sexta-feira, 12 de abril de 2013
Aos aspeadores (sem aspas)....
Deselogio das aspas
Uma crónica publicada em 2002, aqui retomada em 2007 e agora de novo. Porque permanece inteiramente atual.
Nem sempre é fácil sinalizar a escrita. Arrumar as palavras,
separando-as com pontos, vírgulas, pontos e vírgulas, hífenes ou
travessões, mais dois pontos, parênteses curvos ou retos, colchetes…
reticências. Mas também com aspas («_»), esse adorno – análogo às comas
duplas ou vírgulas dobradas (“_”), usadas sobretudo para citar ou
introduzir uma expressão em língua estranha – que confere um valor
significante diverso do habitual à palavra ou à expressão que entre elas
se insere. Com «indecorosa» intenção normativa, D’Silvas Filho, autor
de um Prontuário editado há uns anos pela Texto, declara que a
aposição das aspas constitui uma prática que serve para grafar «termos
ou expressões que se devem evitar, termo estrangeiro, reserva no que se
escreve (ortográfica, fonética, semântica, eventualmente autoria)».
Preceito que a ser seguido com rigor, neste tempo de contínua mudança
da fala e da escrita, faria de toda a leitura um labirinto cravado de
minas e armadilhas.
De inegável utilidade pública na construção de sentidos esconsos e
álibis, as aspas, são sinais de vida fácil e atribulada, inúmeras vezes
objecto de abuso. Abre aspas, por dá cá aquela palha, fecha aspas.
Solícitas, sem pudor, servem para contornar insultos, podendo afirmar-se
na sua companhia que o senhor diretor «é um valente “pulha” (entre
aspas)!», assim minimizando a ofensa. Noutros momentos, ouvimos o
comentador desportivo afirmar que “o jogador saltou para cima do
adversário. «Para cima» entre aspas, naturalmente”. Ou então lemos, nas
letras grossas de um daqueles jornais regionais especializados no obtuso
desperdício das referidas sinalefas, que «os turistas espanhóis
“invadiram” a cidade». Não fossemos nós, tontos leitores, pensar que,
por ablação das ditas, o avançado do clube oponente tivesse subvertido
em pleno relvado a homofobia dominante no mundo do futebol. Ou que os
castelhanos tivessem esquecido a padeira Brites e decidido preencher a
mesma urbe com postos militares avançados, disfarçados de simpáticas
tendinhas de tapas e bocadillos.
Existem entretanto modos menos caricatos de abusar
das aspas. Eles definem-se, para abreviar a descrição, em três
possíveis sentidos: o primeiro define-as como instrumentos destinados a
contornar a pobreza da retórica, o segundo relaciona-as com a
desresponsabilização do discurso, o último associa-as à incapacidade
para afirmar processos de conhecimento próprios e não tutelados. Mas,
nestas coisas de formular «verdades», nada melhor que ser claro para
dissipar a escuridão:
Remendar a retórica. Esta é uma estratégia vulgarizada,
que podemos ouvir em diversas situações. Ora o orador e, faltando-lhe o
exacto termo ou a figura de linguagem adequada, adianta a aproximação
aspada. Proclama assim: «Porque serão justamente os cidadãos menos
favorecidos, senhores deputados, aqueles que têm menos hipóteses de se
eximir ao ónus dos impostos? É caso para dizer, usando a sabedoria
popular, que quem se [faltando-lhe neste preciso momento o termo]
“prejudica” (entre aspas) é o mexilhão!». Também apresentadores
televisivos, professores, conferencistas, advogados e outros
profissionais da fala recorrem com frequência a este expediente, de toda
a vez que lhes escapa a palavra certa ou entendem ornamentar o próprio
verbo sem correr grandes riscos.
Desresponsabilizar o discurso. O sentido aqui é outro,
aparecendo, seja na escrita ou na oralidade, naquele exacto momento em
que se depara algum temor de que à palavra ou à expressão utilizada se
possa atribuir um sentido que não aquele, um pouco menos taxativo, que
se lhe pretende dar, suscitando o descontentamento ou o despeito. Afirma
o eventual «prevaricador» (com aspas): «Considero a atitude
anteriormente tomada como uma “asneira”, podendo vir a afectar
“pesadamente” o futuro desta instituição. Sinto-me, pois, algo
“constrangido” em relação à possibilidade de lhe conceder o meu aval.»
Usa-se frequentemente em reuniões de trabalho ou nas actas públicas das
mesmas.
Recusar a criatividade. Esta é a situação menos vulgar mas de mais pesadas consequências. Traduz
uma incapacidade, demonstrada na produção de discursos de natureza
interpretativa, para contrariar formas de conhecimento dominantes e
produzir novos conceitos ou alargar os existentes. A construção de
formas de saber diferenciadas e o encontro com realidades e lógicas
anteriormente desconhecidas, conduzem a que se criem novas palavras ou
expressões, muitas vezes usadas de maneira necessariamente experimental,
mas que correspondem à afirmação de leituras possíveis e legítimas.
Aqui, sim, é preciso assumir sem receios a queda das aspas. Por exemplo,
a noção de campocriada por Pierre Bourdieu – aquele fragmento
do mundo social que é regido por leis e códigos próprios – não pode ser
confundida com a paisagem do Campo de trigo com corvos, o
último quadro de Vincent Van Gogh. Não sendo preciso acompanhá-la, para
que percebamos a diferença, desses tristes e incómodos sinais da
ortografia.
