Escola Superior do Ministério Público
Vinte Anos da lei de improbidade administrativa
Dr. Roberto Romano da Silva/Unicamp.
Sinto
decepcionar as senhoras e senhores se esperam uma síntese dos eventos
brasileiros que sucederam a lei em pauta. Direi algumas coisas pouco
agradáveis. No final, trarei à lume a origem das palavras por mim
empregadas. Penso que os senhores sabem sobre o tema bem mais do que eu.
Nesta comemoração, pessoas mais gabaritadas falaram e falarão sobre os
objetos a serem refletidos.
Uma
lei. Uma lei muito boa. Mas, o que significa mesmo uma lei ? John
Stuart Mill reconhecia que o bom governo depende das boas leis. Mas
acrescentava que as boas leis precisam de bons homens para serem
aplicadas. “Para que servem”, pergunta ele, “as boas regras de
procedimento, se as condições morais do povo são tais que as testemunhas
mentem com muita frequência e os juízes se deixam corromper?”. O que é a lei ? Um texto onde a lingua se paralisa. A
lingua, tanto a dos gestos quanto a oral, segundo Platão, é impotente
(ἀσθενές) para expressar e colher conceitos e realidade. Por tal motivo, na Carta Sétima
(343a) ele afirma : "quem reflete (e é provido de razão) nunca terá a
ousadia de depositar na escrita os seus pensamentos (...) deles fazendo
algo imutável, escrito."
Contra
o fetichismo da escrita no saber e na lei, Platão enuncia : “quando
observamos obras escritas, em forma de leis por algum legislador que
considera tais coisas sérias, assim dispostas em escritos (…) saibam que
os mortais arruinaram totalmente a sua razão". (Carta 7, 344c). Dessa
descrença no texto da lei, surgem no diálogo Político
o elogio da pessoa animada, racional, que exerce o governo. "A arte de
legislar, evidentemente", diz o Estrangeiro ao jovem Sócrates, "pertence
à arte real" (δῆλον ὅτι τῆς βασιλικῆς ἐστιν ἡ νομοθετική). O melhor
está que a força não pertença às leis, mas ao homem
prudente (ἄνδρα τὸν μετὰ φρονήσεως βασιλικόν)". Frente ao espanto do
jovem Sócrates, arremata Platão: "Nunca uma lei seria capaz de perceber com
acribia o que, para todos ao mesmo tempo é o melhor e o mais justo e
prescrever para todos o que mais vale. Entre os homens, com efeito, como
entre os atos, existem dissemelhanças, sem contar que nunca, por assim
dizer, nenhuma das coisas humanas permanece em repouso, íntegra, o que
não permite à arte, a nenhuma arte, formular nenhum princípio cuja
simplicidade valha em toda matéria, em todos os pontos sem exceção e
durante o tempo".
A
lei, termina Platão, “parece um homem presunçoso e ignaro, que não
deixa ninguém fazer algo fora do que ele regulou, e também não deixa que
ninguém o questione, mesmo que uma idéia nova, exterior aos arranjos
normativos por ele impostos, deva ter para o caso individual um
resultado melhor”. (294a-c). Não entrarei na vexata questio
milenar e no dilema: governam a lei ou os homens? Sou bem alerta para
os usos modernos e anacrônicos da opção pelo indivíduo soberano, do
absolutismo assumido por Tiago Primeiro na Inglaterra do século 17 até
Carl Schmitt e a proposta de que o "Füher decide o direito". ([1])
Se
os brasileiros seguem a lei de improbidade, eis um problema que não ser
resolvido ontem e hoje. Se eles são melhores ou piores do que os
representantes (e são representantes, pois
eles mesmos os escolhem) é uma pergunta ainda mais difícil. Sempre
ouvimos que os piores são escolhidos e a culpa de semelhante óbice
encontra-se na desigualdade econômica, no poderio de alguns partidos,
nos ordenamentos jurídicos, na propaganda, etc. Todas essas vias
explicativas têm virtudes. Mas recordo o dito de Erich Auerbach sobre a
verdade. A cena do mundo, diz ele, possui muitos quadros simultâneos. Os
sectários de um ou outro quadro jogam luz sobre eles, deixando os
demais na sombra. Assim, cada quadro expõe a sua verdade, que não pode
ser negada. E os assistentes se deixam convencer, pois o iluminado é
verdadeiro. Mas da verdade, continua Auerbach, faz parte toda a verdade.
