que dirigem o
Estado. Com evidência solar, a tarefa é ampla em demasia. No primeiro instante
apresentarei o princípio da responsabilidade segundo Platão, o maior autor
ético do Ocidente. No segundo, tecerei considerações sobre o nosso mundo e o
Brasil, ao redor da noção democrática da accountability. Terminarei com
algumas reflexões sobre nossa responsabilidade diante de nós mesmos, no planeta
Terra. Os três momentos estão unidos de maneira indissolúvel, tanto em nossa
cultura política quanto na ordem jurídica e no campo ético. Sigamos a linha do
tempo, a mais cômoda quando se trata de uma exposição dirigida a um público
erudito como o composto pelas senhoras e senhores.
***
“Os políticos são considerados como pessoas ocupadas em
construir armadilhas contra os homens e menos propensas a cuidar de seus
interesses. Seu título principal de honra não é a de sábios, mas de hábeis.
Eles aprenderam na escola dos fatos que existirá vício enquanto existirem
homens”. “(Spinoza, Tratado
Político). ([1])
A) A responsabilização na filosofia platônica
É
habitual a idéia de que Platão aconselha um governo de especialistas cujo
mister seria controlar o Estado contra as fileiras irracionais dos cidadãos
comuns. Esta exegese surge de uma leitura demasiado seletiva da República
e brota do silêncio posto sobre livros posteriores do filósofo como é o caso
das Leis.
Em tal escolha arbitrária são afastados inclusive textos autobiográficos
estratégicos como é o caso da Carta Sétima. Nela, Platão afirma
que seu alvo em Siracusa, terra dominada por Dionísio, era substituir o
absolutismo do tirano pelo governo das leis. ([2])
Um estudioso do pensamento platônico,
Glenn R. Morrow ([3])
analisa as Leis, diálogo onde Platão afirma que nenhum mortal pode almejar
para si um mando supremo e irresponsável sem perder conhecimento e integridade.
([4]) Se às
leis falta soberania, o Estado segue para a ruína. A mais elevada qualidade
governamental e civica é a plena obediência às leis. Todos os juizes e
funcionários devem ser responsáveis pela obediência aos preceitos legais. Os
dirigentes são chamados por Platão de Nomophylakes (guardiões da lei),
sendo apenas ministros de uma soberania que não lhes pertence. O título, não
inventado pelo filósofo, era conhecido na prática governamental de cidades
gregas em seu tempo.
A
soberania da lei define um traço relevante do pensamento platônico. Vejamos no
entanto as mudanças que ele propõe em relação às formas existentes na vida
jurídica ateniense. O principal problema reside na ausência de paradigmas
conceituais da lei, defeito notório e desastroso, no entendimento de Platão, das cortes
populares, os dicastérios, palavra que no entanto encontra sua origem em Diké,
a lei ([5]).
Segundo Henri Martin, a presença constante do termo “paradigma” nos escritos
platônicos reforça a interpretação de seu pensamento segundo a qual, para ele,
salvo uma só essência, a indivisível e imutável (Eterna e não sujeita ao tempo
e ao espaço) todas as demais essências das coisas nada oferecem de estável,
sendo estranhas ao domínio científico. ([6]) O
filósofo considera que nas assembléias do povo as opiniões eram partilhadas sem
critérios técnicos e, mesmo assim, determinavam os passos da polis
e produziam instabilidade, o contrário do que se espera de um Estado.
As
cortes populares reuniam grande número de pessoas (de 500 a 2.500) escolhidas
por sorteio antes dos julgamentos. Elas foram geradas pela democracia e
substituiam os tribunais aristocráticos ou oligárquicos, compostos apenas de
magistrados e dirigentes. Alguns daqueles últimos tribunais continuaram a
existir ao lado dos populares, como o Areópago, único a permanecer imune diante
das cortes comuns, pois nele eram julgados os crimes graves de homicídio e os
que exigiam pena capital. Trata-se de uma corte que usufruia de respeito amplo.
Já as populares eram criticadas por gente como Aristófanes, Tucídides e
oradores notáveis que dirigiram invectivas contra elas. Os democratas, no entanto, as defendiam fortemente. A Eclesia, assembleia do
povo, remete os acusados à corte popular, a Helié.
Na Apologia de Sócrates
Platão endereça uma crítica velada
contra os tribunais populares. No célebre julgamento do pensador, os que
decidiriam a sua sorte mostraram-se sedentos de condenação, a baderna foi
tamanha que só com muita dificuldade o acusado conseguiu se fazer ouvir. A Helié, o tribunal onde
Sócrates foi condenado, dispunha de aproximadamente 6 000 jurados saídos da Ecclesia.
Eles eram sorteados segundo a gravidade maior ou menor da acusação. Como ponto
final, os jurados depositavam uma ficha em urnas, vazias em caso de condenação,
cheias quando ocorre o contrário. No diálogo Górgias, Platão ironiza a
justiça onde impera a persuasão retórica “nos dicastérios e demais multidões”.
O termo grego, usado por ele para designar as multidões de juizes é ochlos,
massa instável e irriquieta ([7]). Já na República existe um retrato irônico
do juiz que ronca durante os trabalhos (405 c). Outra critica direta
encontra-se na imagem do povo, “Grande Criatura” que mostra seu lado mais bruto
e estúpido quando julga quem a
desagrada.
Platão
nota a suscetibilidade dos tribunais populares à lisonja e aos apelos emotivos
dos retores e o quanto eles são movidos pelos motivos politicos. O mais grave
segundo o filósofo é o segredo do voto que torna o julgador individual imune às
críticas e ataques (Leis, 876 b). ([8])
Nas cortes populares falta o princípio
da competência profissional.“Em nosso Estado”, diz Sócrates, “um piloto será um
piloto e não ao mesmo tempo um sapateiro; e um agricultor será agricultor e não
também um juiz” (República, 397 e).
É mais
do que batida a idéia de que Platão, por ser crítico da ordem democrática,
rejeita as instituições de seu tempo. É fato que ele suspeita de cortes
numerosas, pois “a multidão não pode julgar com facilidade e nem também poucos
juízes, caso sejam incompetentes” (Leis, 766 d- e). ([9]) Ele
considera que é mais fácil para um tribunal pequeno, com juízes treinados, ir
até o núcleo das questões ao interrogar os litigantes com tempo suficiente
disponível. Os juízes, quando em grande número, serão no máximo bons ouvintes
dos discursos contraditórios. Mas o filósofo pensa que o povo deve ter parte na
administração da justiça. Ele não muda sua opinião sobre cortes amplas e
barulhentas, nas quais aplausos e vaias são ouvidos, mas defende as cortes
populares, as quais devem julgar em sua própria instância. As causas desta
defesa são claras: é mais difícil corromper 500 juízes, em especial se eles são
desconhecidos antes do julgamento, ou intimidar um juri numeroso. O historiador
George Grote ([10])
observa que os tribunais populares de Atenas fizeram o que é difícil para
qualquer sistema de justiça: “they were able to bring wealthy and powerful
offenders to account”. Guardemos esta última menção à accountability pois
voltaremos a ela no mundo moderno.
Platão
almeja ao mesmo tempo as vantagens dos tribunais populares, com seu princípio
de ativa cidadania, e as trazidas pela competência dos juízes. Esta síntese ocorre quando examina o problema
do apelo. Ele divide a administração da justiça em três cortes graduadas, a de
primeira instância e duas de apelo. A primeira é chamada a dos visinhos ou
árbitros. Acima, vêm as populares e a superior, a dos Juízes Selecionados, cuja
decisão é final em todas as matérias nela discutidas. As formas propostas por Platão existiam, de
certo modo, em Atenas. A dos árbitros
era escolhida por sorteio entre cidadãos, para ver se conseguiam algum acordo
entre as partes. Trata-se de um sistema barato e ágil de se conseguir justiça.
A diferença entre o proposto pelo filósofo e as formas existentes reside no
seguinte ponto: os árbitros seriam escolhidos pelas partes e não mais por
sorteio.
Se um
litigante não estivesse satisfeito com a decisão arbitral ele poderia apelar
para a corte superior, correndo o risco de multa se o primeiro veredito fosse mantido. Os membros das cortes populares
seriam escolhidos entre as tribos. A sua competência no entanto, segundo a
proposta de Platão, excluia os crimes que incorressem em pena capital o que não
era o caso das cortes populares atenienses. O filósofo proíbe o juramento : “é
uma coisa terrível” diz ele, “em tantos processos conduzidos num Estado, a
metade das pessoas que encontramos pode ser constituida por quem comete
perjúrio”.
A
mudança mais original dentre as propostas nas Leis é a negação da
autoridade última aos tribunais populares em proveito dos Juízes Selecionados.
Esta Corte, eleita anualmente por todos os dirigentes do Estado, segue um sistema
de refinamento de escolhas até chegar aos melhores juízes. O Areópago
era composto de modo próximo pois nele ex-governantes tinham mandato vitalício.
Mas a proposta platônica difere do Areópago porque não apenas os mais
elevados dirigentes são escolhidos, mas também os que ocupariam cargos mais baixos.
A seleção dos juízes seria materia de mérito, não de privilégio devido ao cargo
anterior. E o cargo não seria vitalício. As mudanças no quadro efetivo seriam
permanentes, o que impediria o uso do poder jurisdicional em proveito de
indivíduos ou de grupos.
Platão
muda radicalmente o sentido dos apelos. Estes eram feitos pelos árbitros ou
magistrados à corte popular, última instância em Atenas. Mas ele, de outro
lado, não assume as posições oligárquicas que desejavam anular o peso dos
juízes populares, pois se deles retira o poder supremo, lhes atribui papel relevante. Em todos os
casos, a sua preocupação é com o excesso de poder concedido às cortes,
populares ou não. Os abusos dos juízes e demais integrantes do mundo estatal
deveriam ser previstos e evitados. Os perigos do abuso eram conhecidos em
Atenas e existiam técnicas contra eles.
