Francisco e a razão de Estado
O Estado de São Paulo.
13 de abril de 2013 | 2h 03
Roberto Romano*
A passagem de Bento XVI para Francisco na Sé romana faz
recordar a diatribe de Dupanloup sobre os liberais do século 19. "Vocês
nos falam", diz ele, "de progresso, liberalismo e civilização como se
fôssemos bárbaros (...), mas estas palavras sublimes que vocês
desnaturam fomos nós que lhes ensinamos, que lhes demos o verdadeiro
sentido e, melhor ainda, a realidade sincera. (...) O dia em que este
sentido perecer, perecerá todo progresso real, todo liberalismo sincero,
toda civilização verdadeira". As palavras do bispo são claras para quem
estuda a hierarquia eclesiástica. Elas defendem dois textos pontifícios
contra a modernidade: o Syllabus (coleção de erros modernos condenados
pela doutrina católica), adendo à encíclica Quanta Cura. Estranho notar
que Dupanloup integra as hostes modernistas. Na França e na Alemanha os
liberais católicos formaram minorias combativas que resistem ao controle
pontifício. Tivemos repercussões de sua militância no Brasil. Rui
Barbosa traduz o livro O Papa e o Concílio (Rio de Janeiro, 1877). O
autor original é Döllinger, líder dos católicos liberais alemães.
Analistas até hoje se espantam com a defesa feita por Dupanloup de
escritos pontificais que proíbem o liberalismo católico. É preciso ver o
contexto da brochura: ela une dois eventos diversos, mas presos à razão
de Estado e à razão da Igreja. Vejamos o título: A convenção de 15 de
setembro e a Encíclica de 8 de dezembro. Em 15 de setembro (1864) Victor
Emmanuel assina um tratado com o imperador Napoleão III em prejuízo do
Vaticano. Em 8 de dezembro o papa lança a Quanta Cura, na qual o
secularismo político é condenado. Impossível ignorar o elo entre os
eventos. Contra a Realpolitik o pontífice endurece princípios.
Dupanloup, embora favorável a mudanças na ordem eclesiástica, não pode
abandonar normas que permitem à Igreja resistir ao secularismo político,
pois elas convocam as massas católicas na Europa e no mundo contra o
Estado agnóstico ou ateu. O "verdadeiro" liberalismo, segundo Dupanloup,
encontra-se na Igreja, mesmo que ela siga uma rota que leva a sendas
espinhosas. Após a Quanta Cura a política disciplinar vaticana doma os
liberais católicos na Alemanha, na França e... no Brasil. Depois da
Questão Religiosa é impossível achar pessoas como o liberal Diogo Feijó:
estadista, leitor do kantismo e padre. No primeiro momento do século 20
a Igreja brasileira exorciza o liberalismo com a força de imensas
multidões. (cf. Romualdo Dias, Imagens de Ordem, a Doutrina Católica
sobre Autoridade no Brasil, 1922-1933).
Volto à História atual. Quem segue a CNN e similares só tem notícias
dos escândalos eclesiásticos (pedofilia, finanças, Vatileaks, etc.). A
instituição que recolhe milênios de culturas, políticas, filosofias,
estéticas é vista em prisma anamorfótico que tudo deforma. Analistas
falam em "modernidade", "adaptação da Igreja ao mundo moderno", como se
atrás de tais frases se escondesse o paraíso. Num mundo imerso em
guerras genocidas, crises econômicas que jogam milhões na fome e no
desemprego, no qual o Estado não exerce plenamente a soberania interna
ou externa e a propaganda esmigalha a política, é quase delírio dizer
que a Igreja deve adaptar-se ao padrão cultural vigente. A modernidade e
a pós-modernidade exibem chagas mais purulentas do que as mostradas no
corpo eclesiástico.
Quando Bento XVI abdicou, fui ao prestigioso Globo News Painel,
coordenado pelo competente William Waack. Após ouvir a tese de que Bento
não se abriu para a cultura atual, repliquei que o problema não é do
pontífice, mas da Igreja desde o século 16. Recordei o filósofo Leibniz,
que elogia os jesuítas na China e o convívio entre catolicismo e
cultura oriental. Na América, as reduções guaranis seguem rumo similar
(Lugon, Clovis: A República Comunista Cristã dos Guaranis, Paz e Terra,
1968, e, contra Lugon, Sylvio Back, no filme A República dos Guaranis). O
etnocentrismo sob a batuta dos padres dominicanos proibiu as
experiências jesuítas: tudo na China e no Japão devia ser feito segundo o
padrão latino, das vestes litúrgicas às doutrinas morais. No momento do
debate na Globo News ninguém sabia que um papa jesuíta seria escolhido.
Recebi mensagens de colegas estranhando minha intervenção.
Explico o ponto resumindo os enunciados deste artigo. Trabalho desde
longa data com a razão de Estado como fruto de doutoramento sobre Igreja
e poder estatal (Brasil: Igreja contra Estado, 1979). Os textos de
Leibniz sobre os Estados, o Direito e a religião entram na pesquisa(cf.,
entre muitos, Lach, D. F.: Leibniz and China, no Journal of the History
of Ideas, 1945). Dupanloup, embora liberal, discursa num instante em
que dois Estados (Itália e França) prejudicam a Igreja. Para salvar sua
instituição ele segue o "sacrificio dell'intelletto", pedra de toque da
obediência na fé.
Existem muitos hierarcas, padres e leigos como Dupanloup. Eles
sacrificam teses em proveito do todo eclesiástico. Assim militam os
jesuítas. Donos de refinada técnica missionária, eles compreendem a
razão de Estado e a razão da Igreja. O santo que mais serviu ao poder
papal é jesuíta, Roberto Bellarmino, alvo de ataques no Leviatã
hobbesiano. Seu colega de colégio jesuíta foi Giovanni Botero, que
escreveu o primeiro livro explícito sobre a razão de Estado (cf. Della
Ragione di Stato, 1588). Para quem estuda a Igreja e o Estado, portanto,
era clara a via a ser trilhada pelo Colégio Cardinalício após Bento
XVI: eleger um jesuíta com domínio da política e da religião, afeito às
culturas do mundo, mas defensor da Igreja. Trata-se de corrigir a rota
após a desastrosa decisão de impor formas europeias à fé católica, ou
seja, universal. Francisco buscará a mudança em relação à política
pontifical do século 17. Nela venceram os dominicanos, mas a Santa Sé
perdeu a China e, talvez, o mundo.
* Filósofo, professor de Ética e Filosofia na Unicamp, é autor, entre outros livros, de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva)