domingo, 21 de abril de 2013

Uma análise do Carandiru. Não significa que a considero absolutamente correta. Mas traz elementos para o pensar.

 
SEQüESTROS-RELÂMPAGO E CIDADANIA EM UMA TRISTE SÃO PAULO
João Alexandre Peschanski e Augusto Stiel
 
 
 
 
 
continuação
O fenômeno da violência crescente, no entanto, tem diversos fatores que contribuem para sua disseminação, e a disposição espacial da cidade apenas sinaliza para determinados setores da população mais vulneráveis ao ataque simbólico, que desvia o problema de suas causas: “A pobreza é o determinante, ora da vitimização, ora da ação violenta”Idem. Pg. 252..  Para Alba Zaluar, o estudo da violência passa pela percepção do estágio em que se encontra a sociedade. A mundialização de processos como a fragmentação e atomização sociais e a crescente importância do consumo como fator determinante da formação das identidades indicaria uma crise abrangente das censuras e adaptações impostas pelo “processo civilizador” ao comportamento individual. As constantes crises de modelos econômicos e a geração de vínculos trabalhistas mais tênues e indefinidos acabam por influir diretamente nos projetos de futuro do indivíduo, que se vê impotente frente à insegurança cotidiana para poder construir um projeto de vida que lhe obrigue a seguir uma trilha coerente dentro das regras sociais estabelecidas. A busca imediata de gratificação na juventude cada vez mais valorizada, o desprezo pelas gerações mais velhas e seus saberes e a incerteza quanto ao futuro inibiriam a construção da identidade individual colaborando, portanto, para a disseminação do narcisismo em uma sociedade ocupada apenas com o tempo presente, quando o indivíduo não enxerga outros além de projeções de si mesmo e busca no imediato do prazer, do jogo, da diversão e das drogas a satisfação possível.  A popularização do uso de drogas como a cocaína deu-se a partir dos anos 80, quando seu preço baixou aproximadamente cinco vezes em 15 anosIdem. Pg. 258 , fruto de novas tecnologias e formas mais eficientes de transporte e produção nas teias do “crime-negócio” organizado que floresceu no fim do milênio. As drogas em si promovem uma rede de ilegalidades que abastecem o mercado, alimentando os índices de violência na sociedade, além de originar enormes quantidades de dinheiro que corrompem todos os envolvidos ao desestabilizar as possibilidades de ganho e ascensão socialmente acordadas. Neste caso, as instituições estatais responsáveis pelo controle da violência acabam por imiscuírem-se no mundo do crime perdendo, portanto, a distância necessária e colaborando para o declínio de seu monopólio legítimo. A perda do monopólio estatal da violência – no caso brasileiro a questão que fica é se alguma vez isso efetivamente aconteceu como fato legítimo – favorece a penetração da violência nas subjetividades. 
 
A questão histórica brasileira do Estado como representante de apenas parte da população dá margem a se pensar tal ausência como um vácuo institucional que limita e questiona a efetividade do “processo civilizador” em nossa sociedade, nos termos postos por Norbert Elias, quando “na sociedade assim pacificada, o monopólio estatal da violência legítima foi consolidado por mudanças nas características pessoais de cada cidadão: o autocontrole das emoções e da violência física, a diminuição do prazer de infligir dor ao adversário e destruí-lo na liberdade irrestrita da luta privadaIdem. Pg. 266

 
Desde a colônia, a violência é comum ao cotidiano brasileiro. Gilberto Freyre pensa a sociedade brasileira como tendo sua formação realizada no privado, na casa-grande – patriarcal, familiar – encerrando dentro de seu mundo um sistema de violência favorecido pela escravatura – e a monocultura – e as relações pessoais que dela emanavam. A noção de autoridade permeia o universo familiar que está muito longe de qualquer crivo ou controle por parte do Estado português, que mal se faz presente. É um perfil formador que não encontra parentesco, então, na democracia liberal ou no republicanismo onde as relações de mercado forçam as pessoas a encararem-se como iguais, enquanto indivíduos, na esfera pública. Sérgio Buarque de Holanda também pensa a formação do Brasil como um processo que se dá na esfera privada. É na “ética privada do mando” que a organização familiar brasileira colonial vai se articular. Ambos os autores pensam o espaço público, quando da formação do Brasil, como gerido por critérios privados. A ausência de um “processo civilizador” – motivado pela distância de um Estado não moderno e uma relação econômica completamente avessa às noções modernas liberais de individualidade, igualdade e liberdade – acarretou uma falta completa de racionalidade, com o privado criando uma “hierarquia de cidadanias” onde uma elite se apropria do Estado para realizar seus fins privados em detrimento do restante de população mantido à margem. Para Alba Zaluar, 
 
 
 
“Onde os laços segmentais (familiares, étnicos ou locais) são mais fortes [...] o orgulho e o sentimento de adesão ao grupo diminuem a pressão social para o controle das emoções e da violência física, resultando em baixos sentimentos de culpa no uso aberto da violência nos conflitos”Idem. Pg. 267

  Ela identifica tais características nos “bairros populares e vizinhanças pobres” , mas também nas “cidades”, cuja espacialidade favorece a confusão entre etnia e bairro. Junta-se a isso, segundo Zaluar, o caráter familiar segregado com o “pai distante” e a mãe como figura central cada vez mais característico dos bairros populares, o que geraria um controle mais violento e permanente das crianças. A cidade aparece então como o “locus” social privilegiado da violência impessoal, distante e indiferente que hoje tanto espanta parte da população. 
 
