sexta-feira, 26 de abril de 2013
FAPESP
Mudança polêmica
Lei que altera carreira de docentes das universidades federais preocupa comunidade científica
BRUNO DE PIERRO | Edição 205 - Março de 2013
Um conjunto de mudanças na carreira dos professores das universidades
federais, que passam a valer no início deste mês, provocou reações
ásperas na comunidade científica e em parte das entidades
representativas dos docentes. O alvo das críticas é a lei nº
12.772/2012, sancionada pela presidente Dilma Rousseff no dia 28 de
dezembro, resultado de um acordo entre o governo federal e a Federação
de Sindicatos de Professores de Instituições Federais de Ensino Superior
(Proifes-Federação) celebrado após a greve que paralisou as
universidades federais no ano passado. Embora tenha motivações ligadas
aos salários dos docentes – que terão reajuste médio de 16% em 2013 –, a
nova lei modifica pontos estruturais da carreira que vigoravam desde
abril de 1987. “A lei deveria ser rasgada, pois o conceito de
universidade foi ferido”, afirma Helena Nader, professora da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que em fevereiro alertou a
presidente Dilma da insatisfação da comunidade científica durante uma
reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.
Os críticos argumentam que a lei pode desestimular a pesquisa
universitária nas federais e inviabilizar a atração de grandes talentos
para a carreira acadêmica. Isso porque o ingresso na universidade
federal só poderá ocorrer no primeiro nível da classe de professor
auxiliar, independentemente da titulação do docente, e a progressão
entre um nível e outro da carreira passa a exigir o intervalo de 24
meses. Segundo a nova lei, a universidade federal passa a ter dois tipos
de professor titular. Um é o titular de carreira, que, além de ter
doutorado, precisa galgar os degraus da vida acadêmica. Outro é o
titular-livre, talhado para quem já tem pelo menos 20 anos de doutorado e
quer ingressar numa federal.
Para ilustrar o problema, a pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Debora Foguel, conta um
caso emblemático, que, segundo ela teme, pode se tornar recorrente.
Recentemente, a UFRJ recebeu a visita de Cedric Villani, um jovem
matemático francês que conquistou em 2010 a cobiçada Medalha Fields,
concedida pela União Internacional de Matemática. Villani obteve o
título de doutor em 1998. Se fosse convidado a ingressar na UFRJ, teria
de entrar como auxiliar 1. Como não tem 20 anos de doutorado, também
estaria desabilitado para ser professor titular-livre. “Isso será um
problema, já que estamos trazendo vários pesquisadores brilhantes dentro
do programa Ciência sem Fronteiras. A esses, teremos que oferecer vagas
de professor auxiliar. Na hipótese de querer trazer o Cedric Villani,
eu não teria coragem sequer de fazer tal convite”, declara Debora. Para
Helena Nader, o tempo de doutorado não tem vínculo direto com a
competência. “Você pode ter alguém com cinco anos de doutorado, mas que
já tem condições de ser professor titular”, explica.
A lei também veta a abertura de concursos específicos para as classes de
auxiliar, assistente e adjunto. Mesmo que o aprovado tenha título de
doutor, o ingresso será na categoria de auxiliar e, passados três anos
do período probatório, ele segue para o nível de adjunto. A promoção,
contudo, pode ser acelerada de acordo com a titulação do professor –
mestrado ou doutorado. O presidente da Proifes-Federação, Eduardo Rolim,
explica que a razão disso se baseia em acórdãos do Tribunal de Contas
da União, que impedem o ingresso de servidores no meio da carreira.
“Isso aconteceu até agora porque nossa carreira é de 1987, anterior à
Constituição de 1988”, acrescenta.
