continuação
O
fenômeno da violência crescente, no entanto, tem diversos fatores
que contribuem para sua disseminação, e a disposição
espacial da cidade apenas sinaliza para determinados setores da população
mais vulneráveis ao ataque simbólico, que desvia o problema
de suas causas: “A pobreza é o determinante, ora da vitimização,
ora da ação violenta”.
Para Alba Zaluar, o estudo da violência passa pela percepção
do estágio em que se encontra a sociedade. A mundialização
de processos como a fragmentação e atomização
sociais e a crescente importância do consumo como fator determinante
da formação das identidades indicaria uma crise abrangente
das censuras e adaptações impostas pelo “processo civilizador”
ao comportamento individual. As constantes crises de modelos econômicos
e a geração de vínculos trabalhistas mais tênues
e indefinidos acabam por influir diretamente nos projetos de futuro do
indivíduo, que se vê impotente frente à insegurança
cotidiana para poder construir um projeto de vida que lhe obrigue a seguir
uma trilha coerente dentro das regras sociais estabelecidas. A busca imediata
de gratificação na juventude cada vez mais valorizada, o
desprezo pelas gerações mais velhas e seus saberes e a incerteza
quanto ao futuro inibiriam a construção da identidade individual
colaborando, portanto, para a disseminação do narcisismo
em uma sociedade ocupada apenas com o tempo presente, quando o indivíduo
não enxerga outros além de projeções de si
mesmo e busca no imediato do prazer, do jogo, da diversão e das
drogas a satisfação possível. A popularização
do uso de drogas como a cocaína deu-se a partir dos anos 80, quando
seu preço baixou aproximadamente cinco vezes em 15 anos
, fruto de novas tecnologias e formas mais eficientes de transporte e produção
nas teias do “crime-negócio” organizado que floresceu no fim do
milênio. As drogas em si promovem uma rede de ilegalidades que abastecem
o mercado, alimentando os índices de violência na sociedade,
além de originar enormes quantidades de dinheiro que corrompem todos
os envolvidos ao desestabilizar as possibilidades de ganho e ascensão
socialmente acordadas. Neste caso, as instituições estatais
responsáveis pelo controle da violência acabam por imiscuírem-se
no mundo do crime perdendo, portanto, a distância necessária
e colaborando para o declínio de seu monopólio legítimo.
A perda do monopólio estatal da violência – no caso brasileiro
a questão que fica é se alguma vez isso efetivamente aconteceu
como fato legítimo – favorece a penetração da violência
nas subjetividades.
A questão histórica
brasileira do Estado como representante de apenas parte da população
dá margem a se pensar tal ausência como um vácuo institucional
que limita e questiona a efetividade do “processo civilizador” em nossa
sociedade, nos termos postos por Norbert Elias, quando “na sociedade
assim pacificada, o monopólio estatal da violência legítima
foi consolidado por mudanças nas características pessoais
de cada cidadão: o autocontrole das emoções e da violência
física, a diminuição do prazer de infligir dor ao
adversário e destruí-lo na liberdade irrestrita da luta privada”.
Desde
a colônia, a violência é comum ao cotidiano brasileiro.
Gilberto Freyre pensa a sociedade brasileira como tendo sua formação
realizada no privado, na casa-grande – patriarcal, familiar – encerrando
dentro de seu mundo um sistema de violência favorecido pela escravatura
– e a monocultura – e as relações pessoais que dela emanavam.
A noção de autoridade permeia o universo familiar que está
muito longe de qualquer crivo ou controle por parte do Estado português,
que mal se faz presente. É um perfil formador que não encontra
parentesco, então, na democracia liberal ou no republicanismo onde
as relações de mercado forçam as pessoas a encararem-se
como iguais, enquanto indivíduos, na esfera pública. Sérgio
Buarque de Holanda também pensa a formação do Brasil
como um processo que se dá na esfera privada. É na “ética
privada do mando” que a organização familiar brasileira colonial
vai se articular. Ambos os autores pensam o espaço público,
quando da formação do Brasil, como gerido por critérios
privados. A ausência de um “processo civilizador” – motivado pela
distância de um Estado não moderno e uma relação
econômica completamente avessa às noções modernas
liberais de individualidade, igualdade e liberdade – acarretou uma falta
completa de racionalidade, com o privado criando uma “hierarquia de cidadanias”
onde uma elite se apropria do Estado para realizar seus fins privados em
detrimento do restante de população mantido à margem.
