Mujica, um uruguaio austero na presidência
O legado controvertido do homem que, entre um mate e outro, colocou o Uruguai entre os países mais liberais do continente depois de ficar 14 anos na cadeia
18 de janeiro de 2013 | 2h 04
SIMON ROMERO - THE NEW YORK TIMES - O Estado de S.Paulo
Alguns líderes mundiais vivem em palácios. Outros
desfrutam de uma vida privilegiada, com um mordomo discreto, uma frota
de iates e uma adega de vinhos com Champagne de safras especiais. E há
também José Mujica, o ex-guerrilheiro que é o atual presidente do
Uruguai. Ele mora numa casa simples nos arredores de Montevidéu sem
nenhum empregado. Como seguranças, tem dois policiais à paisana
estacionados numa rua de terra.
Numa declaração à nação, famosa exportadora de carne de gado, com uma
população de 3,3 milhões de habitantes, Mujica, de 77 anos, recusou a
opulenta mansão presidencial de Suárez y Reyes, com nada menos que 42
funcionários, e preferiu permanecer na casa onde ele e a esposa vivem há
anos, numa pequena fazenda onde plantam crisântemos que vendem nos
mercados locais.
Chega-se à austera habitação de Mujica depois de percorrer a rodovia
O'Higgins, passando por bosques de limoeiros. Ao assumir a presidência,
em 2010, seu patrimônio era de aproximadamente US$ 1.800 - o valor do
fusca 1987 estacionado na garagem. Jamais usa uma gravata e doa cerca de
90% do salário, em grande parte a um programa de expansão de moradias
para os pobres.
Sua atual versão de radicalismo discreto - uma mudança acentuada em
relação aos dias nos quais ele pegou em armas para tentar derrubar o
governo - exemplifica a emergência do Uruguai como talvez o país mais
liberal do ponto de vista social da América Latina.
Sob o governo de Mujica, que tomou posse em 2010, o Uruguai chamou a
atenção por tentar legalizar a maconha e o casamento de gays, e ao mesmo
tempo implementar uma legislação das mais abrangentes de toda a região
sobre o direito ao aborto, estimulando consideravelmente a utilização de
fontes de energia renovável, como os ventos e a biomassa.
Enquanto a doença afasta o presidente Hugo Chávez da Venezuela do
cenário político, deixando repentinamente o continente sem a figura
exagerada que tanto influenciou a esquerda, o ascetismo praticado por
Mujica é um estudo de contrastes. Segundo ele, para que a democracia
funcione devidamente, os líderes eleitos deveriam se adequar mais à
realidade.
"Fizemos todo o possível para tornar a presidência um cargo menos
venerado", disse Mujica depois de preparar o mate para todos na cozinha
de sua casa, numa recente entrevista.
Enquanto passava a cuia de mão em mão, ele admitiu que seu tranquilo
estilo presidencial pode parecer inusitado. No entanto, afirmou que se
trata de uma escolha consciente para evitar as armadilhas do poder e da
riqueza. Citando o filósofo romano Sêneca, Mujica disse: "O pobre não é o
homem que tem pouco demais, mas o homem que anseia por mais".
O líder diante frente das mudanças do Uruguai, conhecido por seus
inúmeros detratores e partidários como Pepe, é uma pessoa que poucos
achariam em condições de ascender a essa posição. Antes que Mujica se
tornasse produtor de crisântemos, era um dos líderes dos tupamaros, os
guerrilheiros urbanos que se inspiraram na revolução cubana, realizavam
roubos à mão armada a bancos e sequestros nas ruas de Montevidéu.
Em sua luta contra o Estado uruguaio, os tupamaros ganharam
notoriedade pela violência. O diretor Constantin Costa-Gavras
inspirou-se neles para o seu filme de 1972 Estado de Sítio, sobre o
sequestro e execução, em 1970, de Daniel Mitrione, assessor americano da
polícia uruguaia. Mujica disse que o grupo "tentava por todos os meios
evitar matanças", mas também admitiu eufemisticamente seus "desvios
militares".
Uma operação brutal conseguiu por fim dominar os tupamaros e a
polícia capturou Mujica em 1972. Ele passou 14 anos na cadeia, mais de
10 numa solitária, frequentemente num buraco no chão. Neste período, o
deixaram mais de um ano sem tomar banho, e seus únicos companheiros,
contou, eram uma perereca e os ratos com os quais compartilhava migalhas
de pão.
Alguns dos outros tupamaros que ficaram durante anos confinados em
solitárias não tiveram o benefício da companhia de roedores amigos. Um
deles, Henry Engler, um estudante de medicina, sofreu um grave
esgotamento mental antes de ser libertado em 1985.