Todos os que exerciam cargos, antes da posse, passavam por um exame
acurado (a dokimasía) diante do Conselho e das cortes populares. Após deixar o cargo, todos eram submetidos a
outro exame oficial (eitinai) dos seus atos, sendo
sujeitos a multas e outras penalidades se fossem culpados de agir contra as
leis. Em cada encontro da Assembléia
soberana dos cidadãos, os dirigentes podiam ser suspensos, desde que não conseguissem
votos para se manter no cargo.
Dessas
instituições atenienses Platão mantem duas: o escrutínio e a revisão do
mandato, mas não as deixando ao arbítrio da corte popular. Ele propõe um
conselho de Examinadores (eutinoi) que deveria avaliar os atos
de todos os governantes durante e após o mandato, em intervalos nos quais
relatariam o que descobriram. Em caso de uso errado do cargo, eles tinham
poderes para impôr penalidades ou
multas. Mas o poder destes examinadores, por sua vez, era responsável, porque
um dirigente indigitado por eles poderia
apelar para a corte dos Juízes Selecionados.
Se perdesse, seria obrigado a cumprir as penalidades. Caso contrario,
poderia acionar os examinadores, exigindo a sua remoção ou punição.
O
princípio das propostas platônicas é exposto nas seguintes frases das Leis:
“No caso em que um magistrado tenha ajuizado algo de modo injusto (adikos,
de errado, não reto, injusto) tratando-se dos danos de um litigante, sua
penalidade diante da vítima do referido prejuizo deverá ser o dobro do valor
reclamado. E todo aquele que desejar, poderá ir às cortes comuns contra os
magistrados por causa de decisões injustas, nos casos trazidos diante deles”.
(846 b). A lingua usada por Platão nas
sentenças citadas (ho boulómenos, “Todo aquele que desejar”) é a mesma usada nos
termos legais áticos, quando se descreve uma graphé (ação) que podia
ser assumida por pessoas outras, além da que era diretamente afetada.
Mas
Platão é mais duro ainda. Ele prevê ações contra dirigentes por abuso judicial
e administrativo. No Estado platônico os dirigentes têm ao mesmo tempo funções
judiciárias e administrativas. Eles dirigem e impõem penalidades em caso de
rompimento das leis. Mas todos os
juízes, além dos dirigentes menores do Estado, são sujeitos a processos por
violação da lei. “Nenhum juiz ou dirigente deve ser isento de responsabilidade
(anipeutinos)
pelo que faz como juiz ou dirigente, exceto aqueles cujo juízo é final, como é
o caso dos reis”. No entanto, até mesmo no caso de Siracusa Platão propõe um arkhé
hipeutinos basiliké, um poder real responsável (Carta Oitava, 355 e). ([11]) Se um
integrante dos Juizes Selecionados é suspeito de injustiça, apela-se para os Guardiões das Leis que então assumem
o caráter de uma corte. Platão formaliza um sistema preciso de distribuição do
poder judiciário sem paralelo em seu tempo. Ele difere da ordem democrática,
pois não entende as cortes populares como supremas. E também diverge da
oligarquia e da aristocracia, pois nele os dirigentes superiores do Estado são
responsáveis e não possuem privilégios como os usufruídos pela Gerusia
de Esparta, ou mesmo pelo Areópago ateniense antes de Solon.
Ele planeja, portanto, algo que teve relevância estratégica no mundo moderno, e
que determinou a estabilidade política com a balança entre as forças opostas,
algo fundamental em Locke e Montesquieu. É platônica a noção de uma prática de checks
and balances essenciais no Estado posterior ao absolutismo.
A
última e importante medida a ser notada nas propostas de Platão é a publicidade
dos atos : “A votação deve ser pública. Durante o julgamento os juízes devem
sentar-se uns perto dos outros em ordem de idade e diretamente diante do
acusado e do acusador; e todos os cidadãos que possuam tempo, devem seguir os
trabalhos” (Leis, 855 d). O
filósofo, diz Morrow, procura evitar algo como o sistema secreto da Star
Chamber, algo usado pelos soberanos inglêses para impôr despoticamente
o seu poder contra as leis estabelecidas e as práticas judiciarias comuns.
Quanto
ao papel das leis na ordem política, Platão pensa de modo diretamente inverso
ao democrático, antigo e moderno. Para nós, a legislação deve se adaptar às
modificações sociais ou econômicas, sobretudo no campo da opinião pública. O
meio para tais mudanças é o processo legislativo, com representantes eleitos.
Em sentido oposto, Platão acredita que a opinião pública deve se adaptar às
leis e todas as forças artísticas, religiosas, educacionais precisam ser
dirigidas por semelhante paradigma. Importa muito que o filósofo tenha
estabelecido o princípio da responsabilidade dos governantes e juízes, o que na
revolução inglêsa do século 17 foi chamado de accountability. Diz ele
nas Leis:
“não devemos tornar nossos dirigentes grandes e selvagens, porque desejamos que
nossa cidade seja livre e sábia, plena de sentimentos amigáveis”. (693 b). A base do Estado justo, no seu entender, é a
ética que une sabedoria e integridade como base do imperium legibus solutum. A lei é definida por ele como o eixo que
sustenta a ordem política correta. “Um Estado no qual a lei é sujeita e sem
autoridade está condenado à destruição; mas quando a lei é soberana sobre os
dirigentes e estes são os servos da lei, então vejo o surgimento de todos os
bens que os deuses presenteiam ao Estado” (715 d). ([12])
Platão
requer competência dos juízes, um princípio fundamental da justiça. Tal
competência, na República e obras anteriores às Leis, como é o caso do Político,
é determinada pelo saber técnico. As Leis atenuam o rigor da exigência
técnica. Na República o processo legislativo era considerado pouco
relevante no paradigma da cidade ideal. No Político, a técnica do governante
tinha mais importância do que o fabrico de leis. A causa deste juízo é a noção
de que as leis não podem definir com exatidão o justo e melhor para todos. As
leis são imóveis e não respondem a ninguém, nem podem corrigir a si mesmas.
Assim, apenas o dirigente dialético, o que sabe os caminhos da ciência segura,
chega às situações determinadas no organismo politico. Uma legislação salutar
deve conter meios corretivos, como é o caso do médico que observa o doente em
suas mudanças corporais e anímicas, e não se prende a esta ou aquela receita.
Ele as usa com base no seu conhecimento e na perícia do diagnóstico.
Também
o politico, o técnico que deve gerir a polis, tem preeminência em relação à
lei. ([13]) Nas Leis,
no entanto, se inverte a ordem definida na República. Se neste diálogo os
governantes estavam acima da legalidade, nas Leis, eles recebem o
título de servos da lei. Donde fica mais firme o princípio da responsabilização
dos dirigentes politicos e magistrados. A base da accountability é mais
antiga, portanto, do que as doutrinas puritanas que deram nascimento na
Inglaterra ao moderno Estado de direito.
B) A responsabilização no mundo moderno e no Brasil.
"And to the end all public
officers may be certainly accountable and no factions made to maintain corrupt
interests, no officer of any salary forces in army or garrison, nor any
treasurer or receiver of public monies, shall (while such) be elected a member
for any Representative; and if any lawyer shall at any time be chosen, he shall
be incapable of practice as a lawyer during the whole time of that trust. And
for the same reason, and that all persons may be capable of subjection as well
as rule." ([14])
"And to the end all public
officers may be certainly accountable...". Dá para entender, se pensarmos
o sentido de semelhante frase, a importância da Revolução inglêsa na gênese da
moderna democracia. "Certainly accountable" é algo que marca a
soberania popular bem mais do que eloquentes e falsos discursos republicanos.
Se os nossos "public officers" tivessem a obrigação de prestar contas
o número dos corruptos seria bem menor no Brasil. Mas os nossos “servidores”,
na verdade, são mestres. Qualquer funcionário municipal sente-se à vontade para
tripudiar do "mero contribuinte". E na escala burocrática a
arrogância vai às chefias, daí às diretorias, às vereanças, à prefeituras,
assembléias legislativas, Congresso e palácios. Uma escada hierárquica feita para
arrancar impostos em proveito dos ocupantes dos cargos que deixam de ser
temporários quanto mais elevado o nível dos mesmos, para se transformar em
feudos familiares. O avô é deputado, o filho é prefeito, o neto senador. Os
mesmos cargos são comprados, de um modo ou de outro. Vencer uma eleição no
Brasil, é nada mais, nada menos, do que mercadejar um cargo que deve permanecer
para sempre na família. A nota abaixo traz duas notícias sobre o tema. Ela é
mais do que evidência da oligarquização familiar do Estado brasileiro em todos
os seus níveis. ([15])
Daí a distribuição das "assessorias de confiança familiar" e outras
formas teratológicas do país oficial ou clandestino.
É difícil responder se o povo é
melhor ou pior do que os representantes. Se é melhor ou pior do que a imprensa
que supostamente o informa, é tarefa árdua. Quando falamos de corrupção,
precisamos saber o que fazem e querem os vários segmentos da vida pública que
jamais são desinteressados no terreno que das leis à sua aplicação efetiva.
O trato entre eleitos e eleitores torna-se estratégico
quando se fala em probidade ou responsabilidade. O regime democrático é medido
pelos votos. Mais voto, mais poder. Depois, temos o lugar ocupado pelos
partidos nas alianças, que garantem verbas e verbo nos parlamentos. Ora, a
maioria esmagadora dos partidos caça
votos e os aumentam sem preocupação com
ética ou moral. Eles prometem empregos, verbas, obras nas cidades, tudo
o que pode ser arrancado dos cofres públicos para a prestação de “favores” aos
administrados. E isso deve ser levado em conta, na apreciação da falta de
responsabilidade. No Brasil, diz a professora Maria Sylvia Carvalho Franco em Homens
Livres na Ordem Escravocrata, ([16])
o favor é a mediação universal. Ele integra o mais íntimo da ética na sociedade
e no Estado. Para pensar a democracia e antes de analisar modelos políticos,
creio ser preciso discutir a base sobre a qual se ergue nosso país desde o
nascimento. O Estado, e não realizo um truísmo, depende da sociedade que o
envolve. E a ética domina, em primeiro nível, as formas de relação social. Um
dos sentidos mais relevantes da ética, a ordem dos costumes, é que ela se
caracteriza pela reiteração e automatismo das posturas corporais e no campo dos
valores. Um comportamento ético é o que, à diferença da moral, exibe marcas de
automatismo em sua prática. Agir de certo modo aprendido, preservando assim o
corpo e a mente, é próprio da ética.
