Para que servem as universidades
17 de setembro de 2012 | 3h 06
José Goldemberg
A universidade está sob ataque e os atacantes são
internos e externos. Entre os "inimigos" externos, um dos mais atuantes
no momento é Peter Thiel, um importante executivo americano da área de
informática que oferece bolsas para que estudantes abandonem as
universidades e criem empresas nos Estados Unidos e na Europa, onde já
existe, segundo ele, suficiente tecnologia disponível.
Em países industrializados já existe, de fato, muita tecnologia
disponível, o que não significa, contudo, que novos avanços não estejam
ocorrendo todos os dias. O mesmo se aplicaria aos países em
desenvolvimento na Ásia, na África e na América Latina, que poderiam
simplesmente copiar o que deu certo nos Estados Unidos, na Europa e no
Japão.
Essa visão imediatista e colonialista de Peter Thiel encontra aliados
nos "inimigos" internos das universidades públicas em nosso país, com
greves infindáveis baseadas, em geral, em reivindicações corporativas,
que prejudicam não só estudantes, como também as pesquisas em andamento.
Se vivesse no Brasil, o executivo americano provavelmente apoiaria a
greve e a consideraria uma demonstração viva de que as universidades não
são necessárias.
As ideias de Peter Thiel são incorretas em número, gênero e grau. Se
fossem levadas a sério, matariam a "galinha dos ovos de ouro" que é a
pesquisa científica, na qual se origina a inovação tecnológica.
Cientistas, de modo geral, são movidos por uma profunda curiosidade
intelectual de entender como as coisas funcionam. A glória, para eles, é
conseguir estabelecer claramente a relação entre causas e efeitos.
Essas descobertas podem ter imensas consequências práticas e resultar em
ganhos financeiros. Raramente, no entanto, isso é feito pelos próprios
cientistas, e sim por empreendedores que põem em prática os seus
ensinamentos.
Pode parecer divertido e lucrativo fazer jogos eletrônicos, iPads,
Facebook, com as inúmeras variantes dos computadores de hoje, e se
tornar bilionário. Sucede que esses desenvolvimentos só se tornaram
possíveis com a invenção dos transistores na década de 50 do século
passado, a qual não teria sido possível sem a evolução da física moderna
nos anos 1930.
Além disso, nos países em desenvolvimento o problema não é só copiar o
que os países industrializados fizeram antes, mas escolher o que
copiar. Para fazê-lo é preciso haver cientistas capazes de entender a
ciência e a tecnologia moderna, que é o que universidades normalmente
fazem. Em muitos casos, copiar não basta porque são necessárias
adaptações ao uso de materiais disponíveis nessas nações e às condições
locais.
Países como a China estão se beneficiando extraordinariamente desse
modo de fazer as coisas, combinando boas escolhas com mão de obra
barata. A prioridade para a China não tem sido o mercado interno, mas o
imenso mercado mundial, onde os padrões de qualidade dos produtos
consumidos são elevados e existe competição. Daí a necessidade de usar
tecnologias modernas e também o papel da inovação, cuja função é
descobrir a melhor maneira - e a mais econômica - de fabricar os
produtos.
Não é o que está ocorrendo no Brasil, onde o protecionismo
alfandegário dificulta a entrada de produtos do exterior e a indústria
se concentra em atender o mercado interno, que é pequeno, apenas cerca
de 2% do mercado mundial, abrindo mão de competir nos 98% restantes,
como faz a China. Na ausência de competição, a indústria nacional
utiliza frequentemente tecnologias obsoletas, por não ter motivos fortes
para inovar. Quando as barreiras alfandegárias caem, a indústria pode
simplesmente ser levada à falência, como se deu em 1990 com a indústria
têxtil, que não tinha acesso à tecnologia moderna.
Qual o papel das universidades neste panorama?
Historicamente, o sistema produtivo, tanto nos países
industrializados como nas nações em desenvolvimento, gera demandas do
setor universitário. As principais das quais são as seguintes:
A necessidade de garantir acesso a novas matérias-primas à medida que as tradicionais se tornam difíceis de obter.
A procura de novas soluções, forçada pelas restrições ambientais.
Automatização crescente dos processos industriais, que resolve
problemas de aumento de produção, mas pode criar gargalos técnicos cuja
solução exija inovações.
Mudanças de padrões de consumo e os desenvolvimentos tecnológicos que eles possam exigir.
A competição é o grande motor da busca de inovações. Quando ela não
existe, o sistema produtivo definha e morre. Exemplo disso é o que
ocorreu na extinta União Soviética, onde os setores científicos e
universitários que trabalhavam em áreas em que o governo tinha grande
interesse - armas nucleares e foguetes para lançamento de ogivas
nucleares - foram privilegiados e tiveram enorme sucesso. Já o
desenvolvimento de produtos de consumo que melhorariam as condições de
vida da população tinham baixa prioridade e baixo envolvimento dos
cientistas e das universidades, e essa foi uma das causas do
desmoronamento do sistema soviético.
Daí a necessidade de manter universidades de alto nível, isto é,
centros de estudos, pesquisas e inovação, como é feito na Europa há
quase mil anos. São as grandes universidades de hoje, algumas delas no
Brasil, que produzem as novas ideias e novas tecnologias que vão dar,
amanhã, origem a empreendimentos comerciais, e não o contrário. É uma
ilusão esperar que elas, por si sós, modernizem o sistema produtivo, mas
precisam estar preparadas para responder às demandas da sociedade.
É por essa razão que qualquer medida que leve à redução da qualidade e
do potencial das universidades brasileiras, como a criação de cotas
raciais, por exemplo, é equivocada.
* PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, FOI REITOR DA USP E MINISTRO DA EDUCAÇÃO