15/01/2013
Conferência da SRHE
Sinal amarelo: o risco de a Universidade parar de produzir novo conhecimento
Reunião anual da Society for Research into Higher Education vê crise no ensino superior e propõe reavaliação de objetivos
Por Gabriela Celani, de Newport, País de Gales
Arquiteta, mestre pela FAU-USP, Ph.D. pelo MIT, livre-docente pela Unicamp e pós-doutora pela Universidade Técnica de Lisboa. É professora da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, pesquisadora do Laboratório de Automação e Prototipagem para Arquitetura e Construção (Lapac) e assessora da pró-reitoria de graduação da Unicamp
Arquiteta, mestre pela FAU-USP, Ph.D. pelo MIT, livre-docente pela Unicamp e pós-doutora pela Universidade Técnica de Lisboa. É professora da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, pesquisadora do Laboratório de Automação e Prototipagem para Arquitetura e Construção (Lapac) e assessora da pró-reitoria de graduação da Unicamp
Gabriela Celani
Abertura da Conferência da SRHE por Helen Perkins;
Howard Hotson aparece à direita
Howard Hotson aparece à direita
A Universidade atual é "provedora de serviços"; o aluno, um consumidor.
Com a "marquetização" do ensino superior, dinheiro público é canalizado
para pesquisa em áreas "de vantagem competitiva". Na Grã-Bretanha, o
novo Department of Business, Innovation and Skills sobrepõe-se a
atribuições do ministério da educação. Na Alemanha, consolida-se uma
nova responsabilidade institucional das universidades: a criação de
tecnologia e sua transferência para as empresas – mas desde então o
registro de patentes está caindo. Uma "recontextualização de conteúdos",
resultante de pressões do mercado, da tecnologia e do
"instrumentalismo", distancia os currículos universitários da produção
de conhecimento novo.
Estas foram algumas das principais questões debatidas na conferência
anual da Society for Research into Higher Education (SRHE), realizada em
Newport, País de Gales, de 12 a 14 de dezembro de 2012, com o tema
"What is Higher Education for? Shared and contested ambitions" [leia entrevista com a organizadora abaixo].
O evento teve mais de 300 participantes, sendo aproximadamente 3/4
britânicos e os demais vindos de diversos países de todos os
continentes. Além de três convidados, a conferência incluiu duas
palestras de membros da Sociedade (presidente e vice-presidente), 218
comunicações orais distribuídas em 12 sessões paralelas e outras 6
sessões paralelas de discussão aberta, no último dia. O encontro foi
precedido por um simpósio, destinado a alunos de pós-graduação que
desenvolvem pesquisas na área de ensino superior, o Newer Researchers.
Todos os anos o melhor trabalho é premiado, recebendo, entre outros
benefícios, um auxílio de 3 mil libras para desenvolvimento da pesquisa
sob orientação de um membro da SRHE.
A palestra de abertura foi proferida por Howard Hotson, professor de
História do St. Anne's College, da Universidade de Oxford, e um dos
diretores do Council for the Defense of British Universities. Sob o
título "Big Business at the Heart of the System: Understanding the
Global University Crisis", Hotson iniciou sua fala afirmando que a
Universidade contemporânea passou a ser uma provedora de serviços e o
aluno, um mero consumidor. Segundo ele, esse novo sistema foi promovido
pelos próprios governos dos países que, em busca de competitividade
internacional, passaram a atender às exigências das empresas, que
demandam um ensino voltado para a formação de mão de obra e uma pesquisa
voltada para a inovação, que possa ser rapidamente aplicada à
indústria. Hotson descreveu com detalhes as características da atual
"marquetização" do ensino superior, que inclui desde o direcionamento do
dinheiro público para a pesquisa em áreas de vantagem competitiva, até a
mudança do papel do Estado de provedor de educação para apenas
regulamentador dos serviços providos por empresas privadas. Segundo ele,
tais fenômenos são anomalias do ponto de vista da história da educação.
Como exemplos, Hotson citou a declaração dos novos objetivos do ensino
superior na Hungria. Mostrou uma página do site do Ministério da
Educação onde se lê que o país está reestruturando seu ensino com o
objetivo de "aumentar a competitividade do setor, responder às
necessidades da economia e do mercado de trabalho, privilegiar a
educação nas áreas de ciências e tecnologia, melhorar a infraestrutura
de treinamento e garantir o retorno de seu custo".