A ordem social brasileira segue, de maneira que
poderíamos dizer automática o favor, obstáculo que impede a autonomia dos
eleitores e, de outro lado, distorce a vida parlamentar, a efetividade do
executivo nos projetos públicos e, mesmo, a jurisdição. O favor impõe limites
quase intransponíveis para os relacionamentos igualitários em todas as facetas
da vida pública. No mercado, nos partidos, mesmo em igrejas e seitas
religiosas, o favor define espaços perenes de favorecimentos que tornam os
programas políticos irrelevantes, quando não diretamente falsos. Assim, em vez
de propor para reflexão algum plano macrológico em termos institucionais, penso
ser útil uma análise do favor na vida social e política brasileira. O
favor não é monopólio do Brasil. Em quase todas as sociedades, antigas ou
modernas, ele surge definindo espaços de poder. Mas em países que chegaram à
modernidade, ele é regulado e seus efeitos anárquicos se atenuam em função de
procedimentos impessoais e abstratos. Em nossa terra, no entanto, ele concentra
o imaginário, os valores e as práticas de famílias, grupos, cidades e regiões.
Aqui, político poderoso é o que mais garante favores aos amigos, aos aliados e,
não raro, aos próprios inimigos. O favor alimenta alianças políticas e
conjuras, eleva e rebaixa ministros e chefes de partidos, ordena as pautas
legislativas e atormenta os Executivos. Ele sustenta redes complexas de
nepotismo, apadrinhamentos, interesses, lobbies disfarçados, trocas entre
poderes, corrupção de agentes públicos por empresas privadas. Somos uma
anti-república, ou um império, do favor.
Os nossos políticos jogam perenemente
com o medo do pior, o fim dos favores, ou uma hecatombe econômica se “os
outros”vencerem, ou com a ausência de verbas, obras, empregos. Basta ver a
propaganda nas eleições: se os munícipes votarem contra os indicados por
Brasilia (ou pelo palácio do governador), programas importantes não virão. Caso
votem no candidato do príncipe, benesses fluirão em abundância. Os políticos conhecem os eleitores, não os
idealizados, mas os reais. Os princípios éticos não rendem favores, não rendem
votos, não rendem obras, não rendem poder. É num terreno assim que devemos
pensar a responsabilidade governamental.
A corrupção que gera escândalo possui
dois registros temporais, um diacrônico e outro, sincrônico. Num sistema
necessáriamente corrupto, dada a concentração de recursos nas mão do poder
executivo maior, sem o seu favor nada feito para alcaides e governadores.
Assim, os policiais, o ministério
público, a justiça, a imprensa, tomam conhecimento dos fatos uns após outros.
Mas no mesmo átimo em que surge um escândalo, a rede corrupta opera no Estado e
na sociedade. A polícia, a justiça, o ministério público quase sempre operam post
festum. Mas o sistema, sincronicamente pratica as mesmas coisas
supostamente punidas ao serem descobertas. A nossa prática é a de iluminar um
quadro de cada vez, mas os demais ficam na sombra….até que sejam iluminados.
Os escândalos não constituem
monopólio dos políticos. Eles não raro têm raízes no mercado, na sociedade
civil, instituições sociais. Pensemos apenas nos esportes: boa parte deles é
gerida segundo técnicas de causar inveja aos apadrinhados de Don Corleone.
Mesmo igrejas conhecem o uso privado de seus recursos e não me refiro apenas às
seitas eletrônicas. A católica Conferencia dos Religiosos do Brasil
(CRB), nos anos 70 do século passado quase foi à falência por golpes aplicados
aos seus cofres por administradores. Os casos são múltiplos. Talvez seja mais
grave que um operador do Estado se corrompa, do que um cartola. Mas as pessoas
se habituam ao fenômeno nos dois setores.
Lembremos a lição dos pensadores políticos segundo a qual um Estado (é
mais verdadeiro para o democrático) pode ser assassinado por forças externas
violentas, mas também morre por consunção interna. A lição maior vem dos textos
platônicos : o Estado, um organismo vivo, pode se desagregar se nele os membros
não respeitam a justiça e a moral. No Estado assim doente, o improbo, sobretudo
se no comando, é uma peste (νόσος πόλεως). O Estado adoece quando mal gerido ou
entregue à discórdia. Ele sofre uma inflamação que aumenta sempre,
enfraquecendo mais e mais (República, 556e). O bom
governante cuida da saúde do Estado e da
sociedade.
Mas como agem os nossos governantes?
Certamente não são médicos do corpo político, mas adoecidos como os
administrados. No Brasil podemos dizer que não é possível contar com os
governos usando apenas meios legais e honestos. Quem não quer ser vítima das
máfias precisa aceitar regras mafiosas não escritas. Tal situação é alheia ao
sistema representativo parlamentar ? Quem busca o favor do voto, retribui com
favores ao próprio eleitor, direta ou indiretamente. O sistema representativo
tem advogados como James Madison. Este último sustentava que a delegação aos
eleitos, número pequeno, dera vida a “um corpo seleto de cidadãos cuja provada
sabedoria tinha podido melhor discernir o interesse efetivo do próprio país, e
cujo patriotismo e sede de justiça teria tornado menos provável o sacrifício do
bem do país em favor de considerações particularíssima e transitórias”. Como
fugir das “considerações particularissimas”, os interesses dos eleitores ricos
ou pobres na representação? Os senhores conhecem o remédio : impedir mandatos
imperativos. Sabemos que tal veto começa na Constituição francêsa de 1791: “os
representantes nomeados nos departamentos não serão representantes de um
departamento particular, mas da nação inteira, e eles não terão nenhum
mandato”. Afastados os males da representação corporativa, o eleito se livraria
de prestar favores a um ou outro setor social. A nossa Camara dos
Deputados respira pelo duto que liga
deputados às regiões, com os seus interesses
“particularíssimos”. Boa parte dos representantes passam no interior do país um grande tempo ou
instalam “escritórios informais” onde alocam assessores para ouvir os pedidos
particulares ou particularíssimos dos eleitores.
Maquiavel, nos Discorsi, afirma que “todos os
escritores da vida civil [vivere civile] indicaram que ao constituir e legislar
para uma república é preciso supor que todos os homens são péssimos (…) e que
os homens só fazem o bem quando a necessidade os dirige para ele. Fala-se
também que a fome e a pobreza torna os homens industriosos e as leis os torna
bons”. Ele considera a vida civil
baseada no governo das leis o mais elevado bem. A correta política se baseia na
igualdade diante da lei (aequum ius) e acesso igual aos cargos com fundamento
na virtude (aequa libertas). O
governante deve respeitar a lei, o melhor meio para assegurar o poder.
Como analisar a simbiose pouco virtuosa entre
eleitos e eleitores? Usemos a metáfora. ([17])
Como o mercado econômico, o político foge ao controle que se queira impor a ele
do alto. Nele impera o do ut des
entre vendedores e compradores. O eleitor dá ao partido ou à pessoa o bem
político capacidade de conseguir efeitos desejados. Ele espera que o poder
conferido venha em sua vantagem. Mas, à
diferença do mercado econômico, o eleitor não conhece de antemão o efeito de
sua escolha porque o maior ou menor poder do partido ou candidato a quem deu
seu voto depende do maior ou menor número de votos recebidos de outros eleitores e sobre os
quais ele, eleitor, não exerce influência. No sistema majoritário, onde um
ganha e outro perde, quem vota pelo perdedor perdeu seu voto, suas esperanças
dificilmente serão realizadas. Mesmo num sistema proporcional, onde todo voto é
contado, o maior ou menor efeito de meu voto como base de consenso depende dos
demais votantes, ou seja, da circunstância das quais nenhum eleitor pode ter um
conhecimento pleno.
Mesmo quando seu candidato e partido
saem vitoriosos, o eleitor não pode estar certo do retorno, o pagamento ao seu
voto. E se você vota no prefeito e o partido dele, em âmbito estadual ou
federal, é oposição ? Uma roubada fatal ocorrida pelos Brasis afora. Como
sabemos, verbas e verbo cabem à base aliada e, mesmo nela, aos partidos que
garantem a “governabilidade”, ou, o do ut des cuja tradução é “dando que
se recebe”. Entregue, a mercadoria voto tem valor diminuído, como os produtos
eletrôncos que, ao sair da loja, perdem no preço diante dos que ficam na
prateleira. Assim, o voto na espera do retorno, em vez da metáfora
mercadológica, exige para ser entendido a metáfora do jogo, ou melhor, da
loteria. A melhor prova que se trata de loteria é a curiosidade que cerca as
apurações das urnas, que hoje exige algumas horas. Antes, o afã levava dias ou
meses.
Talvez tenha exagerado no símile
mercado/ eleição. Talvez aquele vínculo seja plenamente verdadeiro apenas para
o voto de clientela. No cálculo de probabilidades clientelístico as coisas são
menos obscuras: voto se meu filho ganhar a concessão de tal ou qual serviço,
voto se uma pensão for dada para fulano, voto se o eleito trouxer creches para
minha cidade, voto se….pouco importa a dimensão do cliente, se é um indivíduo,
se um grupo econômico, se uma cidade ou região.
Existe o voto de opinião não vendido
nem comprado : os setores sociais e indivíduos
ligados aos programas e ideologias dos partidos que no voto sublinha os
valores (liberais, socialistas, religiosos) do que os interesses materiais ou
culturais. Quem vota contra o aborto e contra o casamento gay, procura um alvo
não imediatamente preso ao mercado. Mas
mesmo tais eleitores, com a repetição do gesto eleitoral, ficam mais e mais
próximos dos eleitos, surgindo os seus interesses particulares como superiores
aos ideais anteriormente defendidos. Afinal, ninguém vive apenas do idealismo e
um cargo, uma assessoria, uma ajuda para a própria ONG, tudo atenua o voto de
opinião anterior em prol de uma troca, de um do ut des. O voto de
opinião, a partir desse ponto, se refugia nos que…não votam, os que protestam,
anulam o voto.