 
  Na ausência de um Estado forte e legítimo para parte da população, as quadrilhas competem com o Estado nas funções básicas assistencialistas, ao mesmo tempo em que cobram pesado preço principalmente entre a população mais jovem que vê no tráfico a oportunidade de ganhos imediatos em uma sociedade que lhes dá exemplos diários de desesperança no futuro e descrença nas instituições. Na constituição de um ethos guerreiro dentro de um vácuo estatal que em teoria também seria responsável pela inibição de tal atitude através de um processo “civilizatório”, a banalidade da violência encontra os meios tecnológicos e estruturais disponíveis na produção e no tráfico de armas, e na corrupção estatal. A cidade é seu campo fértil, que lhe oferece oportunidades de desenvolvimento e floração no adubo da fala do crime, que ignora causas, atendo-se a sintomas e justificando atitudes através da elaboração de uma espacialidade segregada, que separa os efeitos de uma sociedade violenta e circunscreve seus agentes em mundos a serem evitados. Tanto o policial quanto o marginal vivem mundos à parte, que não interessam ao restante da população que observa pela televisão um filme de bandidos e mocinhos fechada atrás de mil aparatos de segurança, apartada de si mesma e desconfiada de todos os que não conhece. A fala do crime legitima tal atitude na medida em que realiza, concretiza o medo existente e difuso, dando-lhe uma história, uma cara, um jeito e um discurso que orienta posturas e pensamentos. Os casos de crime e violência que povoam a mídia são os sonhos de xamã de que fala Michael TaussigTAUSSIG, MICHAEL. Xamanismo, colonialismo e homem selvagem. São Paulo: Paz e Terra, 2000. , organizando um imaginário e dando-lhe credibilidade, um respaldo na realidade. Na Colômbia, os xamãs sonham através do uso de substâncias alucinógenas, mas seus sonhos são povoados por figuras e elementos de um imaginário tipicamente colonial, das imagens do homem selvagem, do conquistador e da violência como legitimadora de tais dicotomias simbólicas. A violência assim experienciada torna-se uma forma de diálogo e afirmação de um modo de estruturar a realidade, tornando-a legítima. O horror passa a ser então um modo de se lidar com o local, seus habitantes e suas histórias. 

 
 
No Brasil da desigualdade, da escravidão permanente como característica nacional, o imaginário pode atuar na dicotomia entre o humano e o menos humano, o “untermensch” nazista. Nas margens do processo social estariam, então, os “desnecessários” sobre quem, segundo Luciano Oliveira, 
 
 
 
“se abate um estigma, cuja conseqüência mais dramática seria sua expulsão da própria órbita da humanidade, isso na medida em que os excluídos, levando muitas vezes uma vida considerada subumana em relação aos padrões normais de sociabilidade, ‘passam a ser percebidos como indivíduos socialmente ameaçantes e, por isso, passíveis de serem eliminados”OLIVEIRA, LUCIANO. Os Excluídos Existem? In Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 33, ano 12. pgs. 51-52.
  O massacre do Carandiru pode ser encarado como um ápice na tensão de um país democrático sentindo-se ameaçado nas suas relações sociais tradicionais. O processo democrático “particularmente intenso” de que fala Caldeira pode ter acertado as contas com seus fantasmas numa catarse de violência exterminadora que chocou apenas parte da sociedade. Ainda é comum de certos segmentos da sociedade a expressão “só mataram 111”, revelando a noção embutida na expressão “vagabundo” usada pela polícia para designar o marginal como um “apátrida” social cuja utilidade é medida na sua dispensabilidade enquanto ser humano. A lógica opera também “por conta dos espantosos e contínuos avanços tecnológicos dos últimos tempos; parece consistente a hipótese de que a massa de trabalhadores miseráveis já não possui as qualificações necessárias para funcionar como massa de ‘reserva’, da qual o setor dinâmico do capitalismo poderia lançar mão para comprimir salários, como quer a análise clássica de Marx. Nesse caso, que parece ocorrer no Brasil atualmente, o setor dinâmico da economia poderia operar sem se preocupar com os miseráveis que, de tão numerosos, deixariam de ser funcionais e passariam a constituir um estorvo”OLIVEIRA, LUCIANO. Os Excluídos Existem? In Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 33, ano 12. Pg. 54..  Que o processo econômico como um todo integre ou não o indivíduo, mesmo que em caráter absolutamente marginal, que as discussões e polêmicas geradas possua m partidários de ambos os lados, bem exemplifica o texto de Oliveira, mas o direito a uma imagem de cidadão digno de respeito e de igualdade por parte da é facilmente posta à prova dentro do típico e banal edifício de apartamentos que pontua bairros inteiros da cidade de São Paulo pela existência de dois elevadores separados por funções, mas de nítida intenção segregacionista, na própria constituição arquitetônica do espaço, onde os personagens de diferentes histórias da cidade mantêm-se à parte. Que se precise de uma lei para coibir tal procedimento e que ela não seja observada devido ao costume de vida arraigado em ambos os atores sociais diz muito da sociedade brasileira e seu modo de encarar a cidadania. 

 
 
 
 
 
 
Quarta estrofe
 
A destruição das mediações sociais deixa frente a frente 
a globalização do campo cultural e a multiplicidade
inexcedível dos atores sociais. O lado escuro desse culturalismo
é o risco de encerramento de cada cultura numa experiência
particular incomunicável. Uma tal fragmentação no
conduziria a um mundo de seitas e à rejeição de toda normal social.
Alain Touraine TOURAINE, ALAIN. Poderemos viver juntos? - iguais e diferentes. Petrópolis: Vozes, 1999. Pgs. 45-46.

 
 
Diferentemente do período militar, em que seqüestros eram realizados para reivindicar a redefinição das relações entre Estado e sociedade civil, isto é, eram meios de luta pela cidadania, e pelo direito ao poder, no caso contemporâneo brasileiro, pelo contrário, a criminalidade – e em especial esse tipo de crime – está quase integralmente desvinculado de tal preocupação. Não é uma manifestação de luta pela cidadania, pois os significados sociais e as decorrentes manifestações dos criminosos não se dão no plano público, mas no campo do dia-a-dia, do privado, do pequeno. 
 
 
 
“Nas pequenas mazelas do cotidiano, organizadas por regras culturais que compõem o ‘popular’, não há cidadãos, mas pessoas. Pessoas que vivem o seu desconhecimento da cidadania pelo reconhecimento de outras instâncias coletivas, universais, como uma ordem natural, uma ordem divina, uma garantia ética”PAOLI, MARIA CÉLIA. Violência e espaço civil in: PINHEIRO, PAULO SÉRGIO. A violência brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. Pg. 50.

