Lições do Século XIII para 2013
(Publicado no O Globo a Mais de 08/01/2013)
Nem mesmo as hordas de turistas conseguem desencantar
os templos de Angkor, no meio da selva do Camboja. Nem mesmo o sol
escaldante ou a umidade sufocante são capazes de atenuar a estupefação
perante as edificações enigmáticas, repletas de simbolismo. No meio da
cidadela de Angkor Thom, reside o templo de Banyon. Não é uma obra
monumental como o mais famoso Angkor Wat, a poucos quilômetros de
distância. Mas é, talvez, ainda mais impactante. O templo do século XIII
é arquitetonicamente complexo, tendo sofrido diversas alterações ao
longo do tempo. Originalmente, eram 49 torres, ascendendo
vertiginosamente até a torre circular central de 43 metros de altura.
Das 49 torres originais, sobraram 37. Cada uma é adornada, no topo, por
cabeças minuciosamente esculpidas que fitam os quatro pontos cardinais. A
expressão que marca cada feição é enigmática, indecifrável. Em alguns
casos, há um sorriso aberto, maroto, um ar mordaz. Em outros, o sorriso e
a expressão dos olhos são quase zombeteiros, como se as cabeças
estivessem a julgar e a lamentar em tom de bazófia a imensa capacidade
para a estupidez dos seres humanos.
Exemplos
disso abundam. Para onde olhar primeiro, eis o dilema proposto pelas
cabeças enigmáticas do templo de Banyon. Nada como um bom impasse
político para atiçar os ânimos e chamar a atenção – essa é a resposta
dos americanos. Conquanto Republicanos e Democratas tenham conseguido
costurar um acordo nos últimos minutos de 2012 para evitar o “abismo
fiscal” que ameaçava acordar o espírito maléfico da recessão, os
políticos mostraram que nada aprenderam com o episódio lamentável da
elevação do teto da dívida americana, em meados de 2011, aquele que
rebaixou a classificação dos títulos da dívida dos EUA. O cabo de guerra
continua, com Republicanos puxando a serpente dos cortes de gastos e do
limite de endividamento de um lado, e Democratas fazendo força de
outro. São como as pontes que conduzem às quatro entradas de Angkor
Thom, construídas nos pontos cardinais – cada uma é ladeada por uma
fileira de deuses e por outra de demônios, ambas carregando uma enorme
serpente de pedra – a mítica Naga do hinduísmo e do budismo. Quem é
deus, quem é demônio no embate fiscal americano? Não há resposta. Há,
apenas, as sorridentes cabeças de pedra. Cabeças duras.
Na
Europa, um clima de calma e serenidade parece ter se instalado, mas as
aparências enganam. A região continua muito distante do Nirvana, da
iluminação, apesar das declarações do Bodisatva[1] Mario
Draghi de “fazer tudo o que for preciso” para salvar o euro. Embora os
mercados de títulos soberanos estejam bem comportados, problemas novos
despontam no horizonte, movidos pela miopia que tem caracterizado
algumas das principais decisões de política econômica. Na França, o
Conselho Constitucional julgou que o grande plano de François Hollande,
de elevar para 75% os impostos sobre os mais ricos – aqueles com renda
acima de um milhão de euros – é inconstitucional, pois fere o
sacrossanto princípio da igualdade, parte fundamental da trindade Liberté, Égalité, Fraternité.
Dizem os peritos que do modo como a medida controvertida de Hollande
foi redigida, uma família de dois membros em que cada um aufira uma
renda ligeiramente abaixo de um milhão de euros estaria isenta do
imposto, enquanto outra, em que apenas um membro sustentasse os demais
com uma renda superior ao limiar estipulado estaria sujeita à nova
alíquota. Isso, decerto, não éégalité. Não é à toa que o ator Gérard Depardieu preferiu combinar com os russos…
Enquanto
o governo francês tenta desatar o nó que criou para si, os britânicos
se engalfinham com os tratados da União Europeia. Antecipando-se ao
aguardado discurso que o Primeiro-Ministro David Cameron fará em meados
de janeiro sobre a situação do Reino Unido na União Europeia, o líder da
UE, Herman van Rompuy, declarou que a tentativa de renegociar a posição
de qualquer país, aceitando alguns termos dos tratados e refutando
outros, abriria uma caixa de pandora, abalando os pilares da integração
europeia, inclusive do livre mercado. Refletindo as demandas de seu
partido, David Cameron tem insistido que o Reino Unido precisa reavaliar
o seu grau de envolvimento no projeto de maior integração regional
capitaneado por Angela Merkel. A possibilidade de fragmentação da União
Europeia é outro “novo problema” a ser enfrentado em 2013.
E
o Brasil de Dilma, aquele que tem sido alvo de tantas matérias jocosas
de periódicos britânicos? Como se deve fitá-lo? Com um sorriso mordaz?
Com um ar zombeteiro? Como se deve contemplar a Presidente que insiste
em dizer que não há risco de apagão no País, apesar de a matriz
energética ser cada vez mais dependente das usinas hidrelétricas de fio
d´água, apesar de o investimento das companhias elétricas estar a
caminho do cadafalso devido às investidas do governo no setor? Com que
grau de confiança se deve encarar um governo que tanto disse que a
economia cresceria 4% em 2012 e que a inflação permaneceria controlada,
quando o PIB provavelmente se expandiu apenas 1%, e a inflação deverá
encerrar 2012 próxima de 6%? Como aceitar as declarações serenas do
Ministro da Fazenda, que prometeu que 2013 será um ano mais “calmo”, já
que todas as medidas para reanimar a economia já foram tomadas? E o que
dizer das estripulias contábeis para garantir o cumprimento da meta de
superávit primário?
Há
quase mil anos, uma civilização asiática construiu a maior cidade do
mundo antigo, habitada por mais de um milhão de indivíduos. Entre os
inúmeros templos, alguns permanecem sem um significado preciso. Banyon
não foi dedicado a um deus hindu, como Angkor Wat. Também não foi
construído em nome de Buda, a inspiração de tantos outros monumentos de
Angkor. Na falta de uma história para a sua existência, diante do enigma
e em meio a tantas cabeças que olham para todos os lados com um ar de
superioridade gozadora, o templo do século XIII é uma lembrança da nossa
imensa capacidade de fazer besteira. Que sirva como uma reflexão para
os porvires de 2013, esse novo ano que se anuncia…
[1] No
Budismo, Bodisatvas são seres de sabedoria elevada cuja prática
espiritual visa à remoção dos obstáculos e a beneficiar a humanidade.