Tocqueville se insurge contra o
mercado eleitoral em 1848 e lamenta a degeneração dos costumes pela qual
opiniões e sentimentos são trocados por alvos particulares (particularissimos, como diz Madison). Ele
invectiva a moral baixa e vulgar segundo a qual o eleitor leva em conta a si
mesmo, os filhos, a mulher, os pais.
E
temos o problema lógico e real: o
poder dos governantes depende do número de votos e estes dependem da maior ou
menor capacidade dos políticos para satisfazer as exigências dos eleitores. Há
uma dependência recíproca entre os lados da cadeia : para conseguir recursos, o
eleito deve manter a fidelidade dos eleitores, deve controlá-los. E quem
deveria controlar, o eleitor, passa a ser controlado (voltemos aos “escritórios
informais” que os representantes mantêm no curral, desculpem, nas bases eleitorais.
A coisa é tão “comum” que já entrou para a semântica política “Quantos votos
controla tal deputado, tal vereador, tal líder político?”. Tocqueville acredita
numa elevação da moralidade pública. Stuart Mill, pragmático, acredita em
especialistas do direito que preparem as leis, para depois elas serem
oficializadas pelos representantes e aplicadas pelo governo. Mill divide os
cidadãos em passivos e ativos. Os governos autoritários se baseiam no apoio dos
primeiros, os democráticos, nos segundos. Face à corrupção os primeiros dizem :
“ tenhamos paciência”, os segundos
gritam “que vergonha!”.
As eleições mostram que os eleitores,
na maioria, são quase insensíveis à “questão moral”. Os partidos que defendem a
“ética na política” perdem eleições e
começam a praticar o “que todos os demais fazem”, e são premiados por tal
afastamento do programa ético. Mas se assim pensam e agem é porque conhecem o
eleitor. Ora, mesmo Maquiavel, que não era moralista, diz que ninguém convence
o povo a eleger “um homem infame e de costumes corrompidos” numa república, ao
contrário do que ocorre na monarquia.
A república foi louvada em
contraponto à monarquia, porque a última, segundo os historiadores, representa
um dos regimes mais corrompidos. O nobre, para ser alguém, procura patronos na
corte. Este servem ao rei. Este último, para não ser morto e ser legitimado,
compra apoio do clero e da nobreza, vende cargos para os burgueses. Tudo é
comprado, tudo vendido. Como diz Hegel na Fenomenologia do Espírito, na
monarquia a honra perde vez para a riqueza, cuja circulação passa pelo rei. Na
república, o centro distribuidor se amplia em detrimento do alvo pessoal dos
que se ocupam da riqueza coletiva. Na república, escreve o socialista Napoleone
Colajanni, dos primeiros a lutar contra a Máfia num livrinho denominado A
Corrupção Política, temos o governo que acabaria com os escândalos da
monarquia. Nela “a grande vitalidade e força moral, latente,no povo, não
encontram obstáculos insuperáveis, eliminam os males com processos naturais e
pacíficos, renovam o Estado”. O mesmo Napoleone, no entanto, critica os
conselheiros municipais que, “para se eleger em tempo certo, não deixam sem
tentar nenhum meio, não excluídos os desonestos, e correm, voam, pregam e
colocam em movimento todas as relações diretas e indiretas, possíveis e
imagináveis (…) alí onde existe uma igreja ou teatro, culto religioso ou espetáculo público; onde
existe a festa de um santo ou carnaval, aqui um subsídio, uma pensão, uma
gratificação, um cargo útil, criado expresamente para favorecer uma pessoa; alí
a estrada de interesse privado, uma obra qualquer, uma instituição para agradar
um grupo de conselheiros ou eleitores. Assim são feitas e desfeitas nos
conselhos municipais as maiorias e as minorias, dirigidas por fins
particulares; o critério único que deveria ser soberano, o do bem geral e
indistinto, se perde”. (18])
Isto foi escrito em 1888. Se colocássemos os nomes de cidades brasileiras, no
século XXI a realidade não seria diversa.
No elo entre eleito corrupto e
eleitor idem existe um horror e um fascínio, reprovação e aprovação. Um
analista francês publicou na revista Poderes artigo onde afirma que “um
episódio de corrupção, mesmo com provas, aumenta a venda do Canard Enchaîné, pode assegurar o
sucesso de um livro, mas não faz a república tremer”. S. Belligni, em artigo
denominado “Corruzione e scienza politica, una riflessione agli inizi” ([19])
abre o ponto para a pergunta: por que a
corrupção ? Algumas pistas: a corrupção política se deve em grande parte ao
financiamento dos partidos. ([20])
Em outras situações, perfeitamente tipificadas na lei de improbidade
administrativa vinte anos após sua promulgação, temos em alguns agentes
investidos de poder público ou político o direito de exercer o poder de decidir
em nome e por conta da coletividade nacional.
Modo geral, existem dois jeitos de
ver a corrupção. O primeiro, quando o sujeito político age para adquirir ou
conservar o poder. O segundo, uma vez o poder conquistado, ele o tem nas mãos,
bem firme, usando-o para adquirir vantagens privadas. Os dois jeitos são conectados no mercado democrático: o poder se
conquista com votos, um dos modos de conseguir votos e não ter despesas é
servir-se do poder para ganhar vantagens mesmo pecuniárias. O poder custa
muito, mas rende. Se custa, deve render. Jogo arriscado, às vezes ele custa
mais do que rende se o candidato perde as eleições. Mesmo assim, ele rende mais
do que custa. No primeiro jeito, o político age como corruptor, no segundo,
como corrupto. No primeiro momento ele aparece como comprador de votos e no
segundo como vendedor de vantagens (dos recursos públicos que, graças aos
votos, ele é o dispensador). Para operar de modo corrupto, o político precisa
do segredo. Eis um ponto essencial.
Governantes e cidadãos devem
responder à lei e apenas à lei. Mas o que é a lei? Oportuna advertência
platônica: ela pode ser vista como inflexível pessoa autoritária que não
permite a ninguém fazer algo que ela não mandou. (Político, 294 b, c). Mas
sem ela o corpo político se desfaz, sendo ela, inclusive, digna de respeito
filial (Críton, 50 d). A lei, no entanto, não é obedecida naturalmente
pelos homens. É preciso, diz Platão, que eles sejam educados para seguir normas. É preciso tingir os indivíduos, desde
a mais tenra infância, com a boa tintura
das leis, para que elas estejam dentro deles, não em livros ou monumentos que
podem ser elididos ou burlados. (República, 429 d, 430 a). Naquele terreno deve ser cultivada a semente
da lei. Não estamos na escola platônica, pois a corrupção dos costumes e do
Estado chegaram a um ponto tal que surgem, de vez em quando e cada vez mais
frequentemente, apelos ao líder que não depende de leis para impor a justiça.
Tal apelo não se encontra apenas nos eleitores comuns, mas ressurge em doutrinas
autoritárias, acarinhadas inclusive por antigos militantes progressistas que
pregam o poder de decisão do presidente em prejuízo das intermináveis
discussões e da corrupção endêmica dos Parlamentos. Esses são os caminhos
rápidos para a suposta salus populi, sempre acarinhados pelas almas de extração
totalitária.
A democracia é um processo. Nele, não
existem garantias de vitórias sem amarguras. Cada costume melhorado incentiva a
luta em prol do bem público. Como processo, a democracia edita leis que surgem
para trazer saúde ao corpo político. Hoje, os nossos deputados e senadores,
para não falar de outros funcionários do Estado, agem como lobistas. Suspeito
que a obstrução aos vários projetos que normatizam o lobby vem do fato de serem os representantes em primeiro plano
lobbistas, depois representantes do povo. Quando se ouve falar em bancadas no
Congresso, o que temos são lobistas que atuam em prol de interesses
particularissimos. Outra providência, se quisermos instaurar o princípio da
responsabilidade em nosso país é a
extinção da prerrogativa de foro, lei em favor dos improbos. Apenas quando as
leis puderem prever de modo sincrônico os atos cometidos contra o erário e a fé
publica, poderemos respirar dos escândalos que surgem diacrônicamente, causando
apenas maior corrosão no elo entre sociedade e Estado.
Enquanto não existir responsabilização efetiva das "autoridades"
o Brasil será um anacrônico e virulento Estado absolutista, no qual o soberano
jamais é o povo e sim o ocupante do trono e seus lacaios. O rei absolutista
francês retirava das cidades livres o direito de eleger seus prefeitos e demais
autoridades. E depois o vendia aos mesmos municípios, o mesmo direito de eleger
prefeitos, mas a partir de então submetidos ao fisco real, às vexações dos
fiscais da corte, etc. Quem deseja mais informações, leia o triste Antigo
Regime e a Revolução de Tocqueville.
No Brasil, todos os cargos eletivos
são comprados de um modo ou de outro. E
os cargos abaixo dos ministérios econômicos são passaportes para a delinquência
e fonte de humilhação dos munícipes, os que pagam as contas dos
"governos". E não se diga que a frase "todos os cargos são
comprados" é errônea: basta analisar as planilhas de gastos dos
candidatos, "fiscalizadas" pela justiça eleitoral, para constatar a
verdade, clara como o sol: o rito das urnas é apenas a folha de parreira, posta
entre o eleitor e o eleito. A vergonha nem é mais escondida.
No exercício público o gestor não
pode ter contra si nenhuma acusação ou dúvida. É o que manda a fórmula
restritiva “ilibada reputação” (Illibatus no latim bem conhecido
pelos legisladores, significa “íntegro”, “completo”, “sem mancha”). Quando um
alto servidor do Estado sofre acusações que chegam à sociedade pela imprensa,
ele deixa – mesmo que inocente – de ser “ilibado”, condição a que retorna se o
julgamento legítimo da Justiça assim o decidir. Para que a fé pública não se
manche, todo funcionário, sobretudo os superiores, devem ser ilibados. Ninguém
paga impostos, serve na guerra ou aceita obedecer as leis sob autoridades
(“autoridade” vem da autorização dos subordinados aos governantes) que deixam
de ser absolutamente ilibadas. A prudência e as razões da governabilidade
exigem, pois, que o funcionário (sobretudo o de status superior) se afaste ou
seja afastado enquanto sua reputação deixa de ser límpida. Não se trata de
problema pessoal (em que a amizade tem justificativa), mas de manter a
confiança e a obediência dos cidadãos (empresários, trabalhadores etc.) segundo
a lei.