Mujica raramente fala da época que passou na prisão. Sentado diante
de uma mesa no jardim, bebericando o seu mate, ele diz que teve tempo
para refletir. "Aprendi que sempre se pode começar de novo", afirmou.
Ele optou por recomeçar ingressando na política. Eleito deputado,
chocou os funcionários do estacionamento do Parlamento ao chegar a bordo
de uma Vespa. Depois da ascensão da Frente Ampla ao poder em 2004, uma
coligação de partidos de esquerda e de social democratas mais
centristas, foi nomeado ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca.
Antes que Mujica vencesse as eleições de 2009 por ampla margem, seu
adversário, Luis Alberto Lacalle, menosprezou sua casinha chamando-a de
"caverna". Depois disso, Mujica também provocou uma agitação nos meios
políticos do Uruguai vendendo uma residência presidencial numa estância
balneária, por considerá-la "inútil".
As doações o deixam com US$ 800 por mês do seu salário. Como
declarou, ele e sua mulher, Lucia Topolanski, ex-guerrilheira que também
foi presa e hoje é senadora, não precisam de muita coisa para viver. Em
uma nova declaração em 2012, Mujica disse que compartilha da
propriedade dos bens que antes estavam no nome da esposa, incluindo a
casa e os implementos agrícolas, que contribuem para aumentar sua renda.
Ele destacou que seu antecessor da Frente Ampla na presidência,
Tabaré Vázquez, também permaneceu na sua casa (embora Vázquez,
oncologista de profissão, more no bairro da classe alta de El Prado), e
José Batlle y Ordóñez, o presidente do início do século 20 que criou o
estado do bem-estar uruguaio, ajudou a forjar uma tradição na qual "não
existe distância entre o presidente e qualquer um dos seus vizinhos".
Na realidade, se há um país na América do Sul em que um presidente
pode dirigir um fusca e viver sem um exército de seguranças será o
Uruguai, que figura entre as nações da região com menos corrupção e
menos desigualdade social. Embora a criminalidade comece a se tornar
preocupante, o Uruguai continua um dos países mais seguros da região.
No entanto, o estilo de governo do presidente não agrada a todos os
cidadãos. A proposta de legalizar a maconha, particularmente, provocou
um violento debate e as pesquisas mostram que a maioria da população é
contrária à medida. Em dezembro, Mujica pediu aos parlamentares que
adiassem a votação sobre a regulação do mercado da maconha, embora ele
pressione para que o projeto de lei seja debatido mais uma vez em breve.
"É uma vergonha ter como presidente um homem como ele", disse Luz
Díaz, uma empregada doméstica aposentada de 78 anos que mora perto de
Mujica e votou nele em 2009. Ela afirmou que não votaria mais nele se
tivesse a chance. "Esse negócio da maconha é um absurdo", acrescentou.
"Pepe deveria voltar a vender suas flores."
As pesquisas mostram que seus índices de aprovação estão caindo, mas
Mujica diz não se importar. "Não ligo a mínima", disse, enfatizando que
considera "monarquista" a possibilidade de se reeleger para mandatos
consecutivos, proibidos pela Constituição uruguaia. "Se me preocupasse
com as pesquisas, não seria presidente", afirmou.
Faltando dois anos para o fim do mandato, Mujica parece apreciar a
liberdade de falar o que pensa. Quanto às suas crenças religiosas, disse
que ainda está em busca de Deus.
Ele lamenta que tantas sociedades tenham a expansão econômica como
prioridade, definindo-a "um problema para a nossa civilização" em razão
das exigências feitas aos recursos do planeta. (O interessante é que a
economia do Uruguai anda crescendo a uma taxa confortável anual estimada
em 3,6%. Quando a cuia de mate ficou vazia, Mujica desapareceu na
cozinha e voltou com um sorriso malicioso e uma garrafa de Espinillar,
uma bebida alcoólica feita com a cana de açúcar. Ainda não era meio-dia,
mas enchemos os copos e brindamos.
Depois disso, o presidente falou de vários assuntos: antropologia,
ciclismo e a paixão dos uruguaios pela carne bovina. Ele disse que nem
sonha em se aposentar, mas espera poder dedicar-se novamente à
agricultura em tempo integral no final do mandato.
Finalmente, os olhos do presidente se iluminaram quando lembrou de um
trecho do Dom Quixote, no qual o cavaleiro andante bebe vinho de um
chifre e janta carne de ovelha com os pastores seus anfitriões,
pronunciando um discurso sobre a "peste da cavalaria".
"Os pastores eram as pessoas mais pobres da Espanha", disse Mujica.
"Provavelmente, eram os mais ricos", acrescentou.
/ TRADUÇÃO DE ANNA
CAPOVILLA
* É JORNALISTA