  O criminoso, como Denílson, reconhece a existência de uma lei universal, só que “essa não dá para aceitar”; está muito longe de seu mundo, de sua realidade. A norma que ele segue é a da comunidade em que ele se insere, a ordem do microcosmo: “Aqui tem aquela coisa da gente ser unida, aquela coisa de grupo né, como na igreja”. O distanciamento da ordem legal (ou constitucional) cria um outro tipo de estrutura social, onde não valem as mesmas regras: na favela da Ermelino Matarazzo, todos se conhecem. Rompe-se a forçosa impessoalidade da sociedade “do lado de fora”. Ao mesmo tempo, vive-se com certo grau de união, com mais solidariedade, diferentemente da lógica do eu contra todos que domina “nos bairros dos que têm”. Não se trata de mostrar o que é melhor, apenas que há uma distinção, algo que impede a plena junção dos dois mundos: nesta favela, os valores e os costumes são outros que os do resto da cidade, parece nos dizer Denílson. Diz-se muitas vezes que a favela – e a violência do cotidiano – são a desordem: isto está diariamente estampado em todos os jornais. Aqui, o entrevistado quer nos mostrar o contrário: ele salienta que, como vê, a lei  existe como proteção dos que têm “carrão do ano, relógio de ouro”. Ele vê nestas regras uma ordem que, também no cotidiano, demonstra a arrogância de alguns, sua extrema pobreza, e ainda se dá por legítima. Para ele, como para Paoli, “a experiência da ordem legal é uma desordem imposta, porque não supõe barganha a não ser o reconhecimento de seu próprio poder” . A lei exterior, a lei extracomunidade, é uma imposição, é uma estrutura indiscutível, e, na perspectiva de Denílson, por isso mesmo, inaceitável. 
 
 
 
  A falta de legitimidade da legalidade instituída gera uma situação em que somem os limites sociais, principalmente nos espaços civis, como a rua. Anderson traduz a vida fora de sua casa, o locus que controla, como medo: depois dos seqüestros que sofreu, admite sentir medo na rua, medo de falar com pessoas desconhecidas. Como acontece com Denílson, é no microcosmo que encontra a ordem e a tranqüilidade. Além da contratação de uma viatura privada para sua rua, elevar os muros de sua casa, evita ir a lugares que não conhece tanto assim: molda sua vida em relação ao medo de ser mais uma vez vítima de um crime. Aos poucos, Anderson abandona o espaço público da convivência para se fechar, murar–se, evitar ir a certos locais: “A Paulista é agradável, mas eu tenho medo de ir para lá.” Estrutura sua passagem por esta terra com base nos pontos da cidade onde se pode ir – e nos outros onde há criminalidade e, por isso mesmo, não se pode ir. Advogado, ele admite desrespeitar as leis por causa do medo: cruza o semáforo vermelho. Não parar no fechamento do semáforo tornou–se uma atitude tão comum que nem mais é questionada. A ordem da rua é burlada conscientemente, pois ela não serve para proteger e racionalizar, mas para gerar medo e violência. A mesma função, aliás, destinada aos policiais: segundo Anderson, “o que eu menos quero é que eles me vejam sendo seqüestrado, não quero que tiro sobre para mim”. Os homens da lei e da ordem são ineficazes e insuficientes para a configuração social contemporânea: não têm como dar conta e, por isso mesmo, são desprestigiados. 

 
 
Leandro também sinaliza para a perda do temor e do respeito que antes existia para com o policial. Para ele, isto ocorre porque governos obrigaram a corporação a adequar-se ao trato democrático, tirando a aura autoritária que sempre a caracterizou. Ele salienta que “à medida que se fiscaliza mais a polícia, o bandido tem mais poder para desmoralizar”. Em off, contou que os bandidos só entendem a violência e não há outro meio de tratar com eles – mesma idéia colocada por Denílson de que, fora de sua comunidade, as leis não são feitas para serem respeitadas, isto é, o “mundo exterior” é o espaço de atuação do criminoso. 
 
 
 
Parece que a polícia passa por um período de mudanças e adaptações ao período democrático em que vivemos e seus métodos autoritários não encontram mais respaldo legal. A situação econômica também colabora, na medida em que estimula a contravenção e o crime em uma sociedade de consumo absurdamente desigual, em meio a uma crise internacional de moral e conceitos relativos à vida e à integridade humana. A banalização da violência é sentida pelos próprios policiais, que não a podem praticar como desejariam e vêem seus adversários a praticarem como nunca antes tinha ocorrido. 
 
 
 
Leandro, como Anderson, cita a vida como seu bem maior e a proteção desta justificaria atos condenáveis para quem está fora da situação em que se dão. A carga negativa de uma imagem institucional de corrupção e desmando é justificada pelos baixos salários que obrigariam o policial a cumprir uma ilegal dupla jornada nos bicos ou o corromperia para o crime, dada a situação privilegiada de que dispõe. A corrupção é vista, então, como própria do homem, e o “policial é um ser humano”, quase forçado a isso. O policial, como descrito e vivido por Leandro, encara o aumento da violência como algo a ser combatido por meios técnicos e não entende a indignação social em relação ao assunto. Em toda a entrevista, como tocando em um mal-estar da cidade, ele salienta que a sociedade se quer protegida, mas dá as costas para si mesma, isto é, defende a aplicação legítima da ordem e da lei, mas não quer pagar o preço disso: obedecer e respeitar. 
 
 
 
Os três atores deste drama, Anderson, Denílson e Leandro, parecem viver uma situação inconciliável: cada um defende e legitima a perspectiva de seu fragmento. Há uma desistência generalizada da esfera pública: até mesmo por conta do policial. 
 
 
 
 “Impressiona aqui algo comum ao espaço da vida cotidiana: o exercício da cidadania transfigurada, existente não só na prática, mas também no interior da organização do discurso legal”Idem. Pg. 52.