Os responsáveis maiores pelo Estado devem afastar o servidor enquanto sobre o último restarem suspeitas. Este é o princípio gerado na Inglaterra democrática do século 17 e depois assumido pelos insurgentes da América do Norte e da França, da accountability. Para manter um cargo é preciso que o funcionário, mesmo quando chefe do governo, seja accountable. Essa doutrina foi compendiada por John Milton e acolhida por todas as democracias dignas deste nome. Só para recordar: “(…) Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra”. O enunciado de Milton em The Tenure of Kings and Magistrates continua assim (Milton cita Aristóteles): “unnaccountable is the worst sort of Tyranny; and least of all to be endur´d by free born men”. Não ter um governante a confiança dos dirigidos mostra que ele tem a marca da pior tirania.
Os responsáveis maiores pelo Estado devem afastar o servidor enquanto sobre o último restarem suspeitas. Este é o princípio gerado na Inglaterra democrática do século 17 e depois assumido pelos insurgentes da América do Norte e da França, da accountability. Para manter um cargo é preciso que o funcionário, mesmo quando chefe do governo, seja accountable. Essa doutrina foi compendiada por John Milton e acolhida por todas as democracias dignas deste nome. Só para recordar: “(…) Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra”. O enunciado de Milton em The Tenure of Kings and Magistrates continua assim (Milton cita Aristóteles): “unnaccountable is the worst sort of Tyranny; and least of all to be endur´d by free born men”. Não ter um governante a confiança dos dirigidos mostra que ele tem a marca da pior tirania.
O exercício do poder segundo a regra
da accountability
encontra na imprensa o instrumento da cidadania para detectar descompromisso de
funcionários com a fé pública. É evidente que a imprensa não pode ser instância
julgadora. Mas é também evidente que os julgamentos podem deixar de existir se
atos que atentam contra o Estado e a sociedade não forem trazidos por ela ao
público. Quando um funcionário é acusado publicamente, via imprensa, de
negligência ou crime, para manter a fé pública o correto é afastá-lo até que
prova cabal ou juízo dissolvam as acusações. Um funcionário (do mais baixo ao
mais elevado cargo) não é pessoa comum. Ele representa um coletivo político e
jurídico, o Estado, que precisa se manter íntegro. Caso contrário, desaparece a
base legitimadora do governo, pelo menos a que se regula pela democracia e pelo
direito. E a economia se transforma em navio fantasma, sem rumo.
Tratando-se de ordem institucional,
cedo ou tarde a economia recebe os impactos das urgências políticas. Nenhuma
sociedade “amadurece” ao ponto de separar o político e o econômico. Se
fraturas ocorrem num ou noutro desses aspectos que integram a mesma vida
social, oscila o sistema no seu todo, evidenciam-se descontinuidades etc. País
instável politicamente e onde as regras jurídicas, fiscais, etc. deixam de
ostentar ampla legitimidade, dificilmente será próspero em longo termo. Se a
crise política torna-se aguda, os capitais especulativos temem e buscam outros
países (a famosa “volatilidade”) e os capitais dirigidos à integração mais
profunda na economia não se apresentam, porque seus controladores percebem que
os investimentos correrão riscos devidos à insegurança das regras e sobre quem
asseguraria a aplicação das mesmas regras.
Países avançados em termos econômicos
e políticos, como os EUA e os que integram a oscilante União Européia, mostram
que os fatos de uma ordem repercutem na outra, e vice-versa. As sucessivas
administrações norte-americanas vivem o desafio perene de harmonizar o
desenvolvimento econômico – sobretudo no relativo aos resultantes emprego ou
desemprego – e as agendas políticas. Elementos econômicos ajudam a entravar
agendas políticas. O resultado negativo do referendo francês e holandês, para a
aprovação da Carta Européia, mostra a interdependência dos segmentos políticos
e econômicos. No Brasil não é diferente e, na verdade, é pior: dado que a
corrupção manifesta um desequilíbrio na estrutura federativa e nas relações
permanentes entre os poderes, a política econômica será refém das crises
políticas que, muito rápido, seguem a via do colapso da autoridade pública.
No Brasil, o poder público está
sempre em crise, o que evidencia o Frankenstein jurídico e institucional do
Estado brasileiro. A federação dos Estados é fictícia e os municípios não
possuem autonomia efetiva, sobretudo no relativo ao retorno dos impostos. Desde
o século 19 (a super-concentração do poder nacional foi herdada e mantida pela
República, a partir do Império) os municípios brasileiros vivem longe do poder
central e muito perto da bancarrota. Como não recebem a sua parte dos impostos
em tempo certo e com justiça, os prefeitos e câmaras de vereadores dependem,
para obter recursos, da intermediação dos deputados federais e dos senadores.
Essa prática que se tornou habitual também “educou” os eleitorados regionais e
municipais, que enxergam com bons olhos apenas os parlamentares que trazem
recursos e obras para as cidades. O custo desse “resgate” das verbas
(especialmente no caso do Orçamento) surge no famoso “é dando que se recebe”
com as alianças entre as oligarquias (os parlamentares unem-se a setores da
sociedade civil e dos mercados regionais para conseguir mais força) e os
governos. Se não forem modificadas essas práticas, pode-se fazer tudo, mas uma
das causas maiores da corrupção estará operando. Somos pobres em estadistas,
ricos em vivandeiras políticas.
Tais males vêm de longa data. O Brasil nasceu como estado,
sobretudo após a vinda da família real, na estrita obediência dos princípios
exatamente opostos aos enunciados acima. Dom João veio
para cá com o fito expresso de impedir nos trópicos as “desgraças” ocorridas na
Europa com as revoluções modernas : a inglesa no século XVII, a
norte-americana e a francesa. O nosso estado é explicitamente contrário às
conquistas democráticas, especialmente no que diz respeito aos direitos sociais
e individuais e à “accountability”
das autoridades. Um excelente número da Revista Fapesp ([21])
traz a apreciação do historiador Evaldo Cabral de Mello
sobre a vinda da família real. Ele resume em poucas palavras o que vem sendo um
cuidado meu desde 1978. Refiro-me ao caráter contra revolucionário do estado
brasileiro desde João VI. No século XVIII tal
política era a norma da metrópole, veja-se a repressão que vigorava contra as
idéias dos pensadores modernos como Francis Bacon, John Locke, Voltaire, Diderot, Rousseau e outros (o livro de Eduardo Frieiro,
O
diabo na Biblioteca do Cônego é uma boa fonte) ([22])
e contra toda indústria, imprensa livre etc. Não por acaso nos projetos dos
insurgentes de Minas Gerais prioridade foi dada à instalação de fábricas e
universidades. No governo de João VI e demais monarcas do
Brasil, “qualquer discussão sobre reformas políticas era sempre
curto-circuitada nas rodas palacianas pela objeção de que a Revolução
Francesa também começara por elas”. ([23])
A contribuição das doutrinas contra-revolucionárias em todos os matizes gera a
certeza, entre os que operam o estado brasileiro, sobre a desejável falta de “accountability” governamental,
legislativa, judiciária. A violência de semelhante demissão foi expressa de mil
modos, desde as formas de ditadura positivista, ao liberalismo atenuado por
ideários supostamente científicos, como no caso de Spencer e outros. Getúlio
Vargas sintetiza em poucas palavras a realidade do poder
político nacional, cujo padrão é a tese (tanto entre conservadores quanto nos
progressistas do século XIX) da necessária ditadura, contra a “anarquia” da
vida moderna. Cito nosso estadista: “O estado não conhece direitos de
indivíduos contra a coletividade. Os indivíduos não têm direitos, têm deveres!
Os direitos pertencem à coletividade!” ([24]).
Tal dogma nutriu as duas ditaduras que ensangüentaram o Brasil no século XX.
Não por acaso, a Igreja serviu, sobretudo durante o
período militar, para impor limites ao despotismo e como barreira que protegia
os direitos.
Hoje, apesar de sinais que anunciam
melhorias na ordem política, como é o caso da lei de improbidade
administrativa, a lei da ficha limpa, a lei de acesso à informação e outras, a
fé pública é frágil entre nós. Combater a descrença da cidadania exige
apurações isentas e responsáveis, sem truques ou propaganda enganosa. E a fé
pública se fundamenta na ética. Não existe, em termos políticos, “patrimônio
ético” que não seja dilapidado ou que não seja passível de se perder. O
pretérito de uma instituição jamais garante a sua lisura no presente e no
futuro. A cada novo dia é preciso mostrar, por atos e palavras, que
existe um compromisso efetivo com a ética. Sem tais atitudes públicas e particulares,
a governabilidade é alvo impossível, pelo menos nos parâmetros do direito e não
sob os ditames da pura força ou da propaganda que viola mentes e animos.
Já em Althusius,
dos primeiros federalistas modernos e pensador jurídico protestante “as
cidades, as comunidades urbanas e as províncias são membros de um reino (...) o
vínculo desse corpo ou associação é o consenso, juntamente com a confiança,
estendida entre os membros da comunidade e por eles aceita. O vínculo é, em
outras palavras, a promessa, tácita ou expressa, de comunicar bens, serviços
mútuos, auxílio, aconselhamento e as mesmas leis comuns na medida requerida
pela necessidade e utilidade da vida social universal de um reino. (...)".
Platão,
corretamente, diz que tal confiança é o fundamento da sociedade humana,
enquanto a falta de confiança é sua praga.
Tal fé é o laço de concórdia que une os diferentes membros de uma
comunidade.” A Declaração dos Direitos do Homem
retoma a tese e a eleva ao universal. A democracia moderna, em todas as
suas formas, guarda tais princípios. Estado desprovido de fé pública e de “accountability” não garante direitos de
grupos ou de indivíduos. Não pode ser, portanto, um regime de liberdade responsável.