Seria preciso jogar luz sobre as outras cenas. Mas a tarefa demanda
tempo, o que nem a imprensa, nem as instituições aceitam gastar na
investigação. Donde as fórmulas rápidas, o abreviamento do pensar e do
agir. Para as mesmas colunas de opinião em que acadêmicos e pessoas
públicas escreviam, há 30 anos atrás, se publicadas hoje, nos jornais e
revistas, seriam precisos várias páginas. Houve um encolhimento do
espaço gráfico da imprensa e, me perdoem dizer, um encolhimento
argumentativo e de pensamento.
Nem
sempre a fórmula breve significa percepção mais aguda do que se debate.
Outro dia uma jornalista, gentil e nada arrogante como todos sabemos,
me pediu que fosse objetivo e redigisse em quinhentos caraceteres uma
apreciação dos problemas éticos brasileiros. Recusei a missão, para mim
impossível. Com certeza alguém conseguiu escrever sobre aquele assunto,
naquele número de caracteres. Um pensador da chamada Escola de Frankfurt
perguntou um dia : “se os acontecimentos do mundo são quase infinitos,
porque o jornal sempre tem quase sempre o mesmo número de páginas ?”.
Com isso, ele sugeria que alguém lia os eventos os resumindo para o
leitor, ou seja, selecionando a realidade para ele, deixando na sombra o
que “não tem interesse jornalístico”. Assim também fazem os
propagandistas totalitários. Hoje, o número de páginas encolhe, aumentam
os espaços de publicidade. Sem falar na pletora de slogans e lugares
comuns, próprios a convencer pela repetição. Recordo as famosas “lições
de casa” exigidas pelas agências que medem os riscos de investimentos,
contra países em nome dos larápios vestidos como executivos de Wall
Street e agentes de governos. Agora uma brasileira: “o deficit da
previdência”. Quando o assunto vem à baila, o jargão corre solto, sem
contestações. Ficou famosa a entrevista de uma professora de economia em
importante canal de televisão. A jornalista partiu, não de uma
pergunta, mas da certeza sobre referido deficit. Ao receber resposta
negativa, uma explicação técnica que atenua o valor da tese, ficou
desarvorada. Afinal, tratava-se de um enunciado “evidente”. Boa parte do
que dizem os “analistas
financeiros” entra nessa linha: formulam dogmas em prol de interesses
financeiros, políticos, etc. E aí dos hereges que se insurgem contra
tais dogmas. E isso tem muito a ver com a lei de improbidade
administrativa.
É
difícil responder se o povo é melhor ou pior do que os representantes.
Se é melhor ou pior do que a imprensa que supostamente o informa, é
tarefa árdua. Quando falamos de leis como a de improbidade precisamos
saber o que fazem e querem os vários segmentos da vida pública que
jamais são desinteressados no que vai entre a letra do diploma legal e a
sua aplicação efetiva.
Voltemos
ao trato entre eleitos e eleitores, estratégico quando se fala em
probidade ou improbidade. O regime democrático é medido pelos votos.
Mais voto, mais poder. Esta é a primeira parte. Depois, temos o lugar
ocupado pelo partido nas alianças, que garantem verbas e verbo nos
parlamentos. Ora, a maioria esmagadora dos partidos caça votos
e os aumentam, sem nenhuma preocupação com o problema ético ou moral.
Eles silenciam o problema, ou indicam um ideal ético, porque não têm
aquele valor. Eles prometem empregos, verbas, obras nas cidades, tudo o
que pode ser arrancado dos cofres públicos para a prestação de
“favores”aos administrados. E isso deve ser levado em conta, na
apreciação da improbidade. No Brasil, diz a professora Maria Sylvia
Carvalho Franco em Homens Livres na Ordem Escravocrata,
o favor é a mediação universal. Ele integra o mais íntimo da ética na
sociedade e no Estado. Estancar a corrente do favor é algo que exige bem
mais do que uma lei, por melhor que ela seja. Os
políticos jogam perenemente com o medo do pior, o fim dos favores ou
uma hecatombe econômica se “os outros”vencerem, ou com a ausência de
verbas, obras, empregos. Basta ver a propaganda nestas eleições: se os
munícipes votarem contra os indicados por Brasilia, programas
importantes não virão. Caso votem no candidato do príncipe (ou da
princesa), benesses fluirão em abundância. Improbidade?
