segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Revista Interesse Nacional, janeiro de 2013





Erich Auerbach, pensador e hermeneuta do século XX, expõe sua visão da propaganda (demagógica e totalitária) na figura do palco e do holofote. Ao criticar o estilo das Luzes militantes (frases rápidas que induzem o leitor a conclusões injustas sobre indivíduos, grupos e instituições), ele recorda que o mundo humano é um imenso palco, onde inúmeras cenas surgem ao mesmo tempo. O propagandista social, político e econômico ilumina uma ou outra cena e deixa as demais na obscuridade. Quem está na plateia tem a sensação de atingir a verdade, pois a parte iluminada é verdadeira. Como, no entanto, os demais aspectos ficam no escuro, ele não testemunha toda a verdade. “E da verdade, faz parte toda a verdade”. Auerbach lembra que a busca do verdadeiro exigiria tempo suficiente para iluminar o maior número possível de cenas. “O público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquietação, e todos conhecemos bastantes exemplos disto, do nosso passado mais imediato. “Contudo, o truque é, na maior parte dos casos, fácil de ser descoberto; mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo. Quando uma forma de vida ou um grupo humano cumpriram o seu tempo ou perderam prestígio e tolerância, toda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se ter uma semiconsciência do seu caráter de injustiça, com alegria sádica”. A imprensa, os movimentos, os políticos e as instituições estão imersos no tempo rápido, dominado com técnica refinada pela propaganda.

No caso da Ação Penal 470, é possível notar o quão é útil a figura imaginada por Auerbach. Primeiramente, pela seleção das cenas e dos atores. Como em outros escândalos que atraíram o olhar público (desde o “mar de lama” atribuído ao governo Getúlio Vargas pela UDN ao impedimento de Collor, passando pelos “Anões do Orçamento” e similares) faz-se um recorte de atos e personagens, atribuindo-lhes todos os malefícios da República. Quem denuncia os desmandos é tido como herói sem mácula. Não se diz naqueles instantes que o ato de desmascarar, não raro, é uma forma das mais odiosas de poder autoritário e serve para esconder os intentos e atos dos acusadores. “Nada impede que o ator use uma máscara por baixo de outra” diz Elias Canetti no monumento ético e político chamado Massa e Poder. A máscara duplicada no rosto de quem aponta o dedo para os demais é “arma ou instrumento que deve ser manipulado”.


Para compreender o processo julgado pelo STF é preciso examinar outras cenas transcorridas em tempos recuados da história ética e política. Felizmente, existem revistas como Interesse Nacional que não se pautam pelo tempo rápido e abrem espaço para considerações que exigem uma cronologia alheia à propaganda. As ações tortuosas do passado continuam a existir no presente e se instalam na maioria dos partidos políticos brasileiros. Não posso ser exaustivo. Escolho o que julgo mais grave em nossa ordem social e política. Outros analistas examinarão com argúcia e rigor vários ângulos do tema.

Começo com o pretérito que nos gerou o absolutismo, forma estatal predominante quando o Brasil foi assumido como Colônia de Portugal. No fim, deduzirei os problemas que nos afastam da ordem democrática moderna, a partir da herança, ainda não ultrapassada entre nós, do Antigo Regime.


O Estado depende da sociedade que o envolve e a ética domina as formas sociais. Um lado relevante da ética – a ordem dos costumes – é a reiteração e o automatismo das posturas corporais e dos valores. Agir segundo um modelo aprendido é próprio da ética. A ordem social brasileira segue o favor, obstáculo que impede a autonomia dos eleitores e, de outro lado, distorce a vida parlamentar, a efetividade do executivo nos projetos públicos e, mesmo, a jurisdição. O favor impõe limites para os elos igualitários na vida pública. No mercado, nos partidos, nas igrejas ou seitas religiosas, o favor define espaços de troca que tornam os programas políticos irrelevantes. O favor não é monopólio do Brasil. Em quase todas as sociedades, antigas ou modernas, ele surge como poder. Mas, em países que chegaram à modernidade ele é regulado e seus efeitos anárquicos se atenuam em prol de procedimentos impessoais e abstratos. Em nossa terra, ele concentra o imaginário, os valores e as práticas de famílias, grupos, cidades e regiões, sendo uma forma de “mediação universal”.Aqui, político poderoso é o que mais garante favores aos amigos, aos aliados e, não raro, aos próprios inimigos. O favor alimenta alianças políticas, eleva e rebaixa ministros, ordena as pautas legislativas e atormenta os Executivos. Ele sustenta redes complexas de interesses, lobbies disfarçados, trocas entre poderes, corrupção de agentes públicos por empresas privadas. Somos uma antirrepública ou um império do favor. A Ação 470 e similares só podem ser inteligíveis em semelhante quadro.