 
  Não há qualquer indício, nas entrevistas realizadas, da defesa de uma cidadania universal, de uma rede de experiências que crie algo comum. Cada um age e reage como pode e quer, um por medo, outro por necessidade, e o último para viver. O espaço de todos, a rua, surge como uma disputa entre os diferentes fragmentos sociais de cada um: é a luta pela melhor privatização tanto da ordem, do ir e vir, da legitimidade. Por outro lado, há em todos a sensação do mal-estar, da impotência e da solidão – São Paulo surge então como a cidade dos que querem desistir. 
 
 
  A valoração particular da cidadania gera uma série de incongruentes normas, aplicáveis a alguns, para benefício de uns poucos, excluindo a maioria. Não são as pessoas que pensam assim as responsáveis por isso; pelo contrário: é a estrutura que as força a agir assim – todos têm suas justificativas, seus motivos e suas reais razões. Quando um policial diz que é preciso agir com mais violência contra bandidos, ele pensa assim para [se] defender, gerando ao mesmo tempo uma situação de autoritarismo. Também  quando um seqüestrador diz que o mundo fora de sua comunidade é um supermercado, ele nega a existência de outros homens. Cada um dos dois estabelece suas regras e o morador da cidade, preso entre esses dois universos, faz, ele mesmo, suas normas próprias de conduta. 

 
 
 
“A resultante é, por sua vez, uma política sem mediações institucionais; na sua prática convergem no interior do aparelho estatal – desde uma esfera pseudopública – aquele estilo patrimonialista e – desde a sociedade – o assalto de interesses privilegiados que, como os das nossas microcenas, privatizam, pulverizando-o, o espaço público do Estado”O´DONNELL, GUILLERMO. Situações - microcenas da privatização do público em São Paulo. Novos Estudos, Cebrap, 1988. Pg. 51.
 
  Todos esses atores estão então condenados a seus particularismos, ao medo do desconhecido, ao medo da rua. É o que se encontra em Anderson que mura sua casa e paga pelos serviços de um segurança privado, de Leandro que quer armas mais sofisticadas e de Denílson cuja atividade é marginal e perseguidaA inferioridade da experiência dos criminalizados é exatamente esta: não poder transmiti-la como experiência coletiva, ser obrigado a personalizá-la, não poder assumir em sua universalidade, ter que admitir, enfim, que é um saber sem legitimidade. - PAOLI, MARIA CÉLIA. Violência e espaço civil in: PINHEIRO, PAULO SÉRGIO. A violência brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. Pg. 53. . O discurso legal, que lhes promete direitos e supostamente os constitui como cidadãos, é inócuo e vazio; abre lugar para a constituição social fragmentária e do cotidiano. Mas, ao mesmo tempo, os comportamentos e os conflitos que ocorrem nos fragmentos sociais não são de âmbito pessoal: extrapolam e preenchem o espaço civil e, com a banalização das privatizações do espaço público, tornam–se a lei. Esse espaço civil não é então movido pela cidadania (uma certa igualdade jurídica de cada indivíduo perante uma lei consentida na defesa de seus direitos e no cumprimento de seus deveres), nem apenas pela ação política (conjunto de estratégias e reivindicações coletivas). O que se instala são formas de violência: “A violência das relações pessoais contidas na determinação histórica da sociedade encontra disciplinamento na violência legal da repressão política do Estado”Idem. Pg. 55..

 
 
O processo da fragmentação urbana gera, com as subseqüentes perdas de laços sociais e condições precárias de trabalho e moradia para uma imensa maioria, inclusive para o policial, um universo de seres apartados dos circuitos normativos da sociedade. A falta de coesão engendra, na análise de Robert Castel, uma desfiliação dos que vivem na cidade, principalmente os mais pobres. Entende-se o conceito como o “desenraizamento social e econômico [que] significa, de um lado, enfraquecimento dos laços da sociabilidade primária – família, parentela, bairro, vida associativa e o próprio mundo do trabalho – e, de outro, desemprego de longa duração ou trabalho irregular, informal, intermitente ou ocasional que advém das várias modalidades de desinserção no sistema produtivo” ·. É o caso de Denílson que sofre o desemprego e é escanteado para uma situação de total miséria. Apesar de morar só, o que é raro no bairro, onde predomina a superpopulação, não há janelas no cômodo que é sua casa. Seu quintal é o mesmo que o de outros 5 vizinhos que, por falta de espaço, deixam alguns móveis neste espaço. Na casa à esquerda da sua moram 12 pessoas, em apenas dois quartos. Como não há banheiro nesta casa que alugaPara um trabalhador não qualificado, proprietário de um lote, a construção de casas para alugar significa uma das únicas e a mais freqüente forma de investimento possível, dentro de suas possibilidades, que acrescenta uma renda suplementar ao seu salário e que não está sujeito a oscilações existentes devido à instabilidade no emprego - BONDUKI, NABIL E ROLNILK, RAQUEL. Periferias. Ocupações do espaço e reprodução da força de trabalho. São Paulo, USP/FAU, 1979. Pg. 68., Denílson costuma tomar banho na casa de uns amigos, perto de onde mora. Ele também comentou que são freqüentes as brigas entre os vizinhos, principalmente por causa do uso do quintal. 
 
 
 
Apesar de isso não ter sido amplamente discutido na entrevista, além dos problemas de moradia, Denílson, como muitas pessoas de baixa renda, tem dificuldade em se inserir no mercado de trabalho, estruturado de forma impessoal e burocrática. Além da própria falta de emprego, há também o desconhecimento das regras que devem ser seguidas, das etapas necessárias, dos documentos requeridos. 
 
 
 
“Todos os direitos são transformados em obrigações, e para se poder viver no interior da ordem coletiva é necessário provar, para várias instâncias de autoridade, a pertinência a este público. Exemplifica-se a enxurrada de documentos e certidões, alguns deles verdadeiras defesas contra a interferência da repressão imediata – tipo carteira de trabalho, no dizer de Wanderley G. dos Santos, uma ‘certidão de nascimento cívico’”PAOLI, MARIA CÉLIA. Violência e espaço civil in: PINHEIRO, PAULO SÉRGIO. A violência brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. Pg. 52.
 