A governabilidade tem como
pressuposto a obediência, pela cidadania, das leis elaboradas no Parlamento e
destinadas à execução pelo governo. Se os contribuintes não podem confiar na
abrangência universal das referidas leis, se paira no ar a suspeita de que os
ordenamentos legais respondem a interesses não confessáveis, some a
governabilidade. No caso, existe a acusação, bem-fundamentada, de que o partido
principal do governo paga parlamentares para aprovar leis, o que é uma fraude
contra o voto do eleitor e possível acobertamento de interesses menores
sob a forma legal. O sistema inteiro perde legitimidade, a essencial
“accountability” trazida pelas revoluções democráticas da modernidade. Bismarck dizia que duas coisas o cidadão
ignora porque, caso contrário, jamais aceitaria: o modo pelo qual
são produzidas as salsichas e as leis. Ele usa a figura médica antiga que une o
poder político ao “regime”. As leis alimentam o corpo político e devem ser
controladas pela higiene pública. Esta última, em nosso caso, encontra-se
na ética e no decoro parlamentar. Bismarck foi um realista contrário à
democracia . A seguir o seu exemplo, no entanto, as nossas salsichas e as
nossas leis não passariam nunca pelo controle das secretarias de abastecimento.
Elas estão com o prazo vencido, apodreceram.
C) Responsabilização
cósmica, o nosso planeta.
A responsabilidade não deve ocorrer
apenas nos limites internos dos Estados. Hoje ela é cósmica. O nosso planeta,
pequeno grão de areia que desavisados confundem com “a” natureza (chegando ao
ponto, levamente ridículo, de se falar em “salvação da natureza”). Pensemos na
energia nuclear. Na pauta dos embates ideológicos e guerreiros de hoje e de
ontem, ela surge como ameaça, sempre na figura do “outro”, nunca na dos própios
países que possuem a sua tecnologia. Retomemos o caso do Japão, com a enorme
desgraça de Fukushima. As notícias do
Japão desafiam o pensamento ético. Elas também geram asserções sensatas ou
desvairadas, como em todos os traumas coletivos, antigos ou contemporâneos. No
pretérito, as pessoas perguntavam se a culpa pelas desgraças seria dos deuses.
Hoje, elas interrogam a ciência, a técnica, os alvos humanos. A busca delirante
de culpados mostra que tais problemas ainda são discutidos sob o signo das paixões
e do medo.
Para desculpar os deuses, foi criado
o tribunal da Teodicéia. Os homens são indesculpáveis ? Hans Jonas, filósofo
nascido na Alemanha mas com reconhecimento acadêmico pleno nos EUA, refletiu
sobre o futuro a partir da tragédia vivida em Hiroshima e Nagasaki. Longe de
terem sido fatalidade guerreira, aqueles eventos revelam, diz o pensador, uma
senda de horror pelo uso irresponsável das técnicas. Após a energia nuclear,
afirma ele, a natureza passou a ser radicalmente alterada pelos homens. O que
antes era apenas um nexo externo entre a nossa espécie e a natureza (tsunamis,
terremotos, etc) agora tem acréscimo da técnica, e pode resultar em desastre.
Daí, a proposta do “princípio responsabilidade” para uma nova ética. O título
de seu livro Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische
Zivilization ([25]),
merece análise. Quando falamos em “responder”, de imediato vêm à tona as raízes
jurídicas do pensamento. “Respondere” no direito romano significa “garantir em
troca, assegurar”. Verantwortung é responsabilidade diante de alguém que possui
direitos. O vocábulo se aproxima da tese inglêsa e democrática sobre a accountability.
Como vimos, segundo os puritanos inglêses, os Levellers, todas as autoridades do Estado, antes só responsáveis
diante do Ser Supremo, têm o dever de prestar contas à cidadania. ([26])
Voltemos a H. Jonas. Antes
das recentes inovações tecnológicas, o sujeito humano não podia alterar o mundo.
Autores revolucionários, a exemplo de Karl Marx, deixaram de interpretar o
universo, exigindo a sua plena alteração. ([27])
A profecia de Marx, imoderado admirador da técnica foi realizada na era
atômica. Com ela surge enorme aporia, jamais proposta às mentes
humanas. Não se trata apenas do sentido de nossa existência, mas da própria
existência. É possível, com o simples manejo de botão, arrancar a vida do
planeta e, mesmo, aniquilar a Terra.
Não só no campo bélico se instalou o
desejo ilimitado de impor outras formas ao mundo, chegando à sua destruição.
Também na medicina e na genética existe o desejo de alterar a estrutura do
próprio ente humano. No controle dos comportamentos, na medicação, no exercício
da engenharia e da medicina, surgem fatos inquietantes que atraem os
pesquisadores responsáveis. Cito apenas, escolhendo entre muitos, Jonathan
Moreno. Especialista em bioética, consultor do Congresso e do governo nos EUA,
que tem alertado coletividades e indivíduos para os caminhos da pesquisa quando
ela tenta modificar corpos e almas visando a "melhoria" do padrão
humano. ([28])
Como, antes de Moreno asseverou Hans Jonas, estamos realizando tais projetos
mas nada garante que eles estão à nossa altura, ou que temos o direito de os
efetivar.
Não podemos manter atitude
despreocupada com o resultado de nossas façanhas técnicas. Temos o dever de
preservar a vida humana e a do planeta contra experimentos e aparelhos que não
garantem o nosso patrimônio biológico ou espiritual. Jonas não segue Rousseau e
menos ainda os ecologistas místicos. Nele não ocorrem frases ridículas sobre a
"mãe natureza" ou sentenças tolas como "os terremotos e tsunamis
têm origem no abuso humano". Seu diagnóstico é cheio de matizes e admite
que a técnica possui valor inquestionável. O perigo reside no seu uso sem a
necessária prudência. Aliás, ele não deixa de seguir o princípio esperança
elaborado por Ernst Bloch, outro crítico das administrações burocráticas,
marxistas ou capitalistas.
Responsáveis diante de quem ? Tal é a
pergunta de Jonas. Não perante a natureza, pois ela não é portadora de
direitos. Somos éticamente responsáveis pela nossa vida no uso dos recursos
naturais. Não sendo possível interromper o movimento científico e técnico,
importa lutar contra a tirania tecnocrática. É preciso que admistradores e
políticos respondam diante dos governados e de toda a humanidade. Urge que eles
sigam o mandamento que manda agir "de tal modo que os efeitos de tua ação
sejam compatíveis com a permanência de uma vida autênticamente humana na Terra,
durante o maior tempo possível". Jonas não tem fé ingênua em governantes
que se regem sobretudo pelos alvos do poder, mas interpela a responsabilidade
de todas as pessoas. O imperativo categórico é universal.
"A tecnologia, ao contrário da ciência, justifica a si mesma apenas pelos seus efeitos, não por si mesma e, assim, dados certos efeitos, avanços posteriores podem se tornar indesejáveis". (Jonas). Diante de si tuações dolorosas como a do Japão, o princípio da responsabilidade define tarefas para os que, sem cair no misticismo ecológico, desejam ser sucedidos por seres humanos nesta partícula do universo a que demos o nome de Terra, "no maior tempo possível". Sem responsabilidade, morre toda esperança. Tanto no planeta quanto nos Estados nacionais, se quisermos que exista paz e prosperidade geral, devemos seguir o dito do maior pensador ético da modernidade, Spinoza :
"A tecnologia, ao contrário da ciência, justifica a si mesma apenas pelos seus efeitos, não por si mesma e, assim, dados certos efeitos, avanços posteriores podem se tornar indesejáveis". (Jonas). Diante de si tuações dolorosas como a do Japão, o princípio da responsabilidade define tarefas para os que, sem cair no misticismo ecológico, desejam ser sucedidos por seres humanos nesta partícula do universo a que demos o nome de Terra, "no maior tempo possível". Sem responsabilidade, morre toda esperança. Tanto no planeta quanto nos Estados nacionais, se quisermos que exista paz e prosperidade geral, devemos seguir o dito do maior pensador ético da modernidade, Spinoza :
“Imperium igitur, cuius salus ab
alicuius fide pendet et cuius negotia non possunt recte curari, nisi ii, qui
eadem tractant, fide velint agere, minime stabile erit ; sed, ut permanere
possit, res eius publicae ita ordinandae sunt, ut qui easdem administrant, sive
ratione ducantur sive affectu, induci nequeant, ut male fidi sint seu prave
agant. Nec ad imperii securitatem refert, quo animo homines inducantur ad res
recte administrandum, modo res recte administrentur. Animi enim libertas seu
fortitudo privata virtus est ; at imperii virtus securitas”. ([29])
[1] “At Politici
contra hominibus magis insidiari quam consulere credentur, et potius
callidi quam sapientes aestimantur. Docuit nimirum eosdem experientia, vitia
fore donec homines”. Tratactus
politicus in J. Van Vloten e
J.P. N. Land : Opera quotquot reperta sunt,
(Hagae, Martinum Nijhoff, MDCCCLXXXII), v. 2, P. 281
[2] “A Sicilia não deve ser escrava de senhores ou
déspotas (…) mas ser escrava de leis”. Carta Sétima, 334 c-d. Cf. Plato,
ed. Loeb (Cambridge, Harvard University Press, 1975), volume IX, pp. 508-509.
[3] “Plato and the Rule of Law” in Gregory Vlastos (ed.) :
Plato, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosophy of art
and religion, T. II (Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1978),
pp. 144 e ss. O ensaio de Morrow é de 1946. Ele será assumido como fonte
analítica nas páginas seguintes, sempre que o pensamento jurídico de Platão for
examinado.
[4] Leis, 691 c. O trecho examina a
desmesura no exercício do poder e o papel dos legisladores, requerido para
impôr limites aos que exercem o governo. Uso a tradução de Leon Robin : Les
Lois, in Oeuvres complètes de Platon, Bibliothèque de la Pléiade (Paris,
Gallimard, 1953), p. 728.
[5] Paradigma”
surge no campo da lingua grega unido a deiknumi, cujo sentido é “mostrar”,
“indicar”. Quando acrescido da partícula “para”, significa “mostrar, fornecer
um modelo”. A raíz deik, refere-se ao ato de mostrar mediante a palavra, mostrar o
que deve ser seguido. Daí na noção de paradigma ser estratégica a união com
a dike, a lei, a regra. Cf.
