segunda-feira, 15 de abril de 2013

Marta Bellini, repetindo a repetição, sobre aspas. Primeiro o artigo repetido (felizmente!), depois um meu, mais recente, mais heavy....sempre que leio algo de alguém que insiste em abusar das aspas, fico imaginando : "ele gosta de aspas, não as tira da cabeça". Para bom entendedor, meias aspas valem....

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Aos aspeadores (sem aspas)....

repetindo ...

Deselogio das aspas


Uma crónica publicada em 2002, aqui retomada em 2007 e agora de novo. Porque permanece inteiramente atual.
Nem sempre é fácil sinalizar a escrita. Arrumar as palavras, separando-as com pontos, vírgulas, pontos e vírgulas, hífenes ou travessões, mais dois pontos, parênteses curvos ou retos, colchetes… reticências. Mas também com aspas («_»), esse adorno – análogo às comas duplas ou vírgulas dobradas (“_”), usadas sobretudo para citar ou introduzir uma expressão em língua estranha – que confere um valor significante diverso do habitual à palavra ou à expressão que entre elas se insere. Com «indecorosa» intenção normativa, D’Silvas Filho, autor de um Prontuário editado há uns anos pela Texto, declara que a aposição das aspas constitui uma prática que serve para grafar «termos ou expressões que se devem evitar, termo estrangeiro, reserva no que se escreve (ortográfica, fonética, semântica, eventualmente autoria)». Preceito que a ser seguido com rigor, neste tempo de contínua mudança da fala e da escrita, faria de toda a leitura um labirinto cravado de minas e armadilhas.
De inegável utilidade pública na construção de sentidos esconsos e álibis, as aspas, são sinais de vida fácil e atribulada, inúmeras vezes objecto de abuso. Abre aspas, por dá cá aquela palha, fecha aspas. Solícitas, sem pudor, servem para contornar insultos, podendo afirmar-se na sua companhia que o senhor diretor «é um valente “pulha” (entre aspas)!», assim minimizando a ofensa. Noutros momentos, ouvimos o comentador desportivo afirmar que “o jogador saltou para cima do adversário. «Para cima» entre aspas, naturalmente”. Ou então lemos, nas letras grossas de um daqueles jornais regionais especializados no obtuso desperdício das referidas sinalefas, que «os turistas espanhóis “invadiram” a cidade». Não fossemos nós, tontos leitores, pensar que, por ablação das ditas, o avançado do clube oponente tivesse subvertido em pleno relvado a homofobia dominante no mundo do futebol. Ou que os castelhanos tivessem esquecido a padeira Brites e decidido preencher a mesma urbe com postos militares avançados, disfarçados de simpáticas tendinhas de tapas e bocadillos.
Existem entretanto modos menos caricatos de abusar das aspas. Eles definem-se, para abreviar a descrição, em três possíveis sentidos: o primeiro define-as como instrumentos destinados a contornar a pobreza da retórica, o segundo relaciona-as com a desresponsabilização do discurso, o último associa-as à incapacidade para afirmar processos de conhecimento próprios e não tutelados. Mas, nestas coisas de formular «verdades», nada melhor que ser claro para dissipar a escuridão:
Remendar a retórica. Esta é uma estratégia vulgarizada, que podemos ouvir em diversas situações. Ora o orador e, faltando-lhe o exacto termo ou a figura de linguagem adequada, adianta a aproximação aspada. Proclama assim: «Porque serão justamente os cidadãos menos favorecidos, senhores deputados, aqueles que têm menos hipóteses de se eximir ao ónus dos impostos? É caso para dizer, usando a sabedoria popular, que quem se [faltando-lhe neste preciso momento o termo] “prejudica” (entre aspas) é o mexilhão!». Também apresentadores televisivos, professores, conferencistas, advogados e outros profissionais da fala recorrem com frequência a este expediente, de toda a vez que lhes escapa a palavra certa ou entendem ornamentar o próprio verbo sem correr grandes riscos.
Desresponsabilizar o discurso. O sentido aqui é outro, aparecendo, seja na escrita ou na oralidade, naquele exacto momento em que se depara algum temor de que à palavra ou à expressão utilizada se possa atribuir um sentido que não aquele, um pouco menos taxativo, que se lhe pretende dar, suscitando o descontentamento ou o despeito. Afirma o eventual «prevaricador» (com aspas): «Considero a atitude anteriormente tomada como uma “asneira”, podendo vir a afectar “pesadamente” o futuro desta instituição. Sinto-me, pois, algo “constrangido” em relação à possibilidade de lhe conceder o meu aval.» Usa-se frequentemente em reuniões de trabalho ou nas actas públicas das mesmas.
Recusar a criatividade. Esta é a situação menos vulgar mas de mais pesadas consequências. Traduz uma incapacidade, demonstrada na produção de discursos de natureza interpretativa, para contrariar formas de conhecimento dominantes e produzir novos conceitos ou alargar os existentes. A construção de formas de saber diferenciadas e o encontro com realidades e lógicas anteriormente desconhecidas, conduzem a que se criem novas palavras ou expressões, muitas vezes usadas de maneira necessariamente experimental, mas que correspondem à afirmação de leituras possíveis e legítimas. Aqui, sim, é preciso assumir sem receios a queda das aspas. Por exemplo, a noção de campocriada por Pierre Bourdieu – aquele fragmento do mundo social que é regido por leis e códigos próprios – não pode ser confundida com a paisagem do Campo de trigo com corvos, o último quadro de Vincent Van Gogh. Não sendo preciso acompanhá-la, para que percebamos a diferença, desses tristes e incómodos sinais da ortografia.
As aspas são pequenos demónios que tornam mais pobre e mais opaca a comunicação. Por isso, o melhor que temos a fazer é usá-las com moderação, evitando que se transformem em grilhões da palavra ou alavancas da tolice.
 