A insatisfação das sociedades científicas cresceu em agosto, quando o
Palácio do Planalto apresentou o projeto que deu origem à lei. O texto
causou polêmica também entre as entidades sindicais. Na ocasião, após
reunião entre representantes dos ministérios do Planejamento e da
Educação e de três entidades ligadas aos professores, duas delas – o
Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
(Andes-SN) e o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação
Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe) – não assinaram o acordo,
entre outros motivos por considerarem que o projeto desestruturava a
carreira de docente. Em novembro, enquanto o projeto tramitava na
Câmara, a SBPC e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) divulgaram um
manifesto no qual afirmavam que alguns aspectos da proposta poderiam
trazer “graves dificuldades, problemas e, por que não dizer, retrocesso
para as universidades federais brasileiras, principalmente no que tange à
qualidade da pesquisa”.
O novo texto estabelece que os concursos devem exigir pelo menos diploma
de graduação, mas não deixa claro se as instituições poderão continuar a
restringir o edital apenas para candidatos que possuam o título de
doutor, como a maioria faz hoje. “Os professores que ingressam nas
universidades federais sem título de doutor muito dificilmente
conquistam tal título ao longo da carreira”, afirma Debora Foguel. As
universidades pretendem seguir exigindo em seus concursos que os
candidatos tenham título de doutor. “Mas confesso que estou temerosa que
essa estratégia seja objeto de contestação na Justiça por parte de
candidatos”, avalia a professora da UFRJ, instituição na qual apenas 20%
dos docentes não são doutores.
As alterações na legislação forçaram algumas universidades a cancelar,
às pressas, concursos que estavam em andamento. De acordo com Helena
Nader, um desses concursos teria como candidato um experiente professor
que concorreria ao cargo de titular na Unifesp. Ao saber do cancelamento
do edital e das novas condições para ingressar na universidade, ele
preferiu desistir da vaga. “A universidade deve gerar conhecimento novo,
não apenas transmitir conceitos”, avalia a presidente da SBPC. Para a
professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Elizabeth Balbachevsky, as
universidades federais podem perder a oportunidade de trazer de volta
brasileiros que realizam pesquisa em países que no momento sofrem com a
crise econômica. “Você acha que um professor que esteja na Universidade
Stanford, na Califórnia, voltará para cá para ser professor auxiliar?”,
indaga Balbachevsky.
A ex-secretária Nacional de Educação Superior e professora do curso de
direito da Universidade de São Paulo (USP) Maria Paula Dallari Bucci
acompanhou o início das discussões sobre alguns conceitos presentes na
lei, quando, ainda no MEC, conduziu um esforço conjunto com a Associação
Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior
(Andifes) para a implementação da autonomia das universidades federais. A
lei nº 12.772, segundo ela, deve ser lida com atenção, levando em conta
artigos inovadores que estão sendo negligenciados nas discussões. No
artigo 21º, por exemplo, que especifica o que é permitido durante o
regime de dedicação exclusiva, há uma passagem que, segundo Maria Paula,
beneficia diretamente a pesquisa nas universidades federais: a
retribuição, em caráter eventual, por trabalho prestado no âmbito de
projetos institucionais de pesquisa e extensão. Outro ponto lembrado
pela professora é a regulamentação do estágio probatório. “O professor
que fez o concurso não tem a permanência garantida. Ele passa por uma
avaliação de desempenho e isso evita a acomodação de professores. É uma
das poucas leis no Brasil que tratam disso”, afirma. O artigo 26º também
é considerado importante por ela — junto com o mecanismo de reposição
automática de docentes aposentados, falecidos ou desligados, criado em
2007 —, pois institui uma comissão para formulação e acompanhamento da
execução da política de pessoal docente. “A lei permite a gestão do
quadro de professores pela universidade, de acordo com o projeto dela.
Cada universidade tem seu projeto, seus desafios e dificuldades”,
conclui Maria Paula.
O vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Luiz Henrique Schuch, contesta a afirmação da ex-secretária do MEC de que a lei amplia a autonomia universitária. “A nova lei delega ao ministério o estabelecimento de diretrizes que ainda não foram definidas.” Isto configura, na visão de Schuch, uma afronta à autonomia, uma vez que o desenvolvimento na carreira deveria ser definido no âmbito institucional.