O favor no Brasil traz os signos de uma história antiga e seus traços podem ser encontrados no Império Romano e na sociedade do Antigo Regime. A frase que nos separa das sociedades democráticas se origina no “enobrecimento” trazido pelo favor. Em terras de língua inglesa a pergunta, quando alguém desrespeita direitos, é clara: “Who the hell do you think you are?”. No Brasil, o “você sabe com quem está falando?” trai o regime do favor e da importância baseada nos “amigos poderosos” ou na família idem.

Favor no Antigo Regime

Iniciemos com o Antigo Regime que nos deu o corpo e a alma em 1500. O Brasil nasce sob o poder absoluto que dava passos decisivos no século XVI. A ordem dos favores impera na corte e nos elos entre nobres importantes e outros menos poderosos. Como enuncia Joël Cornette ao se referir à França, modelo copiado em parcela significativa de países europeus, o reino “é organizado como uma família mais ampla de início, na qual as ligações de sangue e proximidade são hegemônicas, onde o rei sempre é percebido sob os traços de pai benevolente, o pater familias, concedendo benesses aos seus e sabendo distinguir, entre os próximos, quem as merece (…) Segundo a propaganda oficial, as famílias terrestres do reino apenas transcrevem a família celeste, dos santos, dos anjos, do povo de Deus”.

O rei socorre os seus aliados “construindo uma rede familiar e doméstica que assegura a boa marcha do governo. Para tanto, é preciso achar subsídios. Os monarcas mais espertos elaboraram com seus conselheiros sistemas que ligam o “doméstico ao administrativo”, a fidelidade à venalidade, o “serviço de sua pessoa na administração da coisa pública”. A monarquia criou em permanência a estrutura clientelar com ramos horizontais no espaço geográfico, limitadas apenas pelas fronteiras, com implicações verticais na hierarquia social”.


A ascensão dos grupos e indivíduos ocorre numa imensa rede de favores. O rei deve cooptar os nobres, que precisam exibir poder ao rei. Os dois lados se valem de operadores que permitam a fluidez dos interesses, a sua realização sempre na dependência dos alvos concorrentes ou paralelos aos dos coletivos familiares ou de “amigos”. A política do “é dando que se recebe” não foi instaurada no Brasil. A sociedade e o Estado absolutistas constituem, diz um historiador, “redes de amizade, de primos, de camaradas de colégio e combate, companheirismo, afinidades diversas, encontros de vizinhos”. O favor, para o nobre, define “uma rede de interdependência na qual ele se inseria desde o nascimento, onde se casava e que lhe permitia sustentar, ou aumentar, a reputação de sua casa. É um capital que em parte ele herdara de seus parentes, que deveria fazer frutificar, antes de o transmitir, por sua vez, aos filhos.”