Ou eles conhecem os eleitores, não os idealizados, mas os reais. Os
princípios éticos não rendem favores, não rendem votos, não rendem
obras, não rendem poder. É num terreno assim que a lei de improbidade
deve ser aplicada.
Quando surge uma quebra violenta da ordem legal, o costume é gritar : “escândalo, escândalo”. Mas
a corrupção que gera escândalo possui dois registros temporais, um
diacrônico e outro, sincrônico. Num sistema necessáriamente corrupto,
dada a concentração de recursos nas mão do poder federal, no executivo,
sem os favores nada feito para alcaides e governadores. Assim, os
policiais, o ministério público, a justiça, a imprensa, tomam
conhecimento dos fatos uns após outros. Mas no mesmo átimo em que um
escândalo é denunciado, a rede corrupta opera no Estado e na sociedade
na sua integritude. A polícia, a justiça, o ministério público quase
sempre operam post festum.
Mas o sistema, sincronicamente pratica as mesmas coisas supostamente
punidas ao serem descobertas. É nesse terreno que deve ser aplicada a
lei de improbidade administrativa. A nossa prática é a de iluminar um
quadro de cada vez, mas os demais ficam na sombra….até que sejam
iluminados. Enxugamos gelo com toalha quente.
Os
escândalos não constituem monopólio dos políticos. Eles não raro têm
raízes no mercado, na sociedade civil, instituições sociais. Pensemos
apenas nos esportes oficializados: boa parte deles é gerida segundo
técnicas de causar inveja aos apadrinhados de Don Corleone. Mesmo
igrejas conhecem o uso privado de seus recursos e não me refiro apenas
às seitas eletrônicas. A católica Conferencia dos Religiosos do Brasil,
nos anos 70 do século passado quase foi a falência por golpes aplicados
aos seus cofres pelos administradores. Os casos são múltiplos. Talvez
seja mais grave que um operador do Estado seja pego em corrupção, do que
um cartola. Mas as pessoas se habituam ao fenômeno nos dois setores. E
isso tem muito a ver com a lei da improbidade.
Tais reflexões são amargas. Alguém
as poderia dizer injustas. Ainda não somos um país de cínicos ou de
conformistas. Existem energias éticas das quais não tomamos ainda
consciência entre nós. Mas no campo político elas não mostram sinais.
Lembremos a lição dos pensadores políticos segundo a qual um Estado (é
mais verdadeiro para o democrático) pode ser assassinado por forças
externas violentas, mas também morre por consunção interna. A lição
maior vem dos textos platônicos : o Estado, um organismo vivo, pode se
desagregar se nele os membros não respeitam a justiça e a moral. No
Estado assim doente, o improbo, sobretudo se no comando, é uma peste
(νόσος πόλεως). O Estado adoece quando mal gerido ou entregue à
discórdia. Ele sofre uma inflamação que aumenta sempre, enfraquecendo
mais e mais (República, 556e). O bom governante cuida da saúde do Estado e da sociedade.
Mas
como agem os nossos governantes? Certamente não são médicos do corpo
político, mas adoecidos como os administrados. No Brasil podemos dizer
que não é possível contar com os governos usando apenas meios legais e
honestos. Quem não quer ser vítima das máfias, precisa aceitar regras
não escritas, mafiosas. Tal situação é alheia ao sistema representativo
parlamentar ? Quem busca o favor do voto, retribui com favores ao
próprio eleitor, direta ou indiretamente. O sistema representativo tem
advogados como James Madison. Este último sustentava que a delegação aos
eleitos, número pequeno, dera vida a “um corpo seleto de cidadãos cuja
provada sabedoria tinha podido melhor discernir o interesse efetivo do
próprio país, e cujo patriotismo e sede de justiça teria tornado menos
provável o sacrifício do bem do país em favor de considerações
particularíssima e transitórias”. Como fugir das “considerações
particularissimas”, os interesses dos eleitores ricos ou pobres na
representação? Os senhores conhecem o remédio : impedir mandatos
imperativos. Sabemos que tal veto começa na Constituição francêsa de
1791: “os representantes nomeados nos departamentos não serão
representantes de um departamento particular, mas da nação inteira, e
eles não terão nenhum mandato”. Afastados os males da representação
corporativa, o eleito se livraria de prestar favores a um ou outro setor
social. A nossa Camara dos Deputados respira pelo duto que ocorre entre deputados com regiões e com os seus interesses “particularíssimos”. Boa parte dos representantes passam nas
regiões grande tempo ou instalam “escritórios informais” onde alocam
assessores para ouvir os pedidos particulares ou particularíssimos dos
eleitores. E é em tal solo que deve ser aplicada a lei de improbidade
administrativa.