Para Alba Zaluar,
“Onde os laços
segmentais (familiares, étnicos ou locais) são mais fortes
[...] o orgulho e o sentimento de adesão ao grupo diminuem a pressão
social para o controle das emoções e da violência física,
resultando em baixos sentimentos de culpa no uso aberto da violência
nos conflitos”.
Ela identifica tais características
nos “bairros populares e vizinhanças pobres” , mas também
nas “cidades”, cuja espacialidade favorece a confusão entre etnia
e bairro. Junta-se a isso, segundo Zaluar, o caráter familiar segregado
com o “pai distante” e a mãe como figura central cada vez mais característico
dos bairros populares, o que geraria um controle mais violento e permanente
das crianças. A cidade aparece então como o “locus” social
privilegiado da violência impessoal, distante e indiferente que hoje
tanto espanta parte da população.
Na ausência de um Estado
forte e legítimo para parte da população, as quadrilhas
competem com o Estado nas funções básicas assistencialistas,
ao mesmo tempo em que cobram pesado preço principalmente entre a
população mais jovem que vê no tráfico a oportunidade
de ganhos imediatos em uma sociedade que lhes dá exemplos diários
de desesperança no futuro e descrença nas instituições.
Na constituição de um ethos guerreiro dentro de um vácuo
estatal que em teoria também seria responsável pela inibição
de tal atitude através de um processo “civilizatório”, a
banalidade da violência encontra os meios tecnológicos e estruturais
disponíveis na produção e no tráfico de armas,
e na corrupção estatal. A cidade é seu campo fértil,
que lhe oferece oportunidades de desenvolvimento e floração
no adubo da fala do crime, que ignora causas, atendo-se a sintomas e justificando
atitudes através da elaboração de uma espacialidade
segregada, que separa os efeitos de uma sociedade violenta e circunscreve
seus agentes em mundos a serem evitados. Tanto o policial quanto o marginal
vivem mundos à parte, que não interessam ao restante da população
que observa pela televisão um filme de bandidos e mocinhos fechada
atrás de mil aparatos de segurança, apartada de si mesma
e desconfiada de todos os que não conhece. A fala do crime legitima
tal atitude na medida em que realiza, concretiza o medo existente e difuso,
dando-lhe uma história, uma cara, um jeito e um discurso que orienta
posturas e pensamentos. Os casos de crime e violência que povoam
a mídia são os sonhos de xamã de que fala Michael
Taussig
, organizando um imaginário e dando-lhe credibilidade, um respaldo
na realidade. Na Colômbia, os xamãs sonham através
do uso de substâncias alucinógenas, mas seus sonhos são
povoados por figuras e elementos de um imaginário tipicamente colonial,
das imagens do homem selvagem, do conquistador e da violência como
legitimadora de tais dicotomias simbólicas. A violência assim
experienciada torna-se uma forma de diálogo e afirmação
de um modo de estruturar a realidade, tornando-a legítima. O horror
passa a ser então um modo de se lidar com o local, seus habitantes
e suas histórias.
No
Brasil da desigualdade, da escravidão permanente como característica
nacional, o imaginário pode atuar na dicotomia entre o humano e
o menos humano, o “untermensch” nazista. Nas margens do processo social
estariam, então, os “desnecessários” sobre quem, segundo
Luciano Oliveira,
“se abate um estigma,
cuja conseqüência mais dramática seria sua expulsão
da própria órbita da humanidade, isso na medida em que os
excluídos, levando muitas vezes uma vida considerada subumana em
relação aos padrões normais de sociabilidade, ‘passam
a ser percebidos como indivíduos socialmente ameaçantes e,
por isso, passíveis de serem eliminados”.
O massacre do Carandiru
pode ser encarado como um ápice na tensão de um país
democrático sentindo-se ameaçado nas suas relações
sociais tradicionais. O processo democrático “particularmente intenso”
de que fala Caldeira pode ter acertado as contas com seus fantasmas numa
catarse de violência exterminadora que chocou apenas parte da sociedade.