O reino é movido pelos alvos das famílias. As redes horizontais de parceria e cumplicidade buscam ascender na escala do Estado. O meio é encontrar conexões em estratos cada vez mais altos das redes de interesse e favor, até atingir os arredores do trono. Os elos de clientela e fidelidade se tornam a cada momento mais amplos e complexos. Entre os termos que assinalam os pactos tácitos está o que enuncia que alguém “pertence” a outro, é sua “criatura” ou seu “doméstico”. Tais cadeias de solidariedade unem três tipos de pessoas: o patrão, o cliente e os brokers (os intermediários), os corretores. A clientela é praticada desde os tempos de Roma, mas, na modernidade, atinge seu ápice.
No Antigo Regime, em troca da proteção e de benesses o patrão “ajuda seu cliente e, se preciso, o veste, o alimenta, hospeda, lhe procura emprego, empresta ou dá o dinheiro para comprar um cargo, o empurra na ascensão social e o defende contra seus adversários. Às vezes, organiza seu casamento, educa ou casa seus filhos. Tal patrão, se não for uma pessoa rica, pelo menos é alguém influente, capaz de intervir em favor de seu protegido ou o recomendando aos mais poderosos do que ele”. A ausência de reciprocidade traz ruptura, traição e acusações de ingratidão. O corretor, ou broker, é uma espécie de patrão pela metade que põe sua própria clientela para servir outro, mais poderoso. Ele facilita as negociações. “O patrão principal precisa desses ‘cafetões’ – entremetteurs –, numerosos e eficazes para ampliar sua influência, assegurar o apoio de meios ou redes que ele não pode abordar diretamente. O corretor lucra ao fazer frutificar seu próprio capital de relações, monetarizando em preço alto seu papel de mediação e buscando, por sua vez, assegurar para si mesmo o monopólio do mercadejo (courtage), o que o patrão nem sempre tem interesse em conceder”.

Rede de relações

Essas relações de favor e de influência permitem entender o funcionamento do poder num sistema estatal incompletamente institucionalizado. A incompletude administrativa reforça o favor na sociedade política. Trabalhos como o de François-Xavier Guerra mostram tal ponto na história recente. Outras pesquisas como a de Steffen Schmidt poderiam ser citadas.

No Brasil, Maria Sylvia Carvalho Franco tematizou, para compreender a lógica que norteia a sociedade e a política nacional, as relações de favor, de “amizade”. A autora conceitua a rede de relações tecida entre poderosos fazendeiros, sitiantes pobres e os dominados no baixo da escala social. O grande proprietário, diz ela, manteve relações aparentemente horizontais com o sitiante. Ela começa pelo depoimento de um membro de família rica em Resende, nascido em 1870. “Não havia desigualdade entre fazendeiros e sitiantes; havia mesmo amizade. Se um deles chegava à nossa porta, vinha para a mesa almoçar conosco”. Como prova da “igualdade” com o sitiante, era dito que eles e grandes proprietários eram compadres. A prática do compadrio suspende de maneira imaginária a diferença de nível e de riqueza. A autora cita Antonio Cândido: os vínculos “entre padrinho e afilhado eram tão ou mais fortes que os de consanguinidade: não apenas o padrinho era obrigado a tomar o lugar do pai, sempre que necessário, mas tinha que ajudar seu afilhado em várias ocasiões (…) o afilhado, por sua vez, ajudava o padrinho em tudo o que este necessitava, e frequentemente tomava o nome da família”. A criança pobre deve ser “encaminhada na vida”, com ajuda do mais forte. A autora cita Coldman: “Como naturalmente o padrinho deseja cumprir sua promessa com a menor despesa possível, o que de melhor pode fazer senão prover o jovem, tão logo tenha idade adequada, com um emprego público? E se o governo não tem o suficiente número de cargos à sua disposição, como poderia a influência do Duque, Marquês, Barão, Comendador, ser mantida mais facilmente que criando novos cargos e novos funcionários?”. No Brasil “quem tem padrinho, não morre pagão”, ou seja, sempre alcança os empregos públicos ou privados, quando funciona a rede de favores recíprocos. “Ampliando-se as trocas do compadrio para situações sociais, compreende-se como deriva dele toda uma intrincada rede de dívidas e obrigações, infindáveis porque sempre renovadas em cada uma de suas amortizações, num processo que se regenera em cada um dos momentos em que se consome.”

A igualdade fictícia trazida pelos ritos sagrados e pela “amizade” interessada mostra sua face de dominação em momentos de apuro financeiro. O patrono ajuda o sitiante, que devolve em apoio político. Diz um rico, em depoimento anotado pela autora: “se os sitiantes da redondeza estavam em dificuldades ou queriam comprar um pedaço de terra, emprestavam dinheiro de meu pai; em compensação, esta gente sempre o acompanhava, eram seus eleitores ou seus cabos, pois ele era o chefe conservador da zona (…) Não havia compra de voto. Não havia concorrência entre os chefes políticos: não adiantava, quem era conservador era conservador e quem era liberal era liberal”. Deduz a autora: “a dependência” em que os protegidos estavam “tornava inelutável a fidelidade correspondente. Sua adesão em troca dos benefícios recebidos é tão automática, que sequer são tomadas medidas que assegurem seu voto; tampouco se cogita providências para atrair eleitores cuja fidelidade está definida para com o lado contrário. Umas seriam desnecessárias, e outras inúteis”.