Maquiavel, nos Discorsi,
afirma que “todos os escritores da vida civil [vivere civile] indicaram
que ao constituir e legislar para uma república é preciso supor que
todos os homens são péssimos (…) e que os homens só fazem o bem quando a
necessidade os dirige para ele. Fala-se também que a fome e a pobreza
torna os homens industriosos e as leis os torna bons”. Ele
considera a vida civil baseada no governo das leis o mais elevado bem. A
correta política se baseia na igualdade diante da lei (aequum ius) e
acesso igual aos cargos com fundamento na virtude (aequa libertas). O governante deve respeitar a lei, o melhor meio para assegurar o poder.
Marcello Gigante, em Nomos Basileus apresenta um tratamento clássico do tema. “Hoje”, diz ele, o interesse econômico elevou a nomos novíssimo uma história inglória, com a violência do mais forte sobre os mais fracos. Sobram apenas as teorias ‘intimistas’ do
desfalecimento da consciência moral, e cuja ação inclui os
procedimentos tortuosos e de bajulação”. Gigante escreve após a IIa
Guerra Mundial, com o fascismo vencido, bem como o nazismo. A pergunta
sobre o político, o republicano, o justo, permanece, bem como a questão
dos saber se obedecemos leis ou somos servos de outros homens. Aqui,
poderemos recordar as invectivas de Etienne de la Boétie, no Discurso da Servidão Voluntária. Somos cidadãos dignos deste nome, ou apenas objeto do poder?
Como
entender a simbiose pouco virtuosa entre eleitos e eleitores? Usemos a
metáfora. Como o mercado econômico, o político foge ao controle que se
queira impor a ele do alto. Nele impera o do ut des
entre vendedores e compradores. O eleitor dá ao partido ou à pessoa o
bem político capacidade de conseguir efeitos desejados. Ele espera que o
poder conferido venha em sua vantagem. Mas,
à diferença do mercado econômico, o eleitor não conhece de antemão o
efeito de sua escolha porque o maior ou menor poder do partido ou
candidato a quem deu seu voto depende do maior ou menor número de votos recebidos
de outros eleitores e sobre os quais ele, eleitor, não exerce
influência. No sistema majoritário, onde um ganha e outro perde, quem
vota pelo perdedor perdeu seu voto, suas esperanças dificilmente serão
realizadas. Mesmo num sistema proporcional, onde todo voto é contado, o
maior ou menor efeito de meu voto como base de consenso depende dos
demais votantes, ou seja, da circunstância das quais nenhum eleitor pode
ter um conhecimento pleno.
Mesmo
quando seu candidato e partido saem vitoriosos, o eleitor não pode
estar certo do retorno, o pagamento ao seu voto. E se você vota no
prefeito e o partido dele, em âmbito estadual ou federal, é oposição ?
Uma roubada fatal ocorrida pelos Brasis afora. Como sabemos, verbas e
verbo cabem à base aliada e, mesmo nela, aos partidos que garantem a
“governabilidade”, ou, o do ut des
cuja tradução é “dando que se recebe”. Entregue, a mercadoria voto tem
valor diminuído, como os produtos eletrôncos que, ao sair da loja,
perdem no preço diante dos que ficam na prateleira. Assim, o voto na
espera do retorno, em vez da metáfora mercadológica, exige para ser
entendido a metáfora do jogo, ou melhor, da loteria. A melhor prova que
se trata de loteria é a curiosidade que cerca as apurações das urnas,
que hoje exige algumas horas. Antes, o afã levava dias ou meses.