Hotson também falou da recente criação de um departamento do Governo
Britânico (equivalente a um ministério), com funções que se sobrepõem às
do Departamento de Educação. Trata-se do Department of Business,
Innovation and Skills, que tem como objetivo "investir em treinamento e
educação para promover o comércio, incentivar a inovação e ajudar as
pessoas a iniciarem seus próprios negócios"[1].
Segundo o professor, seria um claro sinal da influência das grandes
corporações não apenas na definição dos objetivos do ensino, mas também
no direcionamento do gasto público, visando atender aos seus próprios
interesses. Hotson mostrou evidências de como as universidades
americanas com fins lucrativos falharam em gerar dividendos para seus
investidores, e como agora as empresas exigem que o governo cumpra o
papel que elas não conseguiram cumprir.
Na Grã-Bretanha, assim como em outros países, o governo agora contribui
para criar as condições necessárias ao crescimento do setor privado. O
problema com esse novo modelo é que busca apenas formar mão de obra para
atuar imediatamente no setor privado, e não formar cabeças pensantes
para o futuro. Frente a esse quadro de crise do sistema público de
educação, Hotson concluiu dramaticamente a palestra falando sobre a
recente criação do Council for the Defense of British Universities, do
qual faz parte.
O segundo palestrante convidado foi Georg Krücken, professor de
Sociologia e diretor do International Centre for Higher Education
Research da Universidade de Kassel, Alemanha. Com o título "Empowering
Universities: Contemporary Transformations and Unintended Consequences",
Krücken mostrou uma visão um pouco menos alarmista, traçando um
paralelo entre a transformação atual do ensino superior e a do setor
industrial no início do século XX. Ele começou afirmando que hoje 53%
dos jovens alemães têm acesso à Universidade, e que esse número tende a
crescer rapidamente, pois a chance de uma pessoa frequentar o ensino
superior aumenta em cinco vezes quando seus pais também frequentaram o
ensino superior.
Dentre as principais consequências positivas da nova ordem mundial para
as universidades, Krücken destacou a democratização, tanto em termos de
gênero como em termos de nível socioeconômico; o aumento no número de
disciplinas estudadas; a criação de novos postos de trabalho e de
departamentos voltados para novas necessidades (como a Quality
Assurance); e a elevação do status social dos professores
universitários.
Em seguida, Krücken falou das consequências inesperadas do novo
direcionamento do ensino superior, a partir de três situações observadas
na Alemanha. Em primeiro lugar, descreveu como a ênfase na pesquisa
científica nas universidades alemãs acabou por criar uma enorme tensão
entre ensino e pesquisa, além de uma grande competição entre as
universidades e até mesmo dentro delas. Isso fortaleceu alguns grupos
disciplinares, que passaram a deter o poder sobre a distribuição dos
recursos para pesquisa, passando a favorecer grandes grupos já
estabelecidos. Porém o efeito resultante foi contrário ao que se
esperava pois, segundo Krücken, grupos de pesquisa grandes tipicamente
tendem a ser menos produtivos, menos criativos e menos inovadores que os
grupos pequenos. A segunda situação observada foi a diminuição das
regulamentações governamentais sobre o ensino. Contudo, ao invés do
efeito esperado de autorregulação das universidades, a medida acabou
favorecendo as entidades profissionais, que se aproveitaram de seu poder
de oferecer acreditação profissional para influenciar o ensino. A
terceira situação observada foi o surgimento de uma nova missão para as
universidades, além do ensino e pesquisa: a criação de tecnologia e sua
transferência para as empresas. Essa nova função teve como consequência
inesperada a diminuição da eficiência da pesquisa científica, que deixou
de ser uma atividade voluntária e passou a ser responsabilidade
organizacional. Dessa forma, as patentes deixaram de ser atribuídas aos
professores/pesquisadores, e, consequentemente, eles perderam o
interesse no desenvolvimento de inovações tecnológicas. Isso explicaria a
queda no número de patentes na Alemanha nos últimos anos.
Krücken concluiu que certas regras impostas aos pesquisadores
simplesmente não funcionam e acabam tendo um efeito negativo. Apresentou
pesquisas que demonstram que fatores humanos, como confiança e amizade,
ainda são considerados fundamentais para o desenvolvimento de pesquisas
científicas no meio acadêmico. Uma prova disso é que, apesar das novas
regras, 90% dos trabalhos colaborativos continuam ocorrendo de maneira
informal nas universidades alemãs.
A terceira e última palestra foi proferida por Suellen Shay, diretora
do Centre for Higher Education Development (CHED) da Universidade da
Cidade do Cabo. Assim como os demais palestrantes convidados, Shay
também demonstrou preocupação com a atual situação do ensino superior.