Lealdade e fidelidade

Presos à política local ou no máximo regional, os dominados não perceberam o alcance de eventos como a Independência do Brasil e similares. “Estado, na consciência desses homens se confundia com a pessoa do príncipe e governo se identificava com seus atos e decisões, ou com a de seus representantes”. Assim, a consciência política dos setores livres e pobres não vai além da pessoa que lidera o elo entre os dois extremos da cadeia de domínio. A visão institucional do Estado e de seus interesses nacionais ou internacionais falta a tais setores. Os nexos entre patrono e cliente são definidos: “a lealdade inclui o reconhecimento do benefício recebido, o sentimento de gratidão por ele e o imperativo de sua retribuição equivalente”. Mas, “o fabricar de lealdades e fidelidades através de um processo cumulativo de recíprocos encargos e favores promovia, sucessivamente, a eliminação completa da possibilidade de um existir autônomo”. O poder, então, é impossível de ser concebido “senão mediante o prisma formado pela encarnação do poder: este transfigura a realidade social, convertendo-a nas formas objetivadas da existência daquele que é ideado como superior, e plasma as categorias através das quais ela é conhecida, confinando-as a imagens que não podem transcender essa mesma situação vital particular, personificada e alheia”. Temos aí o peso do comportamento mecanizado do dependente e sua incapacidade para apreender a organização e a dinâmica da política em nível institucional. Atitude similar, de “amizade”, ocorre entre patronos e agregados. O morador ficava nas terras do patrono se fosse amigo. “Agregado ou camarada, a anulação de sua vontade se revela na simples incapacidade de tomar uma decisão autônoma”. Uma testemunha, no caso de rapto de jovem, diz que o réu “lhe fora pedir para ter guardada em sua casa a menor e ele respondera que não o podia fazer sem o consentimento de seu patrão, porque era agregado”. Sua recusa, adianta a autora, “tem a ver menos com o risco de transgredir a lei, que de incorrer na desaprovação do fazendeiro”.

O favor permeia, assim, os elos entre patronos e gente livre, mas pobre no Brasil. E se atentarmos para o fato de sermos uma sociedade injusta por excelência, a ficção da igualdade jurídica e política se esvai rapidamente. No mesmo passo, guardamos as práticas políticas do Antigo Regime, como, por exemplo, a diferenciação entre operadores do Estado e “pessoas comuns”, simples pagadores de impostos, sem maiores direitos e poderes. Os cargos dos “amigos” e apadrinhados continuam em uso, na troca de favores entre oligarcas que tentam se aproximar do poder, na corte. Os mesmos padrinhos tentam, por meio dos seus clientes, alicerçar alianças com seus pares oligárquicos, tudo segundo a receita absolutista.

Repelir a soberania popular

Vimos a essência da sociedade do antigo regime, absolutista, e da brasileira, nas quais o favor permeia todas as relações, o que impede a moderna forma de responsabilização privada e pública, favorecendo a corrupção entre nós. Passemos aos problemas políticos definidos historicamente em nosso Estado. A historiografia conservadora notou no Brasil um recurso eficaz para repelir o perigo da soberania popular e mesmo da representação política. A Revolução Francesa teria sido, na propaganda reacionária, um episódio sangrento de anarquia e ditadura, e o poder que a sucedeu após o Termidor, e que acabou nas mãos de Napoleão, seguiu de um ponto ao outro dos setores estatais. Se a Assembleia, no processo revolucionário, acabou instaurando uma ditadura “virtuosa”, o poder Executivo tornou-se um centro ditatorial com o regime instaurado pelo corso, ordenando tudo burocraticamente em escala hierárquica do alto à base do Estado. Entre os dois poderes, o Judiciário não consegue manter a sua independência. Urge resolver o problema da harmonia entre os três poderes antes enfeixados nas pessoas do rei ou do parlamento. Na gênese do Estado brasileiro imaginou-se resolver o conflito e, ao mesmo tempo, as ameaças trazidas pelo povo, como teria ocorrido nas revoluções inglesa, norte-americana, francesa: a instituição do poder moderador cumpre esse papel.