Chantraine, P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque (Paris,
Klincksieck, 1983), p. 257.
[6] Cf. Martin, H. Le Timée de Platon (Paris, Vrin,
1981), pp. 82-83.
[7] Ou mob na tradução inglêsa, gentalha
indisciplinada.
[8] Sigo literalmente, em todas as páginas anteriores e
seguintes, as analises de Glen R. Morrow, sem modificações notáveis. O estudo
daquele autor foi publicado em 1946 .
[9] “Um Estado não seria sem dúvida um Estado, se a
constituição dos tribunais não existisse nele em boa e devida forma. De um
lado, nada podemos fazer com um juiz mudo, o qual, como numa arbitragem, nada
acrescenta em palavras, durante a instrução inicial do assunto, ao que dizem as
parte litigantes: ele não seria nunca um juiz apto a decidir o que é direito.
Eis porque é difícil esperar bons julgamentos de um tribunal numeroso ou
composto de um pequeno número de péssimos juízes”. Trad. Robin citada, p. 833,
[10] A History of Greece, from the time of Solon to 403 BC (Elibron Classics,
Adamant Media Corporation, 2001), citado por Morrow, p. 149.
[11] O comentário de Morrow é eloqüente, e o transmito na
lingua inglêsa para guardar a sua dramaticidade: “I confess to a secret
fondness for Plato ´s proposal, because it strikes at a defect in the
administration of justice to which our Anglo-Saxon lawyers seem to be
congenitaly blind, viz. the abuse of judicial power. For the rule of law, as it
worked out in our legal institutions, means the rule of judges, and this kind
of rule, like any other, can become tyranny unless properly safeguarded.” Op.
cit. p. 157.
[12] “… en hêi de an despotês tôn archontôn, hoi de archontes douloi tou nomou, sôtêrian kai panta hosa theoi polesin edosan agatha gignomena kathorô”.
[13] Para toda esta passagem, ver Giuseppe Cambiano : Platone
e le tecniche (Torino, Einaudi, 1971), p. 247 e ss.
[14] Extraido do texto "An agreement of the free
people of England" [John Lilburne, William Walwyn, Thomas Prince and
Richard Overton, 1 May 1649].
([15])
Canal Terra, “Filhos e netos de políticos famosos tentam a
sorte na urnas 15 de setembro de 2012 Candidatos com "pedigree" apostam em
sobrenome dos ancestrais para garantir votos em 2012 Filhos, netos, sobrinhos:
eles têm sobrenomes conhecidos, são parentes de políticos que marcaram a
história do Brasil, e tentam agora uma chance de fazer parte dessa história
também. Candidatos
com o "pedigree" de famílias famosas da ditadura e da democracia
brasileira são candidatos
a prefeito e vereador, e pretendem angariar votos com a lealdade dos eleitores
de seus ancestrais. Em Salvador, o
neto do ex-governador baiano Antonio Carlos Magalhães, ACM
Neto (DEM),
tenta chegar à prefeitura. No Rio de
Janeiro, Rodrigo
Maia (DEM) e Otavio Leite (PSDB),
filhos do ex-prefeito Cesar Maia e do ex-senador Julio Leite, respectivamente,
também disputam o Executivo. Em Manaus, a corrida pelo Paço tem Artur
Neto (PSDB), filho do senador Arthur Virgílio, enquanto em Aracaju a
presença é de Valadares
Filho (PSB),
filho do ex-governador sergipano Antonio Carlos Valadares. Na disputa para câmaras municipais aparecem
Leonel Brizola Neto (PDT),
neto do ex-governador gaúcho e fluminense, concorrendo pelo Rio de Janeiro;
Christopher Goulart (PDT), neto do ex-presidente João Goulart (PDT), e Pablo
Mendes Ribeiro (PDMB), filho do atual Ministro de Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, em Porto Alegre.
Em São Paulo,
Lívia Fidelix (PRTB),
filha do cofundador do PRTB Levy
Fidelix, e Mario Covas Neto (PSDB), filho do ex-governador paulista, também
tentam uma cadeira no Legislativo municipal. "Eu tinha dois anos quando
meu pai foi candidato a primeira vez, vivi a vida inteira no mundo da política,
acho que é um processo natural (entrar na vida pública)", afirma Covas
Neto. O sentimento é compartilhado por Leite, afilhado de batismo do
ex-presidente Juscelino Kubitschek. "Na minha casa se respirava
política", lembra, acrescentando que, nas férias, ia do Rio, onde morava
com o avô ex-senador, visitar o pai, Fernando Prado Leite, ex-deptuado estadual
em Sergipe. Outro que alega a convivência com a política no ambiente familiar
como o motivo de sua escolha de disputar um cargo público é Pablo Mendes
Ribeiro. A decisão partiu, segundo o candidato, dele e da família, em especial
dos dois irmãos. "Achávamos que um de nós precisava seguir o caminho da
política, e como eu sempre fui muito próximo, concordamos que eu seria a pessoa
indicada", recorda. Goulart assina embaixo: "eu nasci fora do País
por causa de políticas", explica, já que Jango mandou seu filho e nora
para longe do Brasil por conta das perseguições da ditadura. Herança de
votos O cientista político e professor de Ética da Unicamp Roberto Romano
discorda dessa "vocação familiar para a política", e entende a
continuidade de sobrenomes no ramo como "um dos defeitos mais graves da
cultura política brasileira". Para ele, passar um nome adiante, por aqui,
é uma espécie de herança, representada pelos eleitores, que "passam a ter
dono, não são mais soberanos". Mário Maestri, doutor em Ciências
Históricas pela UCL (Bélgica), também entende o legado como um aspecto negativo
da tradição política brasileira. "Só porque meu pai ou meu avô tiveram distinção
na política, eu sou de uma família de políticos? Todos nós somos políticos,
desde que a política não seja vista como um meio peculiar de desenvolvimento
pessoal", continua, alertando que a "herança" de sobrenomes na
área é parte de um problema maior: a "despolitização da política".
Covas Neto acredita que a relação de sua candidatura com o nome de seu pai é
inevitável e que deve ganhar votos do "eleitorado que tem respeito,
admiração, carinho e confiança" por seu pai, mas não considera
"oportunismo" se candidatar e beneficiar-se disso. "Seria mais
fácil ser candidato logo depois da morte dele, porque estaria muito mais fresco
na memória das pessoas", argumenta - Covas faleceu em 2001, vítima de
câncer. O candidato acrescenta que
encara também um eleitorado mais jovem, "que só sabe quem foi Mario Covas
de ouvir falar". Goulart usa o mesmo argumento. "A minha geração não
sabe quase nada da história do meu avô, então (o fato de ser neto) só chama a
atenção de quem é mais velho ou tem interesse por história ou política", afirma. Pablo confessa que sua campanha trabalha
"para que as pessoas liguem o 'Pablo' ao nome familiar", mas pondera
que os eleitores também "procuram saber", quando veem o sobrenome, se
ele é filho do ministro. A explicação da ênfase na ligação com Mendes Ribeiro,
para o filho do deputado, é que "o nome é muito forte", e que as
pessoas associam a alcunha a "lealdade e, acima de tudo,
honestidade". Covas pondera, por outro lado, que esses votos
"herdados" também significam "grande responsabilidade".
"As pessoas invariavelmente me dizem: 'se você for x porcento do
que ele (Mario Covas) foi, já está bom'", ilustra. "Em um País onde
político é sinônimo de ladrão e safado, você tem um pai com uma imagem tão
bonita como ele tem, é um grande orgulho e uma grande responsabilidade",
reforça. Goulart usa a mesma expressão e diz que, pela imagem de Jango, não
tentaria se candidatar se "não estivesse preparado" Netos, filhos
e filiações . Na maior parte dos casos levantados pelo Terra, filhos
e netos permanecem na mesma legenda que seus antepassados. Pablo é um desses
casos, e admite que sua escolha partidária foi altamente vinculada à ideologia
do pai. "Sou PMDB
desde os meus 18 anos, nunca cheguei a considerar outras ideologias
partidárias, até porque eu vivia o PMDB com meu pai", afirma. Goulart endossa a posição: "meu avô era
trabalhista, Brizola era meu tio-avô, meu pai foi deputado pelo PDT, lógico que
sou trabalhista". Covas coloca a escolha sob outro prisma, ainda que siga
a tendência da sua formação familiar. "Participei do processo inicial de
criação do PSDB, e tenho a estima de quem ajudou a fundar o partido",
diz. Leite, por sua vez, é uma exceção.
Apesar de ter pai e avô como referência, o tucano afirma que sua trajetória é
"autônoma", e que as posições políticas de seus antepassados - ambos
do PR - não determinaram suas escolhas partidárias. "Meu avô era um liberal,
com o estilo mais conservador mas era liberal; meu pai mais ainda, juscelista.
Eu sou social democrata, centro-esquerda", afirma. "Comecei no
movimento estudantil, me aproximei da corrente do Brizola, e o meu avô em
nenhum momento sugeriu um caminho diferente, o mais importante foi não
interferir na minha diretriz", lembra. Segundo Maestri, os partidos
hoje divergem em "nuances e aparência", com ideologias e objetivos
que se confundem, e transformam-se em "instrumentos de realização de
projetos pessoais que interpretam interesses sociais dominantes". Para o
cientista histórico, a filiação partidária tem mais a ver com marketing do que
com ideologia. "Logicamente um
neto, ou bisnetos, de Brizola vão se aproximar da área do trabalhismo, é
coerente, pois é onde pode retomar o que resta da memória de um Leonel Brizola.
Se fosse neto do (Garrastazu) Médici procurando se apropriar da memória,
logicamente iria para um partido em um espectro conservador", exemplifica.