Talvez
tenha exagerado no símile mercado/ eleição. Talvez aquele vínculo seja
plenamente verdadeiro apenas para o voto de clientela. No cálculo de
probabilidades clientelístico as coisas são menos obscuras: voto se meu
filho ganhar a concessão de tal ou qual serviço, voto se uma pensão for
dada para fulano, voto se o eleito trouxer creches para minha cidade,
voto se….pouco importa a dimensão do cliente, se é um indivíduo, se um
grupo econômico, se uma cidade ou região.
Existe o voto de opinião, não vendido ou comprado : os setores sociais e indivíduos ligados
aos programas e ideologias dos partidos que no voto sublinha os valores
(liberais, socialistas, religiosos) do que os interesses materiais ou
culturais. Quem vota contra o aborto e contra o casamento gay, procura
um alvo não imediatamente preso
ao mercado. Mas mesmo tais eleitores, com a repetição do gesto
eleitoral, ficam mais e mais próximos dos eleitos, surgindo os seus
interesses particulares como superiores aos ideais anteriormente
defendidos. Afinal, ninguém vive apenas do idealismo e um cargo, uma
assessoria, uma ajuda para a própria ONG, tudo atenua o voto de opinião
anterior em prol de uma troca, de um do ut des. O voto de opinião, a partir desse ponto, se refugia nos que…não votam, os que protestam, anulam o voto.
Tocqueville
se insurge contra o mercado eleitoral em 1848 e lamenta a degeneração
dos costumes pela qual opiniões e sentimentos são trocados por alvos
particulares (particularissimos,
como diz Madison). Ele invectiva a moral baixa e vulgar segundo a qual o
eleitor leva em conta a si mesmo, os filhos, a mulher, os pais.
E temos o problema lógico e real: o
poder dos governantes depende do número de votos e que estes dependem
da maior ou menor capacidade dos políticos para satisfazer as exigências
dos eleitores. Há uma dependência recíproca entre os lados da cadeia :
para conseguir recursos, o eleito deve manter a fidelidade dos
eleitores, deve controlá-los. E quem deveria controlar, o eleitor, passa
a ser controlado (voltemos aos “escritórios informais” que os
representantes mantêm no curral, desculpem, nas bases eleitorais. A
coisa é tão “comum” que já entrou para a semântica política “Quantos
votos controla tal deputado, tal vereador, tal líder político?”.
Tocqueville acredita numa elevação da moralidade pública. Stuart Mill,
pragmático, acredita em especialistas do direito que preparem as leis,
para depois elas serem oficializadas pelos representantes e aplicadas
pelo governo. Mill divide os cidadãos em passivos e ativos. Os governos
autoritários se baseiam no apoio dos primeiros, os democráticos, nos
segundos. Face à corrupção os primeiros dizem : “ tenhamos paciência”, os segundos gritam “que vergonha!”.
As
eleições mostram que os eleitores, na maioria, são quase insensíveis à
“questão moral”. Os partidos que defendem a “ética na política” perdem
eleições e começam a praticar o “que todos os demais fazem”, e são
premiados por tal afastamento do programa ético. Mas se assim pensam e
agem é porque conhecem o eleitor. Ora, mesmo Maquiavel, que não era
moralista, diz que ninguém convence o povo a eleger “um homem infame e
de costumes corrompidos” numa república, ao contrário do que ocorre na
monarquia.Maquiavel era republicano. Mas até defensores da monarquia
temperada, como Montesquieu, dizem que o povo escolhe “de modo admirável
aos que devem confiar parte de sua autoridade”. Admirável…Tenho um
colega que, ao falar de pessoas cujo discurso é sem sentido, comenta :
“o que ele diz não é verdeiro, nem falso, nem belo nem feio. É
admirável”…
A
república foi louvada em contraponto à monarquia, porque a última,
segundo os historiadores, representa um dos regimes mais corrompidos. O
nobre, para ser alguém, procura patronos na corte. Este servem ao rei.