Escutemos o conservador Guizot: “Quais são as marcas do soberano de direito, as marcas de sua natureza própria? Para começar, ele é único; porque só existe uma verdade, uma justiça, só existe um soberano de direito. Ele é o mais permanente, sempre o mesmo: a verdade não muda. Posto numa situação superior, estranha a todas as vicissitudes, a todas as possibilidades desse mundo; ele está no mundo, de certo modo, apenas como espectador e como juiz: este é o seu papel. Pois bem, senhores, estas marcas racionais, naturais no soberano de direito, são reproduzidas pela realeza exteriormente na forma mais sensível, que dela parece a mais fiel imagem. Abri o livro em que o Sr. Benjamin Constant tão engenhosamente representou a realeza como um poder neutro, um poder moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervém nas grandes crises. Esta não seria, por assim dizer, a atitude do soberano de direito no governo das coisas humanas? É preciso que haja nesta ideia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na Constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como poder moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz”.

Pouco de federalismo, muito de Império

A formulação liberal do próprio Benjamin Constant procurava impor limites à soberania popular, mas trazia também a preocupação de estabelecer os limites dos poderes e garantir a sua harmoniosa relação. Neutro, o poder moderador seria o apanágio da realeza, os ministros seriam responsáveis pelo governo e os legisladores não seriam pagos. O julgamento pelo júri seria a norma e haveria liberdade de imprensa. Fica bem clara a intenção de Benjamin Constant ao sugerir o Poder Moderador como preventivo de tiranias. De um lado, ele pode limitar as formas soberanas ligadas ao povo, sobretudo o despotismo do Legislativo. De outro, atenua as pretensões do Executivo, garantindo o Judiciário.

Benjamin soube notar os excessos de poder de um setor do Estado e procurou definir o controle dos três poderes por intermédio do Poder Moderador, indicado como tarefa do rei. “Para que não se abuse do poder, é preciso que pela disposição das coisas o poder detenha o poder.” No Brasil, a concepção de Constant seguiu para um rumo inesperado. Vimos o elogio do Poder Moderador em nosso país por Guizot. Há um evidente desvio do conceito na pena de Guizot. Constant define aquele poder como neutro, o que significa que ele serve para coordenar os três poderes, sem neles interferir “do alto”. A operação de hierarquizar os poderes foi seguida no Brasil com a Constituição de 1824. A tendência centralizadora do poder real já fora iniciada em Portugal no século XVIII com as reformas pombalinas. “As concepções de poder político, sociedade e Estado são assim formuladas em torno da noção de império civil, com fins de legitimar a monarquia portuguesa e consubstanciar projetos de atuação política.”

A predominância do poder moderador sobre os demais se manteve durante o império, incluindo o tempo de regência, quando o país passou por rebeliões sufocadas manu militari de Norte a Sul. Somadas as suspensões dos direitos e a permanente supremacia do imperador, tem-se como resultado uma difícil e quase improvável democratização do Estado. O permanente estado de rebelião e as necessidades do poder central definem o império como excessivamente preso ao modelo de concentração de poderes, o que molesta ainda em nossos dias o país, com o tipo de federação na qual os Estados possuem realmente pouca autonomia, sobretudo em matéria fiscal. Com o fim do império, os positivistas tentaram acabar de vez com as forças liberais, com o conceito de ditadura, que acentua e mantém a preponderância do Executivo sobre o Legislativo, concentrando o poder diretor numa única pessoa. Falar em Legislativo, nesta doutrina, é impreciso e mesmo errôneo, visto que a Assembleia teria função fiscal: aprovar o orçamento do Estado. Em toda a república as prerrogativas do Poder Moderador foram incorporadas silenciosamente à Presidência do país. Com elas, temos a permanente pretensão dos ocupantes daquele cargo a assumir, como imperadores temporários, a preeminência e a intervenção nos demais poderes.