Segundo ela, o principal objetivo da educação superior seria oferecer
"acesso epistêmico" aos seus alunos. A socialização do acesso à
Universidade sem a garantia do acesso epistêmico limitaria as
possibilidades de ação social efetiva, algo fundamental no caso de seu
país, a África do Sul.
Shay apresentou um trabalho de cunho epistemológico sobre a evolução
dos currículos (que ela chama de "conhecimento recontextualizado") nas
diferentes carreiras, à luz das teorias de Basil Bernstein e Karl Maton,
além do realismo social. Por meio de um diagrama (vide figura), Shay
ilustrou as forças que agem sobre os currículos e como eles se
posicionam com relação a elas. A atual recontextualização dos conteúdos
em direção ao ensino profissionalizante seria resultado das forças da
"densidade semântica" e da "gravidade semântica", representadas pelo
mercado, pela tecnologia e pelo instrumentalismo. Como consequência, os
atuais currículos universitários distanciam-se cada vez mais de algo que
efetivamente possa resultar na produção do conhecimento.
Os diferentes currículos no diagrama de recontextualização de Shay.
As setas mostram as atuais tendências de deslocamento em direção a áreas
mais genéricas ou mais práticas
Adaptado da palestra da professora Suellen Shay, da Universidade da
Cidade do Cabo (África do Sul), na Annual Conference of the Society for
Research into Higher Education (2012). O diagrama original foi publicado
no artigo "Contesting purposes for higher education: Epistemic Code
gaps, shifts and clashes" (Os direitos autorais da figura pertencem a
Suellen Shay)
Apesar de um pouco mais curtas, as apresentações dos representantes da
SRHE foram também notáveis por sua profundidade intelectual. Sir David
Watson, que está se aposentando, fez sua última apresentação como
presidente honorário da Sociedade. Watson foi professor da Universidade
de Oxford e coordenou o programa britânico de educação continuada
(Inquiry into the Future for Lifelong Learning), sendo coautor do livro
resultante, Learning Through Life (2009). O presidente da SRHE
fez uma apresentação intitulada "What does HE do to students? Ten
transformation claims". Ao falar das mudanças desejadas, destacou que as
transformações da consciência, do caráter, da competência, da cidadania
e da capacidade de discussão estão cada vez mais esquecidas, e citou
Petra Wilton: "As pessoas não pensam mais na Universidade em termos da
experiência estudantil, e sim em termos de conseguir um bom emprego".
A última palestra foi de Roger Brown, vice-presidente da SRHE e do
Centre of Higher Education Research Development (CHERD) da Liverpool
Hope University. Ele falou sobre "Politics and Policy Making in Higher
Education". Brown criticou as políticas públicas de ensino superior
adotadas desde 1979 que, segundo ele, teriam criado um sistema pouco
eficiente e pouco justo. Esse é o tema do livro que ele acaba de lançar
juntamente com Helen Carasso, que tem o provocante título Everything for Sale? The Marketisation of UK Higher Education.
A parte final da conferência consistiu em seis sessões paralelas de
discussão sobre os seguintes temas, que ilustram bem as principais
preocupações atuais da área:
1. A crise econômica global e seus efeitos no setor de ensino superior internacional
2. Massivo, aberto e online: transformação ou modismo?
3. Cumplicidade e conspiração na corrosão da experiência acadêmica
4. Ampliando a participação,
o acesso equitativo, a diversidade e a mobilidade social: questões
iguais, similares ou completamente diferentes?
5. Os objetivos do ensino de pós-graduação e as implicações para a qualidade
6. Liderança no ensino superior
Os resumos dos trabalhos apresentados, os currículos dos conferencistas
e a chamada para a próxima conferência da SRHE podem ser obtidos no
site http://www.srhe.ac.uk/conference2012.
ENTREVISTA
"Temos alunos que frequentaram cursos muito voltados ao mercado de trabalho e agora não encontram emprego"
Visão do governo britânico de formar pessoas com as habilidades
necessárias para o setor produtivo "é muito simplista", diz Helen
Perkins, diretora da SRHE e organizadora da conferência
Por Gabriela Celani
Você poderia nos contar um pouco sobre a história da Society for
Research into Higher Education e sobre seus objetivos e atividades?