  Assim, apesar da fragmentação, a situação de cada um dos atores, especialmente a pobreza de Denílson, parece interagir. Cada um dos entrevistados está distante, mas não desligado – todos intervêm no campo do outro, quer seja na rua, quer seja arrombando a porta de um barraco. Mas há um fosso entre eles, fosso que impede o diálogo e a ação política. Mesmo se pertencem a certas comunidades, como o policial e sua corporação e Denílson e seu bairro, não há integração – neste último caso, mais do que isso há profundo escanteamento. Sua pobreza se traduz em termos de “cidadania privada, inexistente, confinada, de terceira classe, excludente ou hierarquizada, concedida, em suma, da subcidadania ou da cidadania lúmpen” · 

 
 
Na mesma perspectiva, como já foi destacado, o modo como Anderson e Leandro se relacionam com a sociedade, e a visão de cidadania que têm, é privatista. Para Anderson, “trata-se de uma sociabilidade enclausurada e defensiva, alicerçada no retraimento da vida privada – a casa –, que rejeita as esferas públicas – a rua, tida como o espaço da adversidade por excelência, o espaço social do anonimato, do imponderável e imprevisível, local, portanto, do perigo e da violência” ·. 
 
 
 
O pobre é escanteado; a elite se tranca em casa. Os atores parecem não ter meio de interação, cada um de um lado, distantes. Nesse sentido, para entender o que cada um tem para falar ao outro, comparamos trechos das entrevistas, tentando achar nelas temas comuns. Assim, o que cada um dos atores parece ter dito em formato de monólogo, torna-se um tipo de diálogo, onde há uma voz ao relento, surge um coro. Acompanhando os blocos temáticos, rápida análise. 
 
 
 
 
A percepção da violência
 
 
Anderson
Nas três vezes [em que eu fui seqüestrado], eu só senti pânico. Ver a arma e ser ameaçado, com isso, você faz qualquer coisa. Tem que deixar eles dominarem a situação.
Eu penso que eles vêem o seqüestro como um trabalho – e, por isso, tem que deixar que eles façam o serviço deles. É assim que eu fui aprendendo, deixe os caras. Na última vez, o cara estava com certeza drogado, daí é mais imprevisível. Mas nas outras tem que se aproveitar da previsibilidade.
Embora haja problemas sociais, o que ocorre com os seqüestradores é desvio de conduta. Eles te humilham, a violência psicológica é brutal.
[A relação com os seqüestradores] Era o contrário do que se pode achar que tenha que ser a cidadania. Não há troca de nada. Tudo é objetivo: eles perguntam, e você responde. Daí não pode falar mais nada.
Daí você pensa como eles escolhem as pessoas, como no segundo seqüestro, e vê que não tem relação de homens. Eles procuram alvos – procuram o cara que mais se encaixa no que eles estão procurando.
  Denílson
Os caras chamam o supermercado e pega o que quiser. É isso mesmo, sair daqui para pegar uns caras como no supermercado.
Claro que ninguém gosta de violência, a violência é uma merda, mas não tem jeito né. Eles têm o dom. Eles têm a grana, e nós precisando demais da conta dela, a grana que os caras têm e o barraco na miséria.
É só o cara nunca ter visto você, nem te conhecer. Passou, esqueceu. Fora daqui, todo mundo é vítima, é fácil escolher. Todo mundo de carrão passando, só ficar esperto. Às vezes pela roupa, com uma gravata, um boné... A roupa é aquilo que... O tipo do cara é que chama a atenção.
Ninguém fala nada [quando é seqüestrado]. Eu gostava, até, conversava com os caras, mas daí os caras não responde. Também não dá, não tem nem carão de ficar puxando o papa, que os caras nem querem conversar. Nem eu no fundo. Tem que ser rápido. Passou, pegou, nem me viu.
  Leandro
O tráfico na favela é um pouco mais antigo, mas hoje o Ecstasy, que custa caro, com cada pílula custando entre 30 e 50 reais, levou à prisão de pessoas que moram bem, têm bom nível social. Não é o cara que, infelizmente, tem que para chegar em casa atravessar um córrego, andar em meio de brejo, morando em barraco e passando frio e fome. O cara do Ecstasy tem família, mora bem, mas trafica.
A violência é banalizada, acontece a qualquer hora, dia ou noite. O enfrentamento com a polícia lá é grande, é por isso que se fala que a polícia vai lá e mata porque é periferia, mas não é isso. A posição geográfica, tem favela mesmo aqui em São Paulo mesmo na zona sul, é muito mato, muita coisa perto, facilita a fuga e o pessoal tá bem armado.
[Dá para saber quando uma pessoa é suspeita.] Quando você tá numa viatura, e como infelizmente o pessoal tem medo e não gosta da polícia, você tá numa ronda e você olha para o carro, fica encarando, a princípio aquela pessoa fica meio desconcertada, desvia o olhar, é uma coisa normal. Mas você consegue olhar aquele cara que ao desviar o olhar começa a ficar receoso.
O policial tem uma função e o ladrão a dele. O problema não é com você que é vítima.
Quando a polícia vai lá [para as favelas] esses caras não respeitam nada. Policial hoje é executado a luz do dia...
O policial tem de ver para onde atira, o vagabundo atira para todo lado muitas vezes de propósito para parar a perseguição. O cara sai de um assalto a banco e para desviar a atenção do policial que tá perseguindo ele, atira em pedestre, a esmo mesmo...
Se para conter o cara tem que matar, então a polícia tem que matar. Vai deixar ele matar dois três e assim por diante? Como é que fica? E a vida do polícia que está em jogo? Não é que a PM tá violenta de novo, a sociedade está violenta.
 
  A primeira constatação dessas leituras é a existência de uma aceitação consentida do domínio do bandido no momento do crime: quem estabelece as normas e as leis nesse momento é ele. Do “tem que deixar eles dominarem” de Anderson, ao “tem que ser rápido” de Denílson e os enfrentamentos de mesmo nível entre policiais e traficantes, há então uma disputa de poder e legitimidade entre a esfera universal de cidadania e ordem legal e a atividade do criminoso. A estrutura normativa geral perde seu impacto e de intermediação, as coisas se resolvem no tiro – e ninguém precisa prestar conta para ninguém: o bandido mata a esmo e o PM por achar que só assim se acaba com a violência. Leandro coloca que tanto o criminoso quanto o policial têm sua função: no universo que ele desenha, e que os outros também traçam, não há lugar para o Estado, mas apenas para dois campos em guerra. 

 
 
Pelo lado de Denílson, o crime parece ser uma caça ou uma compra. Ele seqüestra em busca do consumo que não consegue obter por falta de absorção do mercado de trabalho. Como mostra Eunice Durham, há uma profunda crise moral e social quando deixa de haver emprego disponível, pois o outro mundo, o dos objetos a serem comprados, não está mais acessível. 
 
 
  “O progresso da sociedade que garante a possibilidade de melhoria da vida privada consiste no processo de ampliação do mercado de trabalho e no acesso ao mercado de consumo determinados pela industrialização e na oferta crescente de serviços urbanos à população”DURHAM, EUNICE. A sociedade vista da periferia in: KOWARICK, LÚCIO. As lutas sociais e a cidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Pg. 197.

  Não podendo ir a um centro comercial, os seqüestradores, como acontece no segundo seqüestro sofrido por Anderson, roubam um carro e vão estabelecendo um sistema de troca de reféns: pegam um ou dois na rua, e vão ao caixa eletrônica, e assim em diante. 
 
 
  Na fala de Leandro, há algo bastante característico do imaginário da classe média, denunciado por Kowarick e Telles: a identificação da pobreza com a criminalidade. É o imaginário que associa o bandido ao pobre: 

 
 
 
“A pobreza é transfigurada em questão de segurança pública nas imagens ameaçadoras da convulsão social e da criminalidade urbana, que reclamam a ação punitiva e repressiva do Estado. Nesse registro, a pobreza aparece como lugar da desrazão, lugar daqueles que rompem as regras da vida civilizada por atos e demandas desmedidas dos que obedecem apenas à voz da paixão e agem pela violência bruta enquanto forma extremada de ruptura do pacto social. É, sobretudo, em torno da violência que se constitui uma opinião pública que abarca amplo espectro de posições à direita e à esquerda e oscila entre a cobrança de maior controle e repressão e a exigência de políticas sociais que quebrem o que é percebido como ciclo inevitável da pobreza e criminalidade”TELLES, VERA. A cidadania inexistente: incivilidade e pobreza. Um estudo sobre trabalho e família na Grande São Paulo. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, 1992.

  É nesta lógica que o policial enxerga o transeunte: se estiver na rua e virar o rosto, é suspeito. Para o coronel Erasmo Dias: a distinção entre trabalhadores de bandidos “pode ser feita com uso de bom senso. Mesmo porque o bandido tupiniquim, o nosso bandidão, [...] tem tipologia definida, está sempre abaixo da média. É subnutrido, mal vestido, subempregado, enfim, tem psicossomática definida. A aparência geral dos bandidos é idêntica”. 
 
 
 
 
A rua

 
Anderson
Da primeira para a segunda vez [que fui seqüestrado], eu já andava com medo na rua, já ficava com medo das pessoas na rua. É difícil não sentir medo quando se é abordado andando em uma das principais avenidas de São Paulo. 
Não deixei de freqüentar lugares que eu freqüentava, mas admito que tenho medo de ir a lugares que não conheço tanto assim. Em alguns bares, até conheço umas pessoas, isto dá confiança, mas também nem tanta.
 
Denílson
Aqui não dá e não pode [cometer crimes]. Todo mundo te conhece e o pessoal é tudo teu amigo. Não dá nem louco. Essa a gente deixa para fazer lá fora, que é onde tem e que é onde dá.
 
Leandro
Estou invadindo bares por causa do tráfico de entorpecentes, nas vielas da favela eu estou mais propenso a tomar um tiro, pela posição geográfica que nos Jardins. A polícia sabe onde ela vai e o que faz, conhece a região que patrulha. Nos Jardins cê vê os caras mais de nível com carro bom, pode ser amigo deste ou daquele mas você aborda e naqueles lugares não tem tanto lugar para ele correr, não tem mato e o cara não vai pular muro de mansão para se esconder. Na favela tem lugar de sobra. 
Você vai no bairro dos Jardins, nas mansões pode estar acontecendo algum tipo de crime, mas na favela você vê que lá sim, o tráfico é 24 horas, a polícia vai lá, isso tá sendo combatido e tem enfrentamento. 
A polícia é mal paga. Um policial com três qüinqüênios ganha 1.500, 1.600 reais, tem quinze anos de experiência já passou por situações que não é brincadeira, principalmente os da ativa, da rua. Isso é uma diferença de 300, 400 reais de uma pessoa que ingressa agora. 
O policial acostumado com a rua sabe pelo jeito do cara. Tanto que você muitas vezes vê a polícia abordar um cara desarmado, você vai e puxa a ficha... tem várias passagens. Dá para saber, suspeitar até durante a abordagem, tatuagem que tem seus significados...

  A rua, para Denílson, é o campo das oportunidades, é onde da para fazer as coisas, diferentemente da comunidade, onde as regras precisam ser respeitadas, ou corre-se o risco de ser assassinado. Para Anderson, por isso mesmo, é o espaço do incerto e da desconfiança: com medo, ele decide não parar nos semáforos (símbolos da ordenação da rua), pois está generalizada a percepção de que há perigo. E é justamente nesse campo do medo e do enfrentamento que Leandro atua; como os policiais acostumados, é aí que se faz seu trabalho – e, ao mesmo tempo, em realiza seu jogo das suspeitas, abordando, lendo os significados dos indivíduos que passam (tatuagens, rostos). 
 
 
“Se, em casa, não devo jamais fingir ou enganar, ser calculista ou mentir, na rua é o modo de procedimento normal. [...] Na rua, além disso, vejo-me também diante do sistema legal (que me iguala teórica e inapelavelmente a todo mundo), da polícia (que se não sabe quem eu sou pode perfeitamente me espancar e até mesmo me matar) e das várias instituições do governo cujo comando e controle escapam totalmente de minha alçada como cidadão. Quer dizer: na rua não sou mais reconhecido como uma pessoa: um amigo, um parente, um afilhado ou um compadre. Sou muito mais um número, uma carteira de identidade, um pagador de impostos, um passageiro, um usuário ou parte de um outro papel universalizante”DA MATTA, ROBERTO. As raízes da violência no Brasil: reflexões de um antropólogo social in: PINHEIRO, PAULO SÉRGIO. A violência brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. Pg. 31-32.

