Os réus morais
do mensalão
José Nêumanne
Assim como retiram assinaturas de projetos, líderes governistas renegam nota anti-STF
Há dúvidas se
os efeitos do julgamento do escândalo que se tornou conhecido como
mensalão – e agora se vê que por motivo justo, pois havia mesmo
parlamentares e dirigentes
partidários recebendo propinas mensais – ajudarão a sanear a política
brasileira de seus péssimos costumes ou se ele será uma exceção. Não no
sentido de servir a interesses discricionários, como definiu o insigne
professor Wanderley Guilherme dos Santos, presidente
da Casa de Rui Barbosa, até segunda ordem um órgão do governo, ao Valor Econômico,
mas significando algo anômalo, fora do comum e que não produzirá
efeitos. Uma coisa, porém, é certa – e, até agora, isso já o torna
histórico: trata-se de uma tomografia
que expõe sem piedade as vísceras apodrecidas da República. E é capaz
de revelar detalhes da promiscuidade e, como já se pode constatar,
também da desfaçatez e da pusilanimidade sem pudor da elite que manda e
desmanda no País.
O imenso
pântano de cinismo e caradura em que essa elite chafurda já foi descrito
em detalhes no manual da corrupção na administração pública nacional
que é o livro
Nervos de Aço (Topbooks, Rio de Janeiro, 2007), do delator do
esquema de compra de votos das bancadas governistas com dinheiro
público, Roberto Jefferson, presidente nacional do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). Mas como tudo o que expõe sesquipedais
rabos de palha, a publicação caiu em ostracismo. Agora, não mais: a
malversação do dinheiro público tem sido descrita em capítulos, lidos
nas tardes de segunda, quarta e quinta-feiras pelo relator do processo
no Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa.
O relato, feito com lógica de orgulhar Aristóteles e lido com dicção
perfeita e no tom certo, é seguido com interesse pela sociedade graças à
oportuníssima exibição ao vivo em canais por assinatura na televisão. E
também é reportado pelos meios de comunicação,
para desespero de todos quantos pensavam que seriam capazes de mandar o
velho Abraham Lincoln às favas, pois conseguiriam enganar todos durante
todo o tempo que lhes conviesse.
O trabalho
minucioso e competente do ministro trouxe à luz a forma como foi
aparelhada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no poder uma instituição
secular e respeitável
como o Banco do Brasil (BB), fundado no começo do século 19 pelo
monarca português e que virou símbolo da passagem de nossa condição
colonial à de sede da Corte. E narra o que no livro de Jefferson pode
até ser considerado retaliação de perdedor: a entrega
de envelopes (e até malotes transportados em carros-fortes de bancos)
com gorjeta usada para convencer parlamentares cúpidos e chefes
partidários venais a dizerem amém na Câmara e no Senado às ordens
emanadas do que passou a ser todo-poderoso Executivo.
Atrás do
propinoduto de que Marcos Valério foi só “operador”, no dizer do delator
e confirmado pelo relator, foi engendrado o verdadeiro ovo da serpente,
o golpe sub-reptício
com o objetivo sórdido de instalar uma ditadura dos políticos
profissionais sobre os cidadãos comuns. O julgamento do mensalão
decidirá o destino de gestores acusados de desviar recursos públicos
para aplicarem em seus projetos partidários e nas próprias fortunas
pessoais. E terá o condão de decidir de vez que em nosso frágil, mas
irreversível, Estado Democrático de Direito todos são de fato iguais
perante a lei. A tentativa de reduzir crimes maiores, como corrupção
ativa e passiva, peculato e lavagem de dinheiro,
a um delito menor, o caixa 2 de campanha (“recursos não
contabilizados”, no eufemismo da vez), partiu do pressuposto de que eles
podem fazer o que não nos é permitido. A contabilidade paralela da
Daslu levou a empresária Eliane Tranchesi à prisão. Não a de
Delúbio Soares. “Pois, afinal, é praticada por todos os partidos. Se os
outros podem, por que o PT não?”, questionou o chefão geral, Luiz
Inácio Lula da Silva, como acaba de fazê-lo o único acusado do esquema
que se beneficiou da delação premiada, o
chef Silvio Pereira.
A cúpula
petista no poder republicano não tinha dúvidas de que a teoria do padim
transmitida a seus causídicos milionários seria aceita facilmente no
plenário do Supremo.
Afinal, oito dos 11 ministros foram nomeados por um presidente do
partido e teriam de ser-lhe gratos. Se o BB foi aparelhado, se a Casa
Ruy Barbosa foi aparelhada, se a Petrobrás foi aparelhada, por que não o
STF? A verdadeira elite dirigente esqueceu-se de
prestar atenção em Chapolim e não contou com a astúcia dos ministros
que, imunes à demissão, tratam de evitar que a gratidão emporcalhe sua
biografia. O general De Gaulle disse muito bem que a ingratidão é a
maior virtude de um estadista.
E é assim que
o velho conceito da igualdade de todos perante a lei está sendo
garantido pelo STF e os políticos viciados em caronas em jatinhos
(quando não dispõem do próprio
avião) e nas festas promíscuas pagas pelos sanguessugas do Estado
exercem o direito que os galhofeiros verteram para o latim: jus
sperneandi. O direito de espernear é a única explicação para a carta
dita de apoio a Lula, articulada pelo presidente nacional
do PT, Rui Falcão, e assinada por seis partidos da chamada “base
governista”, comparando a atuação do STF ao movimento que levou Getúlio
Vargas em 1954 ao suicídio e à derrubada de João Goulart em 1964.
O presidente
do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Valdir Raupp,
disse que a assinou “constrangido”. Terá o Falcão do PT recorrido a um
revólver para convencê-lo?
Parlamentares do Partido Democrático Trabalhista (PDT) desautorizaram
seu líder, Carlos Lupi. Por que, então, não o depõem da presidência?
Habituados a retirar assinaturas de projetos, ao terem atendidos seus
pleitos pelo Executivo, devem calcular a inteligência
alheia pelo conceito que têm da própria honra. Ao assinarem o documento
tragicômico e tentarem fugir da responsabilidade por isso, incluem-se, e
também Lula, na categoria de “réus morais” do mensalão. Pois não é isso
mesmo que eles são?
Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde
(Publicado na Pág A2 do Estado de S. Paulo de quarta 26 de setembro de 2012)