Outra novidade é que acaba a limitação de 10% de professores titulares
nos quadros das universidades. Qualquer docente, na categoria professor
associado 4, com título de doutor, poderá pleitear a promoção para
titular, independentemente da existência da vaga. “Sem essa limitação,
será mais fácil atrair professores qualificados que vêm de fora e
desenvolver a pós-graduação em universidades mais jovens”, diz Rolim.
Elizabeth Balbachevsky, contudo, observa no caso brasileiro um movimento
contrário à tendência mundial de permitir que a universidade desenvolva
seu próprio plano de carreira. A professora participou de um estudo
internacional que avaliou, entre 2005 e 2007, o impacto da globalização
na profissão acadêmica em 19 países de todos os continentes. O estudo
mostra que, tradicionalmente, a organização da profissão nas
universidades oscila entre dois grandes tipos ideais: o mercado
acadêmico, da experiência norte-americana, e o modelo estatal. O
primeiro se caracteriza por uma alta mobilidade, em que a instituição
negocia condições específicas de contratos, quando está interessada em
atrair um determinado profissional. Essa situação tende a criar uma
intensa mobilidade de profissionais em todos os níveis de carreira,
pois, conforme o professor amadurece, ele tem maior capacidade para
negociar condições específicas com as instituições que se interessam por
ele.
Esse é o segredo do dinamismo do sistema universitário dos Estados
Unidos, diz a professora, pois é relativamente fácil para uma
instituição criar competência em áreas emergentes de pesquisa,
contratando alguns pesquisadores com nome e experiência na área e que
lideram a formação de novos laboratórios e grupos de pesquisa. “Um
professor recém-formado não terá condições para atrair recursos para
projetos mais ambiciosos e liderança para propor uma agenda de pesquisa
relevante”, pontua.
No segundo modelo, o acadêmico é contratado como servidor público, e daí
decorre sua estabilidade, o que tende a contribuir para a fixação do
pesquisador numa instituição muito cedo. Esse modelo era muito comum em
países europeus. Ainda assim, em diferentes países a estrutura de acesso
a diferentes pontos da carreira, especialmente na posição de professor
titular, tendia a promover a mobilidade dos professores, especialmente
os mais ambiciosos, interessados em subir na carreira. Nas últimas
décadas, essa concepção de plano de carreira perdeu força na Europa,
onde, desde o final dos anos 1980, já se identificava uma capacidade de
resposta limitada ante as crescentes demandas da sociedade, onde a
competitividade da economia depende da capacidade de se manter na
liderança da inovação (ver mapa). Dentre os países emergentes, a
China também introduziu reformas importantes na carreira acadêmica,
deixando-a mais flexível, explica Elizabeth. “Para a China, a reforma do
ensino superior é central para a estratégia do país de sair de um
modelo de inserção no mercado internacional baseado no baixo custo de
mão de obra para outro baseado em vantagens competitivas criadas pela
capacidade de inovação das indústrias chinesas”, diz.
O MEC defende a nova lei, mas admite que poderá rediscutir alguns
pontos. Em nota, a Secretaria de Educação Superior do MEC afirmou que
“algumas das questões sobre a estruturação do Plano de Carreiras e
Cargos de Magistério Federal estão sendo tratadas pelo MEC diretamente
com as universidades”. Ainda segundo o ministério, o objetivo da lei é
buscar a valorização da dedicação exclusiva e a titulação dos docentes.
Em janeiro, uma nota técnica divulgada pelo MEC tenta esclarecer pelo
menos um tópico da lei. De acordo com o documento, além da exigência de
diploma de graduação, as instituições poderão solicitar nos editais
outros requisitos, como a apresentação de títulos de pós-graduação, de
acordo com o interesse da universidade.