Ainda é comum de certos segmentos da sociedade a expressão
“só mataram 111”, revelando a noção embutida na expressão
“vagabundo” usada pela polícia para designar o marginal como um
“apátrida” social cuja utilidade é medida na sua dispensabilidade
enquanto ser humano. A lógica opera também “por conta dos
espantosos e contínuos avanços tecnológicos dos últimos
tempos; parece consistente a hipótese de que a massa de trabalhadores
miseráveis já não possui as qualificações
necessárias para funcionar como massa de ‘reserva’, da qual o setor
dinâmico do capitalismo poderia lançar mão para comprimir
salários, como quer a análise clássica de Marx. Nesse
caso, que parece ocorrer no Brasil atualmente, o setor dinâmico da
economia poderia operar sem se preocupar com os miseráveis que,
de tão numerosos, deixariam de ser funcionais e passariam a constituir
um estorvo”.
Que o processo econômico como um todo integre ou não o indivíduo,
mesmo que em caráter absolutamente marginal, que as discussões
e polêmicas geradas possua m partidários de ambos os lados,
bem exemplifica o texto de Oliveira, mas o direito a uma imagem de cidadão
digno de respeito e de igualdade por parte da é facilmente posta
à prova dentro do típico e banal edifício de apartamentos
que pontua bairros inteiros da cidade de São Paulo pela existência
de dois elevadores separados por funções, mas de nítida
intenção segregacionista, na própria constituição
arquitetônica do espaço, onde os personagens de diferentes
histórias da cidade mantêm-se à parte. Que se precise
de uma lei para coibir tal procedimento e que ela não seja observada
devido ao costume de vida arraigado em ambos os atores sociais diz muito
da sociedade brasileira e seu modo de encarar a cidadania.
Quarta
estrofe
A destruição
das mediações sociais deixa frente a frente
a globalização
do campo cultural e a multiplicidade
inexcedível dos
atores sociais. O lado escuro desse culturalismo
é o risco de encerramento
de cada cultura numa experiência
particular incomunicável.
Uma tal fragmentação no
conduziria a um mundo
de seitas e à rejeição de toda normal social.
Alain Touraine
Diferentemente
do período militar, em que seqüestros eram realizados para
reivindicar a redefinição das relações entre
Estado e sociedade civil, isto é, eram meios de luta pela cidadania,
e pelo direito ao poder, no caso contemporâneo brasileiro, pelo contrário,
a criminalidade – e em especial esse tipo de crime – está quase
integralmente desvinculado de tal preocupação. Não
é uma manifestação de luta pela cidadania, pois os
significados sociais e as decorrentes manifestações dos criminosos
não se dão no plano público, mas no campo do dia-a-dia,
do privado, do pequeno.
“Nas
pequenas mazelas do cotidiano, organizadas por regras culturais que compõem
o ‘popular’, não há cidadãos, mas pessoas. Pessoas
que vivem o seu desconhecimento da cidadania pelo reconhecimento de outras
instâncias coletivas, universais, como uma ordem natural, uma ordem
divina, uma garantia ética”.
O criminoso, como Denílson,
reconhece a existência de uma lei universal, só que “essa
não dá para aceitar”; está muito longe de seu mundo,
de sua realidade. A norma que ele segue é a da comunidade em que
ele se insere, a ordem do microcosmo: “Aqui tem aquela coisa da gente ser
unida, aquela coisa de grupo né, como na igreja”. O distanciamento
da ordem legal (ou constitucional) cria um outro tipo de estrutura social,
onde não valem as mesmas regras: na favela da Ermelino Matarazzo,
todos se conhecem. Rompe-se a forçosa impessoalidade da sociedade
“do lado de fora”. Ao mesmo tempo, vive-se com certo grau de união,
com mais solidariedade, diferentemente da lógica do eu contra todos
que domina “nos bairros dos que têm”. Não se trata de mostrar
o que é melhor, apenas que há uma distinção,
algo que impede a plena junção dos dois mundos: nesta favela,
os valores e os costumes são outros que os do resto da cidade, parece
nos dizer Denílson. Diz-se muitas vezes que a favela – e a violência
do cotidiano – são a desordem: isto está diariamente estampado
em todos os jornais. Aqui, o entrevistado quer nos mostrar o contrário:
ele salienta que, como vê, a lei existe como proteção
dos que têm “carrão do ano, relógio de ouro”. Ele vê
nestas regras uma ordem que, também no cotidiano, demonstra a arrogância
de alguns, sua extrema pobreza, e ainda se dá por legítima.
Para ele, como para Paoli, “a experiência da ordem legal é
uma desordem imposta, porque não supõe barganha a não
ser o reconhecimento de seu próprio poder” . A lei exterior,
a lei extracomunidade, é uma imposição, é uma
estrutura indiscutível, e, na perspectiva de Denílson, por
isso mesmo, inaceitável.