Dificilmente o nosso Estado e a sociedade entrariam na qualificação de formas democráticas. O nosso modo de unir os Estados tem pouco de “federalismo” e muito de império. Tomemos a indicação da jurista Anna Gamper, que analisa as formas federativas, para apontar as fraturas no projeto da União Europeia: “Por unanimidade, as definições de federalismo reconhecem o fundamento da palavra latina foedus que significa “pacto”. Todas as teorias concordam que federalismo é um princípio que se aplica ao sistema que consiste em pelo menos duas partes constituintes, não totalmente independentes que, juntas, formam o sistema como um todo. O federalismo, pois, combina o princípio da unidade e da diversidade (concordantia discors). As partes constituintes devem ter poderes próprios e devem ser admitidas a participar do nível federal”. Da lição trazida pela autora tomemos a parte em que ela afirma a exigência sine qua non que declara: “as unidades constituintes devem ter poderes próprios”. Desde a Independência, o poder central brasileiro monopoliza todas as prerrogativas do Estado e não as partilha de fato com os demais entes, supostamente unidos hoje por laços de federação. Se em nosso caso foedus significasse “pacto”, teríamos graus crescentes de autonomia, dos municípios ao poder central.

“É dando que se recebe”

Mas, hoje, a partir de Brasília, regras uniformes determinam até os detalhes da ordem nacional, desconhecem deliberadamente as diferenças regionais, culturais, geográficas, etc. Do Oiapoque ao Chuí, há uma uniformização gigantesca que obriga cada uma das regiões a se pautar pelo tempo longo da enorme burocracia federal, perdendo ocasiões preciosas para o experimento e mudanças das políticas públicas em plano regional ou local. Enquanto em outras federações, como a norte-americana (e apesar do grande centralismo daquele país) vigoram leis diversas em termos penais, educacionais, tecnológicos, etc., no Brasil a mão de ferro do Estado central controla, dirige, pune e premia os estados, segundo sustentem os interesses dos ocupantes temporários da Presidência. Nesse controle, as oligarquias regionais surgem como operadores de face dupla: servem para trazer os planos do poder central aos Estados e para levar ao mesmo poder as aspirações de estados e municípios.

O lugar onde as negociações entre os dois níveis (central e estadual) ocorrem, normalmente, é o Congresso, em Brasília. Ali, Presidência e ministérios buscam apoio aos seus projetos, inclusive e, sobretudo, de leis. É impossível conseguir recursos orçamentários, por exemplo, sem as “negociações”, e nelas o modus operandi identifica-se ao conhecido “é dando que se recebe”. Assim, os planos federais de inclusão social e democratização societária patinam na enorme generalidade do “grande Brasil”, enquanto as unidades aguardam as “providências” de uma burocracia incapaz de entender os vários ritmos e formas de vida e pensamento regionais.

Nos impostos, a concentração irracional de poderes deixa estados e municípios sempre à mingua de recursos. Verbas provenientes de impostos ou a eles ligadas, como no caso das exportações, não são repassadas às unidades ou não são repassadas em tempo certo, permanecendo nas mãos dos ministérios econômicos. Governadores e prefeitos são reduzidos à quase mendicância junto ao poder central. Testemunhamos, todos os anos, a caminhada de prefeitos do país inteiro rumo ao Congresso para reclamar recursos, autonomia, modificações em leis eleitorais e de estruturas municipais. Os prefeitos são tratados como estranhos ao Parlamento Federal. Enquanto tal situação permanecer, a fábrica das manobras corruptas (nas duas pontas, nos municípios e na capital da República) estará em pleno funcionamento.