 
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A ideologia das aspas

10 de março de 2013 | 2h 09

Roberto Romano* - O Estado de S.Paulo
 
Jean-Pierre Faye, linguista e autor de fina análise do discurso totalitário, mostra a troca e a circulação das palavras nas formas ideológicas. Termos gerados no uso social da direita no espectro político não raro integram falas e textos da esquerda. O contrário também ocorre com frequência. Ao trânsito de vocábulos ou slogans Faye chama "ferradura ideológica", a qual prende as falas no itinerário sinistro cujo fim é a perda de sentido lógico ou ético. A expressão "nacional-bolchevismo", cunhada para acolher um movimento que pretendia unir elementos do fascismo e do comunismo, mostra à saciedade a pertinência da proposta elaborada por Faye (no livro Linguagens Totalitárias).

As expressões verbais enunciam sentimentos, raciocínios, verdades ou mentiras. A dissimulação dos corpos se amplia nos artifícios retóricos e surgem os que ludibriam e os enganados. O realismo político define-se como arte de tratar com má-fé a própria mente para depois iludir os tolos com mágica oracular. Instalados no poder, os truculentos costumam ser francos entre seus pares, camaleões ou raposas diante da massa humana que os aplaude ou apupa. Na praça eles defendem nobres ideais, mas nos palácios empregam a tortuosa razão de Estado.

Nuclear na ética, a consciência nos conduz acima das feras, orienta a razão, que sem ela ignora a diferença entre o bem e o mal (Rousseau). A sua expulsão da ordem política deveria prevenir os que hoje se alimentam do poder concedido pelas urnas. Recordemos: "Às favas, sr. presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência". Assim falou o ministro do Trabalho e da Previdência Social na edição do AI-5, em 1968. Comprovando o itinerário proposto por Faye, parte da esquerda brasileira assume atitude idêntica e joga hoje no lixo a consciência. Ela trairia um falso moralismo. Nos extremos ideológicos a recusa da consciência se arrima na salus populi, outro item da ardilosa razão de Estado.