Este último, para não ser morto e ser legitimado, compra apoio do clero e
da nobreza, vende cargos para os burgueses. Tudo é comprado, tudo
vendido. Como diz Hegel na Fenomenologia do Espírito,
na monarquia a honra perde vez para a riqueza, cuja circulação passa
pelo rei. Na república, o centro distribuidor se amplia em detrimento do
alvo pessoal dos que se ocupam da riqueza coletiva. Na república,
escreve o socialista Napoleone Colajanni, dos primeiros a lutar contra a
Máfia num livrinho denominado A Corrupção Política,
temos o governo que acabaria com os escândalos da monarquia. Nela “a
grande vitalidade e força moral, latente,no povo, não encontram
obstáculos insuperáveis, eliminam os males com processos naturais e
pacíficos, renovam o Estado”. O mesmo Napoleone, no entanto, critica os
conselheiros municipais que, “para se eleger em tempo certo, não deixam
sem tentar nenhum meio, não excluídos os desonestos, e correm, voam,
pregam e colocam em movimento todas as relações diretas e indiretas,
possíveis e imagináveis (…) alí onde existe uma igreja ou teatro, culto
religioso ou espetáculo público; onde existe a festa de um santo ou
carnaval, aqui um subsídio, uma pensão, uma gratificação, um cargo útil,
criado expresamente para favorecer uma pessoa; alí a estrada de
interesse privado, uma obra qualquer, uma instituição para agradar um
grupo de conselheiros ou eleitores. Assim são feitas e desfeitas nos
conselhos municipais as maiorias e as minorias, dirigidas por fins
particulares; o critério único que deveria ser soberano, o do bem geral e
indistinto, se perde”. (in Giuseppe Gagemi, Arbitrio ammistrativo e corruzione politica. La linea municipalista italiana di ispirazione anglosassone
(Gangemi Editore, p. 145 e ss). Isto foi escrito em 1888. Se
colocássemos os nomes de Campinas, Limeira, Hortolândia, Vinhedo, para
ficar apenas em São Paulo, e depois da lei de improbidade
administrativa, estaríamos em 1888? Não, estaríamos no século XXI.
No
elo entre eleito corrupto e eleitor idem existe um horror e um
fascínio, reprovação e aprovação. Um analista francês publicou na
revista Poderes artigo onde afirma que “um episódio de corrupção, mesmo com provas, aumenta a venda do Canard Enchaîné,
pode assegurar o sucesso de um livro, mas não faz a república tremer”.
S. Belligni, em artigo denominado “Corruzione e scienza politica, una
riflessione agli inizi (Revista Teoria Politica, 1987, n. 1. Pp. 61-88) abre o ponto para a pergunta: por que a corrupção ? Algumas pistas:
1)
a corrupção política se deve em grande parte ao financiamento dos
partidos. Em outras situações, perfeitamente tipificadas na lei que
discutimos hoje, vinte anos após sua promulgação, temos
em alguns agentes investidos de poder público ou político, o direito de
exercer o poder de decidir em nome e por conta da coletividade
nacional.
Modo
geral, temos dois jeitos de ver a corrupção. O primeiro, quando o
sujeito político age para adquirir ou conservar o poder. O segundo, uma
vez o poder conquistado, ele o tem nas mãos, bem firme, usando-o para
adquirir vantagens privadas. Os dois jeitos são conectados
no mercado democrático: o poder se conquista com votos, um dos modos de
conseguir votos e não ter despesas é servir-se do poder para ganhar
vantagens mesmo pecuniárias. O poder custa muito, mas rende. Se custa,
deve render. Jogo arriscado, às vezes ele custa mais do que rende se o
candidato perde as eleições. Mesmo assim, ele rende mais do que custa.
No primeiro jeito, o político age como corruptor, no segundo, como
corrupto. No primeiro momento ele aparece como comprador de votos e no
segundo como vendedor de vantagens (dos recursos públicos que, graças
aos votos, ele é o dispensador). Para operar de modo corrupto, o
político precisa do segredo. Eis um ponto essencial.
Começo a terminar.
O
que é a lei? Oportuna advertência platônica: ela pode ser vista como
inflexível pessoa autoritária que não permite a ninguém fazer algo que
ela não mandou. (Político, 294 b, c). Mas sem
ela o corpo político se desfaz, sendo ela, inclusive, digna de respeito
filial (Críton, 50 d). A lei, no entanto, não é obedecida naturalmente
pelos homens. É preciso, diz Platão, que eles sejam educados para seguir
normas. É preciso tingir os indivíduos, desde a mais tenra infância, com a boa tintura das leis, para que elas estejam dentro deles, não em livros ou monumentos que podem ser elididos ou burlados. (República, 429 d, 430 a). Naquele
terreno deve ser cultivada a semente da lei. Não estamos na escola
platônica, pois a corrupção dos costumes e do Estado chegaram a um ponto
tal que surgem, de vez em quando e cada vez mais frequentemente, apelos
ao líder que não depende de leis para impor a justiça. Tal apelo não se
encontra apenas nos eleitores comuns, mas ressurge em doutrinas
autoritárias, acarinhadas inclusive por antigos militantes
progressistas, que pregam o poder de decisão do presidente, em prejuízo
das intermináveis discussões e da corrupção endêmica dos Parlamentos.