Semelhanças entre as práticas absolutistas e as que imperam em nossos dias, na política brasileira: a determinação mais evidente e danosa é a da troca de favores na sociedade e na administração pública. Nenhum dos escândalos que abalaram o Estado nacional deixa de ter operadores (os brokers) que ligam interessados e seus alvos. Assim, os que manipulam recursos públicos cumprem a função de intermediários, em primeiro lugar, dos favores sociais, políticos, econômicos, ideológicos e, mesmo, religiosos. Mas, tais operadores não funcionam no vazio. Eles executam um papel essencial e servem a todos os partidos, porque todos eles movem a máquina do poder federal que concentra as verbas emanadas de impostos. Sem os operadores, nenhum oligarca regional consegue chegar até a boca do cofre ou à caneta do poder Executivo. Os brokers, por sua vez, conseguem cargos para seus clientes, tanto na administração pública quanto nas chamadas empresas estatais (para não falar nas empresas privadas que, assim, trocam favores com os donos temporários do poder).

Apadrinhamento político

Os nossos brokers, herdeiros do Antigo Regime (dos quais Marcos Valério é apenas um entre muitos), trabalham num esquema de apadrinhamento político que se divide entre as velhas práticas, como as indicações para os cargos feitas por oligarcas e as “novas” indicações para os cargos segundo o critério da “militância”, sem passar pela competência técnica ou administrativa. Daí para os “serviços” junto aos cofres públicos e privados é apenas um passo. O chefe do Executivo e do Estado tem como função, à semelhança do rei no Antigo Regime, favorecer os que o favorecem com cargos, privilégios, recursos e isenções de impostos. Semelhante troca de favores só é viável porque existe na sociedade a cultura do favorecimento, conseguido com os que operam o Estado.

Os nossos políticos jogam perenemente com o medo dos eleitores diante do pior: o fim dos favores ou uma hecatombe econômica se “os outros” vencerem, ou com a ausência de verbas, obras, empregos. Basta ver a propaganda nas eleições: se os munícipes votarem contra os indicados por Brasília (ou pelo palácio do governador), programas importantes não virão. Caso votem no candidato do príncipe, benesses fluirão em abundância. Os políticos conhecem os eleitores, não os idealizados, mas os reais. Os princípios éticos não rendem favores nem votos, não rendem obras, nem poder. É em um terreno assim que devemos pensar a responsabilidade governamental.

A corrupção que gera escândalo possui dois registros temporais – um diacrônico e outro sincrônico. Num sistema necessariamente corrupto, dada a concentração de recursos nas mãos do poder Executivo maior, os policiais, o Ministério Público, a Justiça e a imprensa tomam conhecimento dos fatos uns após outros. Mas, no mesmo átimo em que surge um escândalo, a rede corrupta opera no Estado e na sociedade. A polícia, a Justiça, o Ministério Público quase sempre operam post festum. O sistema, sincronicamente, pratica as mesmas coisas supostamente punidas ao serem descobertas. A nossa prática é a de iluminar um quadro de cada vez, enquanto os demais ficam na sombra… até que sejam iluminados.

Os escândalos não constituem monopólio dos políticos. Eles não raro têm raízes no mercado, na sociedade civil e nas instituições sociais. Pensemos apenas nos esportes: boa parte deles é gerida segundo técnicas de causar inveja aos apadrinhados de Don Corleone. Os casos são múltiplos. Talvez seja mais grave que um operador do Estado se corrompa, do que um cartola. No entanto, as pessoas se habituam ao fenômeno nos dois setores. Lembremos a lição dos pensadores políticos segundo a qual um Estado (é mais verdadeiro para o democrático) pode ser assassinado por forças externas violentas, mas também morre por consunção interna.

Quais são as outras lições a serem extraídas da Ação Penal 470? A primeira é nos precavermos contra o maniqueísmo e a prática do desmascaramento alheio quando se guarda a máscara da pureza (falsa) para si. A segunda é lutar contra a cultura do favor na sociedade e no Estado. A lógica do compadrio precisa ser recusada pelos que se julgam democratas. A terceira é legalizar o lobby, porque em boa parte os nossos congressistas, sob a aparência de representação popular, são lobistas de fato, sem responsabilidade normativa. Eles também agem como os brokers que facilitam o acesso ao verbo e às verbas. A quarta é lutar por uma federalização real do Brasil. Sem ela, os escândalos, movidos pelos intermediários, cujo nome pode ser Valério ou qualquer outro, continuarão desanimando a cidadania na busca de um Estado democrático de direito.


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