Helen Perkins – A Sociedade foi fundada em 1965, como uma
entidade sem fins lucrativos, por um pequeno grupo de professores
(aproximadamente cinquenta, inicialmente) que tinham como objetivo
discutir políticas do ensino superior. Há cerca de dez anos a Sociedade
começou a se internacionalizar e hoje tem quase mil associados
espalhados pelo mundo. Seu objetivo é apoiar e difundir a pesquisa no
ensino superior, de maneira completamente independente de qualquer
universidade ou agência governamental. Publicamos pesquisas, premiamos
os melhores trabalhos, organizamos seminários, e damos suporte
principalmente para as pessoas que querem começar sua carreira nessa
área. Para os que já estão estabelecidos na carreira, facilitamos o
estabelecimento de uma rede internacional por meio de nossas
conferências anuais. Entre os principais temas que nos interessam estão
as políticas públicas, o acesso à Universidade, a acreditação etc.
E vocês acabam tendo alguma influência nas regulamentações do governo?
Helen Perkins – Infelizmente a resposta é não. Desde 1945,
uma das características da política de ensino superior britânica é a
aplicação de dinheiro público no setor privado, que desde então se
tornou predominante. Nós lutamos contra isso. Como você está vendo nesta
conferência, temos uma crescente e profunda preocupação com a direção
que a educação superior britânica está tomando. Os investimentos
públicos estão sendo sugados, enquanto as mensalidades pagas pelos
estudantes chegam a 9 mil libras por ano. Algumas pessoas acham que esse
sistema é sustentável. Não achamos que seja. Achamos que está levando a
uma situação em que apenas os ricos, que tiveram a chance de ter uma
formação básica melhor, têm chances de ter uma boa formação superior,
enquanto os pobres acabam indo parar em universidades ruins, e ainda
precisam pagar por isso. Nós temos publicado trabalhos muito eruditos a
esse respeito, resultantes de importantes pesquisas desenvolvidas na
área, mas infelizmente não temos conseguido mudar esse direcionamento.
E quais são os principais desafios que as universidades enfrentam
atualmente? Você acha que vão acabar todas se convertendo em entidades
com fins lucrativos, ou algumas vão manter sua função de formadoras de
opinião? Será que conseguirão compatibilizar as novas tecnologias com os
aspectos humanísticos da educação superior?
Helen Perkins – Esses foram alguns dos aspectos tratados pelo
David Watson no primeiro dia da Conferência. Eu acredito que nunca
chegaremos a uma situação de homogeneidade; sempre haverá diferentes
tipos de Universidade, desde as públicas voltadas à pesquisa até as
voltadas para o lucro. A pergunta é se vamos conseguir manter a ideia de
uma Universidade de pesquisa não reservada às elites. Ocorre que ela
sofre pressão do governo para se aproximar cada vez mais do mercado de
trabalho – mesmo que não esteja se transformando em uma instituição com
fins lucrativos. As universidades não se dão conta do poder político que
têm na sociedade. Mas é muito grande. Na Grã-Bretanha já existem seis
universidades com fins lucrativos...
Só seis? Com todas essas discussões eu pensei que já fossem mais...
Helen Perkins – Mas existe muita pressão do governo para
aumentar esse número. O problema é que há pessoas pobres pagando
milhares de libras por ano para receber uma educação que não tem
qualidade, em universidades com fins lucrativos.
No Brasil temos o mesmo fenômeno acontecendo...
Helen Perkins – Eu não entendo por que isso aconteceu aqui.
Acho que tivemos más experiências de como gerir nossas universidades
públicas quando eram financiadas pelo governo.
Georg Krücken falou sobre a diminuição do número de patentes na
Alemanha e Suellen Shay sobre o risco de a Universidade parar de
produzir novo conhecimento. A situação está assim tão ruim? Devemos nos
preocupar?
Helen Perkins – Sim, devemos nos preocupar! Há trinta anos
temos discutido no Reino Unido qual o papel do ensino superior, e o
governo tem dito que ele precisa formar pessoas com as habilidades
necessárias para o setor produtivo. É uma visão muito simplista.
Precisamos olhar para o futuro. Já temos gente que frequentou cursos
muito voltados para o mercado de trabalho, mas que agora não encontra
emprego. O papel da Universidade é ensinar as pessoas a aprenderem de
maneira continuada, pela vida toda. Se você falar com uma pessoa que
frequentou uma boa Universidade, ela vai dizer que a coisa mais
importante que aprendeu foi a se questionar, a criticar... uma série de
habilidades que vão além dos conteúdos propriamente ensinados.
Vamos falar um pouco do Brasil. A revista Times Higher Education
de dezembro traz em sua capa uma passista, dançando no Carnaval. Você
poderia falar um pouco sobre como a comunidade acadêmica britânica vê os
estudantes e as universidades brasileiras?