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pedagogia da servidão Roberto
Romano afirma que STF, ao justificar seu voto a favor das medidas de racionamento,
atribuiu ao povo um atestado de minoridade
“O
direito do povo a governar a si próprio é um desafio contra
toda verdade. A verdade é que o povo tem o direito de ser governado”(Getúlio
Vargas)
MANUEL
ALVES FILHO
 s
discussões em torno da crise energética brasileira ganharam um novo
e importante viés depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou
constitucionais as medidas adotadas pelo governo para enfrentar o problema. Ao
justificarem a decisão, os ministros do STF lançaram mão
de um argumento estritamente político. De acordo com eles, a população
não cumpriria as metas de economia de eletricidade se as determinações
fossem declaradas inconstitucionais. Para o filósofo Roberto Romano, professor
titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp,
tal posicionamento é inadmissível do ponto de vista democrático.
“Essa postura reforça o conceito da pedagogia da servidão.
Os juízes atribuíram ao povo brasileiro um atestado de minoridade,
de impatriotismo, de ausência de comportamento responsável”,
afirma o intelectual.
Segundo
Roberto Romano, o julgamento do STF seria aceitável, desde que tivesse
partido de outro pressuposto. O professor afirma que o Judiciário poderia
ter ressaltado em sua argumentação o estado de emergência
em que o País se encontra e o conseqüente risco público, recurso
previsto em direito administrativo. “Se uma atitude assim fosse assumida,
seguindo-se uma conclamação dos juízes ao povo, para que
todos ajudassem a superar as dificuldades advindas de um gerenciamento imprudente,
o STF mereceria aplausos”, analisa.
Ao
invés disso, diz o filósofo, os membros da instância máxima
do Judiciário preferiram desrespeitar a cidadania. “A decisão
do Supremo exemplifica todas as doutrinas antiliberais e opostas à democracia
que vêm sendo rearticuladas desde o século 18, como reação
às conquistas jurídicas e políticas consubstanciadas nas
revoluções americana e francesa”, compara. Para os doutrinadores
românticos e adeptos do conservadorismo, explica o professor da Unicamp,
o povo se constitui tão somente em grande massa de crianças irresponsáveis,
que devem ser tuteladas pelos governantes.
Com
uma sentença que se pretende prudente, o STF, reforça Roberto Romano,
“dá mais uma pancada na estaca que prende a república brasileira
em seu pretérito conservador e antiliberal”. O Estado brasileiro,
acrescenta, apresenta fraturas gravíssimas devido ao arcaísmo de
suas funções e das doutrinas que o regem. A representação
parlamentar, lembra o professor, é viciada numericamente e está
em eterna crise por causa dos escândalos de corrupção e infidelidade
programática. Os políticos, afirma, trocam de partido conforme a
sua conveniência, violentando o compromisso assumido com seus eleitores.
Nesse
mesmo cenário, prossegue o filósofo, o Executivo se investe, com
a cumplicidade das lideranças parlamentares, da força legislativa.
O Judiciário, por sua vez, não julga de fato os atos dos outros
poderes. “A decisão do STF sobre a crise energética força
a ruptura definitiva entre os cidadãos e o Estado que deveria representá-los.
Com isso, a fé pública é abalada até as raízes,
impedindo o convívio democrático tanto no plano horizontal (de cidadão
a cidadão) quanto no vertical (dos cidadãos diante dos administradores)”.
Roberto
Romano vai mais além em sua análise e chama a atenção
para o risco futuro proporcionado por esse tipo de postura. Se essa via se radicalizar,
adverte, haverá dificuldades para garantir o pacto que permite a existência
de uma sociedade segura, em um Estado democrático de direito. “A violência
urbana que nos arrasa é indício do que pode ocorrer numa terra onde
a Constituição não atende aos reclamos dos cidadãos,
sendo utilizada apenas em favor dos governantes”, exemplifica.
Autonomia
– A atual Constituição brasileira, ressalta Roberto Romano,
tem uma diferença significativa em relação às anteriores:
a doutrina da autonomia, que, em última análise, representa a sua
própria essência. É o que o professor da Unicamp chama de
autonomia-cidadã, princípio que rege as atividades dos estados,
Ministério Público, universidades e da sociedade diante da administração
pública. Este núcleo da Carta Magna, de acordo com o intelectual,
foi fortemente atingido pela posição do STF, que impôs aos
contribuintes a sobretaxa e os possíveis cortes no fornecimento de energia
elétrica. “A maneira de afirmar a irresponsabilidade de todos e de
cada um dos cidadãos constitui um golpe contra o espírito de autonomia”.
Romano
recorre a Imanuel Kant, o pensador da autonomia, para lembrar que só existe
liberdade quando a lei é universal, quando é respeitada por ela
mesma. Caso seja imposta pelas vias do medo e da punição, a legislação
tende a ser recebida pela sociedade como algo emanado de uma vontade alheia à
sua. Conforme o filósofo, isso se chama heteronomia da vontade. Um indivíduo
heterônomo, ressalta, jamais será livre. “Assumindo a tese da
punição imposta pelo Executivo federal, os juízes do STF
a pioraram. Eles proclamaram que o povo brasileiro só respeita a lei se
tiver castigos no horizonte. Na perspectiva de Kant, está é uma
efetividade despótica”.
Precedentes
– A posição do STF sobre a crise energética não
pode ser analisada fora da perspectiva histórica. O Estado brasileiro,
de acordo com o professor, tem origem na contra-revolução que sucedeu
as políticas democráticas implementadas em várias nações
após as revoluções francesa e americana. Dom João
VI, ao fugir de Napoleão, trouxe para o Brasil um projeto de Estado que
prevenia a possibilidade de eventos como o de 1789. Antes mesmo da independência,
mas principalmente depois dela, o País tornou-se um eficaz moderador das
teses democráticas e liberais, tanto em seu território quanto no
exterior.
A
técnica utilizada para atenuar o poder do povo foi a instituição
do Poder Moderador, concentrado na figura do chefe de estado. A proclamação
da República, diz o filósofo, não aboliu tal instrumento.
O presidente continuou exercendo a preeminência diante dos outros poderes.
A prática foi reforçada com a República Velha, que tinha
traços fortíssimos do positivismo e de sua tese de ditadura. O período
ditatorial Vargas – formado na escola positivista do Rio Grande do Sul –
aumentou o poder do presidente em detrimento de outros setores do Estado. Todas
essas ações, esclarece o professor da Unicamp, foram executadas
para atenuar ao máximo as teses democráticas e de soberania popular.
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