Esses são os caminhos rápidos para a suposta salus populi, sempre
acarinhados pelas almas de extração totalitária.
A
democracia é um processo. Nele, não existem garantias de vitórias sem
amarguras. Cada costume melhorado incentiva a luta em prol do bem
público. A lei de improbidade administrativa foi reforçada, após sua
promulgação, por outros ordenamentos dentre os quais a chamada lei da
ficha limpa, a lei de acesso à informação, etc. Quando tais leis
começarem a dar seus frutos poderemos dizer se cumpriram o seu papel, ou
se permaneceram enrigecidas. Como processo, a democracia edita leis que
surgem para trazer saúde ao corpo político. Após a lei de improbidade,
ainda precisamos de uma lei que normatize os lobbies no Brasil. Por sua
falta, deputados e senadores, para não falar de outros operadores do
Estado, agem como lobistas. Suspeito que a obstrução aos vários projetos
que normatizam o lobby vem do fato de serem os representantes em
primeiro plano lobbistas, depois representantes do povo. Quando se ouve
falar em bancada ruralista, bancada dos defensores da universidade
particular, etc. o que temos são lobistas que atuam em prol de
interesses particularissimos. Outra providência é a extinção da
prerrogativa de foro, lei em favor dos improbos. Leis dessa ordem
reforçam umas as outras, criam um sistema legal que pode contrabalançar o
sistema corrupto. Apenas quando as leis puderem prever, de modo
sincrônico, os atos cometidos contra o erário e a fé publica poderemos
respirar dos escândalos que surgem diacrônicamente, causando apenas
maior corrosão no elo entre sociedade e Estado.
“A
Lei de Improbidade administrativa é uma lei revolucionária, porque
modifica para melhor a nossa cultura. Afinal, é preciso rimar erário com
sacrário, o que é o propósito dessa lei (…) estamos combatendo com
muito mais eficácia os desvios de conduta e o enriquecimento ilícito às
custas do poder público, a partir da priorização da pauta de julgamentos
de ações de combate a esse tipo de assalto ao erário”. São benvindas as
palavras do presidente do STF, ministro Ayres Britto. Mas que não
fiquemos na poesia, a revolução da lei deve ser reforçada por outras
leis e outros procedimentos. Sem populismo que enxergue nos cidadãos
apenas vítimas inocentes, sem transformar políticos em demônios, sempre
cobrando o fim do segredo e o advento da transparência.
Acabando:
a maior parte das provocações feitas aqui, por mim, não são de minha
lavra. As extraí, quase literalmente, de Norberto Bobbio na magnífica e
amaríssima coletânea intitulada L ‘Utopia Capovolta
(Torino, La Stampa, 1990). Achei de bom alvitre retomar sua palavra
porque, ao descrever os costumes corrompidos da Itália, era como se ele
dissesse para nós, brasileiros : “Qui rides? Mutato nomine, de te fabula
narratur”. (Horácio, Sátiras, livro I, 69-70).
[1] Cf. Meuter, Günter: Carl
Schmitts ‘Nomos basileus’ oder: Der Wille des Führers ist Gesetz. Über
den Versuch, die konkrete Ordnung als Erlösung vom Übel des Positivismus
zu denken, (Institut für Staatswissenschaften Fakultät für Sozialwissenschaften Universität der Bundeswehr München: Neubiberg, 2000), em http://www.rz.unibw-muenchen.de/~s11bsowi/pdf/IfSWerkstatt5.pdf, S. 8, 35. E também Scheuerman, William E. : Carl Schmitt, the end of law (Rowman
& Littlefield, London/New York, 1999). Um trabalho excelente é o de
Fernando Bianchini, tese de mestrado em Filosofia na Unicamp, sobre
Schmitt e a crise do sistema parlamentar.