As aspas são pequenos demónios que tornam mais pobre e mais opaca a
comunicação. Por isso, o melhor que temos a fazer é usá-las com
moderação, evitando que se transformem em grilhões da palavra ou
alavancas da tolice.
A ideologia das aspas
10 de março de 2013 | 2h 09
Roberto Romano* - O Estado de S.Paulo
As expressões verbais enunciam sentimentos, raciocínios, verdades ou mentiras. A dissimulação dos corpos se amplia nos artifícios retóricos e surgem os que ludibriam e os enganados. O realismo político define-se como arte de tratar com má-fé a própria mente para depois iludir os tolos com mágica oracular. Instalados no poder, os truculentos costumam ser francos entre seus pares, camaleões ou raposas diante da massa humana que os aplaude ou apupa. Na praça eles defendem nobres ideais, mas nos palácios empregam a tortuosa razão de Estado.
Nuclear na ética, a consciência nos conduz acima das feras, orienta a razão, que sem ela ignora a diferença entre o bem e o mal (Rousseau). A sua expulsão da ordem política deveria prevenir os que hoje se alimentam do poder concedido pelas urnas. Recordemos: "Às favas, sr. presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência". Assim falou o ministro do Trabalho e da Previdência Social na edição do AI-5, em 1968. Comprovando o itinerário proposto por Faye, parte da esquerda brasileira assume atitude idêntica e joga hoje no lixo a consciência. Ela trairia um falso moralismo. Nos extremos ideológicos a recusa da consciência se arrima na salus populi, outro item da ardilosa razão de Estado.
Como agem os que, no poder, ironizam quem ainda sente o que os gregos chamavam aidós, ou seja, vergonha de praticar coisas erradas? Eles começam desacreditando a consciência ética. Como não sentem rubor, dizem que a política não se faz sem colocar as mãos na torpeza (uso ignaro das teses enunciadas por Sartre, o autor de As Mãos Sujas). Certa feita, em réplica à luta pela moralidade no Brasil, um realista afirmou que apelar para a noção de consciência era algo irrelevante e ridículo. Mengele, escreveu ele, também possuía consciência. A mesma pessoa afirmou rir às escâncaras quando escuta alguém invocando a consciência como critério de ação e juízo. As vítimas de Mengele não riram, com certeza, diante de seus atos e palavras. Nem as vítimas das ditaduras que amestraram o Brasil no século 20.
Com a zombaria os realistas (no poder ou na sarjeta, não raro os dois lugares se confundem) sempre usam aspas para desqualificar quem ainda não se deixou prender pelo cinismo ou pela tibieza. Aspas foram inflacionadas na propaganda fascista, nazista e comunista. É preciso arrancar um indivíduo da vida pública? Aspas no seu nome, em seus títulos, nacionalidade, condição humana!
Victor Klemperer, outro estudioso que observou técnicas fascistas da fala, nota o uso das aspas no extermínio dos que desafiam oficialismos. "A língua do Terceiro Reich tem horror da neutralidade, porque ela sempre precisa de um adversário e sempre precisa derrubar este adversário." Se os revolucionários espanhóis têm uma vitória, se possuem oficiais ou um quartel-general, eles são ditos "vitoriosos" ou "oficiais". A mesma regra foi usada contra os russos que teriam uma "estratégia". A Iugoslávia teria um "marechal", Tito. Chamberlain, Churchill, Roosevelt eram "estadistas"; Einstein, um "pesquisador científico"; Rathenau, "um alemão"; e Heine, escritor "alemão".
O uso das aspas, para expor os inimigos ao ridículo, generalizou-se no fascismo de tal modo, diz Klemperer, "que nenhum artigo de jornal ou discurso impresso deixava de estar delas apinhado (...). As aspas pertencem tanto à língua impressa do Terceiro Reich quanto à entoação de Hitler e Goebbels, elas são intrínsecas às duas" (LTI: Lingua Tertii Imperii). É bom recordar tais frases quando militantes e teóricos do poder usam aspas para desqualificar seus críticos. O mais comum na língua do governismo brasileiro é escrever que a corrupção imaculada não é aceita pelos "ditos intelectuais". Semelhante tática eivada de misologia mostra que de libertário e democrático o discurso e a prática nada têm.
Outro vezo fascista era negar aos intelectuais de certa origem (racial, política, ideológica, religiosa) os títulos acadêmicos. Quando as aspas se mostravam insuficientes, era proibido nomear alguém (professores, médicos, advogados, juízes em desgraça) segundo os seus diplomas universitários. Os judeus foram os mais humilhados. Mas a técnica foi aplicada a outros inimigos do Reich (Bruno Bettelheim, The Informed Heart: the Human Condition in Modern Mass Society). O método não vicejou apenas entre os fascistas de direita. Os da esquerda também usaram aspas para desacreditar inimigos. As formas de governo liberais eram ditas "democráticas", os professores não ortodoxos em termos de stalinismo eram "intelectuais", etc. Comunhão negra dos nada santos militantes, diria Merleau-Ponty. A técnica da desqualificação é a mesma, porque é o mesmo estilo de fazer política: aniquilar quem pensa diferente. Tal é a regra dos que agora ovacionam os palácios brasilienses.
Quando Stalin discursava, era proibido interromper os aplausos. Quem parasse primeiro era julgado inimigo do povo. As mãos dos companheiros ficavam inchadas, quentes e doloridas. O problema resolveu-se com funcionários no fim da sala carregando baldes de água fria. Haja gelo para acalmar a fúria bajulatória dos que seguem os poderosos de plantão! * Filósofo, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é autor, entre outros livros, de 'O caldeirão de Medeia' (Perspectiva)