Como agem os que, no poder, ironizam quem ainda sente o que os gregos chamavam aidós, ou seja, vergonha de praticar coisas erradas? Eles começam desacreditando a consciência ética. Como não sentem rubor, dizem que a política não se faz sem colocar as mãos na torpeza (uso ignaro das teses enunciadas por Sartre, o autor de As Mãos Sujas). Certa feita, em réplica à luta pela moralidade no Brasil, um realista afirmou que apelar para a noção de consciência era algo irrelevante e ridículo. Mengele, escreveu ele, também possuía consciência. A mesma pessoa afirmou rir às escâncaras quando escuta alguém invocando a consciência como critério de ação e juízo. As vítimas de Mengele não riram, com certeza, diante de seus atos e palavras. Nem as vítimas das ditaduras que amestraram o Brasil no século 20.

Com a zombaria os realistas (no poder ou na sarjeta, não raro os dois lugares se confundem) sempre usam aspas para desqualificar quem ainda não se deixou prender pelo cinismo ou pela tibieza. Aspas foram inflacionadas na propaganda fascista, nazista e comunista. É preciso arrancar um indivíduo da vida pública? Aspas no seu nome, em seus títulos, nacionalidade, condição humana!

Victor Klemperer, outro estudioso que observou técnicas fascistas da fala, nota o uso das aspas no extermínio dos que desafiam oficialismos. "A língua do Terceiro Reich tem horror da neutralidade, porque ela sempre precisa de um adversário e sempre precisa derrubar este adversário." Se os revolucionários espanhóis têm uma vitória, se possuem oficiais ou um quartel-general, eles são ditos "vitoriosos" ou "oficiais". A mesma regra foi usada contra os russos que teriam uma "estratégia". A Iugoslávia teria um "marechal", Tito. Chamberlain, Churchill, Roosevelt eram "estadistas"; Einstein, um "pesquisador científico"; Rathenau, "um alemão"; e Heine, escritor "alemão".

O uso das aspas, para expor os inimigos ao ridículo, generalizou-se no fascismo de tal modo, diz Klemperer, "que nenhum artigo de jornal ou discurso impresso deixava de estar delas apinhado (...). As aspas pertencem tanto à língua impressa do Terceiro Reich quanto à entoação de Hitler e Goebbels, elas são intrínsecas às duas" (LTI: Lingua Tertii Imperii). É bom recordar tais frases quando militantes e teóricos do poder usam aspas para desqualificar seus críticos. O mais comum na língua do governismo brasileiro é escrever que a corrupção imaculada não é aceita pelos "ditos intelectuais". Semelhante tática eivada de misologia mostra que de libertário e democrático o discurso e a prática nada têm.

Outro vezo fascista era negar aos intelectuais de certa origem (racial, política, ideológica, religiosa) os títulos acadêmicos. Quando as aspas se mostravam insuficientes, era proibido nomear alguém (professores, médicos, advogados, juízes em desgraça) segundo os seus diplomas universitários. Os judeus foram os mais humilhados. Mas a técnica foi aplicada a outros inimigos do Reich (Bruno Bettelheim, The Informed Heart: the Human Condition in Modern Mass Society). O método não vicejou apenas entre os fascistas de direita. Os da esquerda também usaram aspas para desacreditar inimigos. As formas de governo liberais eram ditas "democráticas", os professores não ortodoxos em termos de stalinismo eram "intelectuais", etc. Comunhão negra dos nada santos militantes, diria Merleau-Ponty. A técnica da desqualificação é a mesma, porque é o mesmo estilo de fazer política: aniquilar quem pensa diferente. Tal é a regra dos que agora ovacionam os palácios brasilienses.

Quando Stalin discursava, era proibido interromper os aplausos. Quem parasse primeiro era julgado inimigo do povo. As mãos dos companheiros ficavam inchadas, quentes e doloridas. O problema resolveu-se com funcionários no fim da sala carregando baldes de água fria. Haja gelo para acalmar a fúria bajulatória dos que seguem os poderosos de plantão!   * Filósofo, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é autor, entre outros livros, de 'O caldeirão de Medeia' (Perspectiva)