"Se não, ele perderia alguma parte do diferencial que ele tem no
nome", continua. Para Romano, a escolha partidária, além da apropriação da
memória, está ligada também à estrutura atual dos partidos. Ele acredita que
são os dirigentes das legendas que agem como "oligarcas" e
"donos" das siglas. "Se houvesse uma proibição de permanência na
presidência do partido por mais de quatro anos esse tipo de excrecência não
poderia acontecer, os possíveis candidatos teriam que se submeter às eleições primárias",
argumenta. Segundo o cientista político,
os membros das "famílias políticas" têm mais facilidade para encontrar
apoio a suas candidaturas. "Os donos de partidos impedem a entrada de
candidatos que não estejam no controle deles, e esses candidatos têm que jurar
certa fidelidade se não não tem tempo de TV, nem mesmo a indicação pra
candidato. O que acontece é um afastamento da política do cidadão que não tem
nome famoso", opina. Pablo seria um exemplo dessa "facilidade"
de candidatura. O candidato admite que sua ideia de tentar uma vaga na câmara
porto-alegrense teve "boa aceitação" no partido, quando sugerida, porque
ele tem "nome forte", graças ao pai. "Essa história de filho
herdar o eleitorado do pai mostra que não existe de fato liberdade dos
eleitores, que eles estão sendo garroteados por determinadas famílias",
critica Romano, citando famílias como os Sarney no Maranhão, os ACM na Bahia e
os Bornhausen em Santa Catarina. Em última instância, argumenta o cientista
político, passar o poder de pai para filho, ainda que por meio de eleição, "é um processo
de transformar a coisa pública em coisa privada". "Quando se fala em
nepotismo no Brasil, se pensa na mulher trabalhar no gabinete no marido. Mas (a
candidatura de políticos da mesma família) é uma das formas mais perversas de
nepotismo, porque a coisa pública acaba dominada por determinadas
famílias", completa. Romano alerta que "quando famílias passam a
controlar a vida pública por gerações sucessivas, vê-se que está havendo uma
particularização do Estado", o que em última instância distancia a noção
de democracia. "Pouco a pouco você não está tendo uma república, mas uma
oligarquia, uma espécie nobreza, assim como o duque herdava o ducado, (o filho
de político) vai herdar Estados", aponta. Carreira na política
Maestri questiona outro aspecto da noção de "família de políticos", o
de que "a política passa a ser uma profissão, um modo de ganhar a
vida". Assim, continua, exercer um cargo público deixa de ser uma forma de
participar da política e passar a ser "uma forma de enriquecer, por meios
honestos, 'para-honestos' e desonestos". Ele atribui essa expectativa, em
parte, aos "salários e recursos dos políticos no Brasil, verdadeiramente
assombrosos e absolutamente desligados da realidade do País, do que ganha a
imensa maioria da população". Romano alerta, no entanto, que a
participação de descendentes de famosos na política não é um problema atual, e
nem restrito a conservadores ou liberais. Para ele, a tendência só está
"um pouco mais conhecida" por causa da imprensa e da internet, além das
ações do Ministério Público. "Mas sempre foi assim, esse domínio das
famílias brasileiras é uma das formas pelas quais nós não conseguimos, até
hoje, chegar a uma democracia madura", conclui”. E também na Folha de São Paulo : “Herdeiros de clãs políticos querem chefiar
14 capitais Filhos e netos de políticos são candidatos a prefeito no Rio e
em Curitiba .Professor da UFRJ diz que ampliação do espectro partidário
dificulta perpetuação de famílias no poder PAULO GAMA/LUCAS NEVES DE SÃO
PAULO: Ao menos 19 filhos ou netos de políticos são candidatos a prefeito de 14
das 26 capitais brasileiras.Em cinco dessas cidades, os eleitores têm dois
herdeiros entre os quais escolher: em Curitiba, Gustavo Fruet (PDT) -filho do
ex-prefeito Maurício Fruet- concorre com Ratinho Junior (PSC), filho do
apresentador Carlos Massa, ex-vereador e ex-deputado federal (1991-1995).Já em
Manaus, o ex-senador Arthur Virgílio (PSDB), cujo pai foi deputado e senador,
tem entre seus adversários Jerônimo Maranhão (PMN), filho de um dos fundadores
de seu partido. O duelo de descendentes se repete em outros locais, como
Recife, em Natal e no Rio. Na capital fluminense, Otávio Leite (PSDB),
neto do ex-senador Júlio Leite, é adversário da chapa "puro-sangue
familiar" formada por Rodrigo Maia (DEM), filho do ex-prefeito César Maia,
e a vice Clarissa Garotinho (PR), herdeira do casal Anthony e Rosinha, que já
têm no currículo o governo do Estado e a Prefeitura de Campos (RJ).As duas
candidaturas, no entanto, estão tecnicamente empatadas em terceiro lugar, com
3% e 4%, e veem Eduardo Paes (PMDB) disparar, com 54% das intenções de voto,
segundo o mais recente levantamento do Datafolha. Dez dos
"candidatos herdeiros" concorrem a prefeituras de capitais
nordestinas. Em Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto, da terceira
geração do carlismo, é o líder do mais recente levantamento feito pelo Ibope.
Além dos filhos e dos netos, a lista de candidatos em capitais guarda
outros parentescos. Teresa Jucá (PMDB), mulher do senador Romero Jucá
(PMDB-RO), concorre à Prefeitura de Boa Vista, capital de Roraima. José Benito
Priante (PMDB) disputa a de Belém com o apoio do primo, o conhecido senador
Jader Barbalho (PMDB-PA). CLÃS NA
CÂMARA Na relação dos concorrentes à vereança, tampouco faltam laços de
família ilustres. Em São Paulo, pelo menos oito parentes de políticos tentam
uma vaga no Legislativo municipal no dia 7. Dois irmãos petistas,
Arselino (já vereador) e Jair Tatto, buscam mandatos na Câmara. O clã também
inclui Jilmar, deputado federal, e Ênio, estadual. Em Porto
Alegre, Goulart, neto do ex-presidente João Goulart, disputa pela segunda vez
uma vaga de vereador na capital gaúcha. Não se elegeu da primeira. Sua campanha
escancara o parentesco: "Vote no neto do Jango". No Rio, Leonel
Brizola Neto tenta se reeleger para a Câmara. Da família do ex-governador, há
ainda Brizola Neto, atual ministro do Trabalho. O professor de ciência política
da UFRJ Charles Pessanha afirma ser natural que filhos sigam a profissão dos
pais, "até porque têm vantagens comparativas". A "passagem de
bastão" ganha contornos perversos, diz ele, quando famílias usam seu
capital político para se perpetuar no poder, algo comum aqui por causa da
oligarquização que caracteriza a sociedade brasileira. "Com a modernização
da prática política, o aumento da competição entre partidos e o incremento da
cultura cívica, a prática tende a diminuir, mas não a desaparecer", afirma
ele. Pessanha cita os norte-americanos Kennedy e Bush para lembrar que o
expediente não é uma exclusividade brasileira.
Colaboraram BRUNA BORGES e NATÁLIA PEIXOTO, de São
Paulo Folha de São Paulo, 23/09/2012.
[16] Ed. Unesp, 1999 (5a edição).
[17] Os trechos imediatamente anteriores e os que seguem
constituem uma citação longa, paráfrase quase literal de Norberto Bobbio na
magnífica e amaríssima coletânea intitulada L ‘Utopia Capovolta
(Torino, La Stampa, 1990). Achei de bom alvitre retomar sua palavra porque, ao
descrever os costumes corrompidos da Itália, era como se ele dissesse para nós,
brasileiros : “Qui rides? Mutato nomine, de te fabula narratur”. (Horácio, Sátiras,
livro I, 69-70).
[18] In Giuseppe
Gagemi, Arbitrio ammistrativo e corruzione politica. La linea municipalista
italiana di ispirazione anglosassone (Gangemi Editore, p. 145 e ss).
[20] Cf. Melchionda, Enrico : Il finanziamento della politica
(Roma, Reuniti Ed., 1997).
[21] Número 143, janeiro de 2008.
[22] Friero, Eduardo : O diabo na biblioteca do cônego (BH,
Livraria Cultura Brasileira, 1945).
[23] Trato semelhante assumo em várias publicações
recentes. Entre outras cito “A Independência dos Juízes” in Anais do 2º Congresso Estadual dos Magistrados de
Pernambuco. A independência do magistrado e o jurisdicionado.
Cadernos da AMEPE-Associação dos Magistrados do Estado de Pernambuco - v. 2, n.
14, out. 2007, pp. 31-95).
[24] Discurso de 1/05/1938, citado por L. W. Viana, Liberalismo
e sindicato no Brasil, RJ, Paz e Terra, 1976, p. 213
[25] O Princípio de
Responsabilidade, à procura de uma ética para a civilização tecnológica.
Existem várias traduções, a mais acessível é a norte-americana : The
imperative of responsability, In search of an ethics for the Technological Age
(Univ. of Chicago Press, 1985).
[26] Da imensa literatura, cito apenas a coletânea de
Olivier Lutaud : Les deux révolutions d’Angleterre, documents politiques, sociaux,
religieux (Paris, Aubier, 1978). A documentação dos Levellers e Diggers
(setor mais radical da revolução inglêsa) encontra-se de maneira ampla na
Internet, por exemplo no site Levellers and Diggers Documents On-Line
http://msuweb.montclair.edu/~furrg/gbi/levellersonline.html
[27] “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden
interpretiert, es kommt aber darauf an, sie zu verändern”. “Os filósofos apenas
interpretaram o mundo de diversas maneiras, mas trata-se de transformá-lo”.
[28] Cf. Jonathan M. Moreno : Mind Wars, brain researche and
National Defense e também Undue Risk, secret experiments on humans.
Sobre os mesmos temas, cf Hans Jonas : "Philosophical Reflections on
Experimenting with Human Subjects" in Daedalus, vol. 98, 2 1969, pags.
219-247.
[29] “Um Estado cuja salvação depende da lealdade de
algumas pessoas e cujos assuntos, para serem bem dirigidos, exigem os seus
administradores desejem agir lealmente, não será minimamente estável. Para que
ele possa subsistir será preciso ordenar as coisas de tal modo que os
administradores do Estado, sejam eles dirigidos pela razão ou pelas paixões,
não possa ser conduzidos a agir de maneira desleal ou contrária ao interesse
coletivo. E pouco importa à segurança do Estado qual seja o motivo interior que
têm os homens para bem administrar os assuntos, desde que administrem bem. A
liberdade de alma, con efeito, ou seja a coragem, é uma virtude privada, a virtude
necessária ao Estado é a segurança” (Tratado Político, 1, 6).