  Para quem  tem, e por isso teme, uma identidade, a rua é assustadora; para quem não a tem, é uma característica fundamental, que cria o elemento surpresa (onde todos são vítimas em potencial); e, finalmente, é o que dá a adrenalina de quem tenta manter uma ordem insustentável, pois a universalização não permite a diferenciação da ação. E Leandro é categórico: o trabalho na favela e em um bairro nobre da cidade, não se faz do mesmo jeito: não se arrombam as portas com a mesma estratégia e, principalmente, não se aguarda o mesmo tipo de reação. 
 
 
 
 
 
A casa

 
Anderson
Não, nunca fiquei com medo de eles virem para cá. Eles falavam para eu não dar queixa, e eu não dei. Não dava porque era perda de tempo. 
Só tenho segurança em casa. Na rua tem viatura particular, todo mundo da rua paga, isso inibe os bandidos. Mas mesmo assim, mesmo com a rua protegida, prefiro minha casa.
  Denílson
Não tem nada para ser roubado aqui [em casa]. Já não tem nem fogão, nem microondas, tá miséria. A confiança, isso é que precisa estar em pé, né?
  Leandro
Eu combato esse tipo de crime no bairro onde eu moro, tem mais essa, nas minhas horas de folga pois tenho facilidade de informação e vou lá combater. O policial, por lei, é policial 24 horas por dia. A criminalidade cresce a cada dia...
 
  Para os três, a casa é um refúgio. É o espaço da confiança para Denílson, onde ele não será assaltado, da tranqüilidade para Anderson, onde não será vítima da criminalidade, e do “trabalho de folga” para Leandro, quando, com as próprias mãos, decide combater os bandidos de seu bairro. É então o espaço em que se quebra com as tensões do mundo exterior. Não há dúvida: mesmo uma rua protegida não é tão segura quanto a própria casa– idéia recorrente em entrevistas sobre o sonho da compra de um imóvel, compra-se a segurança e a certeza do repouso. 

 
 
“Em casa, portanto, posso operar por meio de uma lógica de lealdades e amizades. Meu território aqui [...] é do respeito e da fidelidade aos parentes, compadres e amigos. A casa é o ninho de relações pessoais e dos sistemas de troca de favores e informações que são tão críticos no sistema brasileiro”Idem. Pg. 31.
A comunidade

 
Anderson
Não, [os seqüestradores] não eram [do meu bairro]. Eram de bairros afastados, dava para ver pelo modo de eles falarem e de se vestirem. Aquele vocabulário de marginal – eu já conhecia esse tipo de vocabulário, pois estudei em colégio estadual. Tinha uma diferença social gritante. 
Eu evito esse tipo de contato [com desconhecidos]. Não tenho esses contatos no dia-a-dia, não me relaciono com pessoas se não for da rotina. Só se for em um lugar em que tem bastante gente. 
As coisas vêm sendo cercadas, tudo está murado. Não tem mais área de lazer que seja espaço público. A Paulista é agradável, mas eu tenho medo de ir para lá. Tenho medo mesmo.
  Denílson
Na favela as pessoas não têm nada, vive tudo em barraco pior que o meu e seria mancada tirar deles. Nos bairros chiques que nem a Olímpia e aquele lá do Shopping Ibirapuera tem de tudo, carrão, casão, um monte... E o melhor é que eles não me conhecem e daí dá para tirar um pedaço. De vez em quando...
  Leandro
Nessas favelas onde tem esses crimes que o traficante manda em tudo, em São Paulo mesmo, o cara manda na favela inteira sendo você ou não do tráfico. O traficante da favela que morava ali não mora mais, ele comanda lá, ele manda lá. E a lei dele é a seguinte: desrespeitou, morre.
  Na comunidade, segundo Bourdieu,“la moral del honor se opone, por sus mismos fundamentos, a una moral universal y formal que afirme la igualdad en dignidad de todos los seres humanos, y, en consecuencia, la identidad en derechos e deberesBOURDIEU, PIERRE. El sentimiento del honor en la sociedad de Cabilia in PERISTIANY, J.G. (org) El concepto del honor en la sociedad mediterránea. Barcelona, Labor, 1968. PG. 207. . Até mesmo o policial, supostamente orientado por regras formais, oriundas de uma estrutura social mais ampla, o Estado, reconhece que, na favela, as normas são particulares. Há uma apropriação do poder público, como o da segurança, por exemplo, redefinidos a partir dos anseios e das relações de poder de uma certa comunidade. 

 
 
Nesse sentido, em comparação com a sociedade metropolitana central, na periferia há uma relação muito mais próxima entre as pessoas, tanto família quanto vizinhos. Também não há esse medo dos desconhecidos que, por exemplo, tem Anderson. Ao mesmo tempo, não há o grau de respeito e preocupação às normas universais: sobre matar alguém, Denílson parece mais preocupado na reação de sua mãe – que ele acha que pode matá-lo por isso – do que nas conseqüências legais. 
 
 
 
As regras de alguns se sobrepõem então às universais, às de fora da comunidade. Como já foi destacado, isto não ocorre porque os bairros de periferia estão totalmente desligados da sociedade – pelo contrário, estão dentro e se estruturam com base nela. Mas, nesse caso, em grau exponencialmente maior do que em famílias de classe média, como a de Anderson e Leandro, a idéia de grupo é mais importante para as classes populares. Anteriormente, foi salientada a incompreensão de diversas pessoas de baixa renda em relação à burocracia própria à esfera estatal: há um bloqueio na extensão dos valores formais para as comunidades periféricas. Parte disto deve-se à falta de investimento em instituições públicas nessas áreas escanteadas. Para muitos moradores da periferia, com a experiência da repressão policial ou até de aprisionamentos, 
 
 
“a ordem institucional significa o meio pelo qual se é privado de liberdade, encarcerado, significa perder a movimentação física e o sentido do tempo, aprender a conviver na ambigüidade do puro sentido da sobrevivência. E, sobretudo aprender a própria estratégia da violência do dominador: de agora em diante qualquer que seja o lugar para se viver (dentro ou fora da prisão), é neste mundo que a vida vai se desenrolar. Está constituído o cidadão invertido, aquele que tem absolutamente presente a ordem pública, como repressão” PAOLI, MARIA CÉLIA. Violência e espaço civil in: PINHEIRO, PAULO SÉRGIO. A violência brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. Pg. 52..
 
  A crise econômica

 
Anderson
Você vê gente batalhando, fazendo a luta de forma mais íntegra. Embora haja problemas sociais, o que ocorre com os seqüestradores é desvio de conduta.
  Denílson
Eles são dos bairros que têm as coisas e nós ficamos aqui na miséria e na tristeza. Daí eles têm carrão do ano, relógio de ouro, e nós com o despertador velho. Aqui falta de tudo, não tem asfalto, não tem água boa, não tem hospital, nada. A gente mesmo que faz as coisas e os caras lá de fora que não fazem nada.
  Leandro
Como ele tem esses gastos, o policial tem duas opções: ele tem que trabalhar e está numa profissão que escolheu e gosta, mas é mal compreendida, paga mal... 
O bico, na hora que ele tem para descansar, é para arranjar um complemento, e ele tá sujeito a tudo o que ele se sujeita durante o serviço. E é na hora em que deveria estar com a família, no lazer, desfrutando.
  Para Denílson, a sociedade de mercado aparece como um ideal: é o que ele não tem e quer, é o que o faz sair de sua casa, de sua comunidade. Há, nos objetos que cita, uma promessa de felicidade que, com a situação típica de marginalização e escanteamento social que sofre, não acontece. É uma miragem que, tão logo obtida e vendida para conseguir comida ou qualquer outra coisa de rápido consumo, deixa de existir: são como valores que se impõem à pobreza da periferia, mas que não trazem consigo a aproximação social. Mesmo com um dinheiro rápido e fácil, a situação não melhora no todo, a não ser em raras exceções do crime organizado. 

 
  “Habitar em favelas representa para a grande maioria viver em um ambiente sujeito a altos índices de degradação e contaminação, haja vista o destino dos dejetos, a baixa proporção de unidades habitacionais ligadas à rede de esgoto, o grande número de aglomerados à margem de córregos ou em áreas de acentuada declividade, sujeitas a inundações e erosões”KOWARICK, LÚCIO. Viver em Risco - sobre a vulnerabilidade no Brasil urbano. Novos Estudos, Cebrap, 2002. Pg. 20.

 
  O desemprego surge como o mais grave dos problemas, pois sem a renda que o trabalho traz os habitantes de periferia estão condenados à miséria. Além disso, por não conseguirem renda, eles também ficam condenados à estagnação social: com pouca qualificação e um nível mínimo de escolaridade, eles têm pouca vez em uma sociedade que exige cada vez mais educação e especialização. Ao mesmo tempo, o crime surge como uma forma de compensar esse ciclo infinito de escanteamento: já foi destacado por Denílson, como realizar um seqüestro-relâmpago se aproxima de fato a estar fazendo um bico. Mesmo termo, aliás, usado por Leandro ao explicar como complementa seu final de mês. Há, claramente, uma ligação entre o trabalho informal e esporádico e a crescente criminalidade: ambos decorrem, em parte ou no todo, da crise econômica. 
 
 
 
 
Quinta vez
A cidade de São Paulo reflete as ordenações sociais em direções características do país que ali se aglutinaram e evoluíram para as condições hoje observadas. Seu processo histórico foi paradigmático de um modelo de desenvolvimento nacional que atraiu para si imensas quantidades de capital e mão-de-obra e suas relações sociais acabaram por refletir as opções e trajetórias de um país desigual desde os tempos coloniais. Como uma cidade que hoje desponta para a posição de “cidade global”, São Paulo escolheu também formas modernas de organização que demonstram os caminhos do capitalismo hoje unilateral e mundialmente homogêneo. Os desvios e particularidades do processo histórico nacional hoje colidem com conceitos internacionais na medida em que etapas foram suprimidas ou reprimidas, o que determina que o conjunto formado padeça de uma unidade coerente, sobretudo no tocante à cidadania. Uma cidade que hoje se divide em muros que separam pessoas que muitas vezes convivem diariamente ou que utiliza o artifício de espaços privatizados para sinalizar a segregação evidente de seu dia a dia demonstra as opções que o país tomou principalmente depois de seu período de “redemocratização”.E os pobres são geralmente culpados, como se leu na entrevista do policial, por serem pobres – o que vem a dizer: os violentos. Essa lógica é a do permanente escanteamento: quando o espoliado é ad eternum visto como o malfeitor, tratado de vagabundo. 

 
 
 
Por crise econômica, falta de integração em valores universais, a pessoa de baixa renda, como no caso de Denílson, encontra no crime uma forma de conseguir – mesmo que rapidamente – os objetos que lhe aparecem como símbolos de poder e status, o mercado de c dinheiro onsumo. Como diz, o mundo fora de sua comunidade é o supermercado, o local aonde se vai pegar os que têm carro e cartão de crédito para ir sacar dinheiro, de banco em banco. Mas não é só nele que falta a integração da cidadania, do interesse com o outro: os três atores analisados, criminoso, vítima (?) e policial, valorizam seu espaço fechado, protegido, sua falta de contato. São zumbis: vagam desconhecidos, não respeitam a ordem de personalização, fazem o que querem; são irreconhecidos, pois são vistos de longe, sem precisão, apenas papéis sociais... E assim vão indo, e desistindo das esferas públicas, da atuação coletiva, fechando-se, murando-se, aterrorizando. Como diz Leandro: a vítima precisa entender que, em São Paulo, a disputa é entre os bandidos e os policiais. Ela está de fora
 
 
 
 
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