A falta de legitimidade da
legalidade instituída gera uma situação em que somem
os limites sociais, principalmente nos espaços civis, como a rua.
Anderson
traduz a vida fora de sua casa, o locus que controla, como medo: depois
dos seqüestros que sofreu, admite sentir medo na rua, medo de falar
com pessoas desconhecidas. Como acontece com Denílson, é
no microcosmo que encontra a ordem e a tranqüilidade. Além
da contratação de uma viatura privada para sua rua, elevar
os muros de sua casa, evita ir a lugares que não conhece tanto assim:
molda sua vida em relação ao medo de ser mais uma vez vítima
de um crime. Aos poucos, Anderson abandona o espaço público
da convivência para se fechar, murar–se, evitar ir a certos locais:
“A Paulista é agradável, mas eu tenho medo de ir para
lá.” Estrutura sua passagem por esta terra com base nos pontos
da cidade onde se pode ir – e nos outros onde há criminalidade e,
por isso mesmo, não se pode ir. Advogado, ele admite desrespeitar
as leis por causa do medo: cruza o semáforo vermelho. Não
parar no fechamento do semáforo tornou–se uma atitude tão
comum que nem mais é questionada. A ordem da rua é burlada
conscientemente, pois ela não serve para proteger e racionalizar,
mas para gerar medo e violência. A mesma função, aliás,
destinada aos policiais: segundo Anderson, “o que eu menos quero é
que eles me vejam sendo seqüestrado, não quero que tiro sobre
para mim”. Os homens da lei e da ordem são ineficazes e insuficientes
para a configuração social contemporânea: não
têm como dar conta e, por isso mesmo, são desprestigiados.
Leandro
também sinaliza para a perda do temor e do respeito que antes existia
para com o policial. Para ele, isto ocorre porque governos obrigaram a
corporação a adequar-se ao trato democrático, tirando
a aura autoritária que sempre a caracterizou. Ele salienta que “à
medida que se fiscaliza mais a polícia, o bandido tem mais poder
para desmoralizar”. Em off, contou que os bandidos só entendem a
violência e não há outro meio de tratar com eles –
mesma idéia colocada por Denílson de que, fora de sua comunidade,
as leis não são feitas para serem respeitadas, isto é,
o “mundo exterior” é o espaço de atuação do
criminoso.
Parece
que a polícia passa por um período de mudanças e adaptações
ao período democrático em que vivemos e seus métodos
autoritários não encontram mais respaldo legal. A situação
econômica também colabora, na medida em que estimula a contravenção
e o crime em uma sociedade de consumo absurdamente desigual, em meio a
uma crise internacional de moral e conceitos relativos à vida e
à integridade humana. A banalização da violência
é sentida pelos próprios policiais, que não a podem
praticar como desejariam e vêem seus adversários a praticarem
como nunca antes tinha ocorrido.
Leandro,
como Anderson, cita a vida como seu
bem maior e a proteção desta justificaria atos condenáveis
para quem está fora da situação em que se dão.
A carga negativa de uma imagem institucional de corrupção
e desmando é justificada pelos baixos salários que obrigariam
o policial a cumprir uma ilegal dupla jornada nos bicos ou o corromperia
para o crime, dada a situação privilegiada de que dispõe.
A corrupção é vista, então, como própria
do homem, e o “policial é um ser humano”, quase forçado a
isso. O policial, como descrito e vivido por Leandro, encara o aumento
da violência como algo a ser combatido por meios técnicos
e não entende a indignação social em relação
ao assunto. Em toda a entrevista, como tocando em um mal-estar da cidade,
ele salienta que a sociedade se quer protegida, mas dá as costas
para si mesma, isto é, defende a aplicação legítima
da ordem e da lei, mas não quer pagar o preço disso: obedecer
e respeitar.
Os
três atores deste drama, Anderson,
Denílson
e Leandro, parecem viver uma situação
inconciliável: cada um defende e legitima a perspectiva de seu fragmento.
Há uma desistência generalizada da esfera pública:
até mesmo por conta do policial.
“Impressiona
aqui algo comum ao espaço da vida cotidiana: o exercício
da cidadania transfigurada, existente não só na prática,
mas também no interior da organização do discurso
legal”.
Não há qualquer
indício, nas entrevistas realizadas, da defesa de uma cidadania
universal, de uma rede de experiências que crie algo comum. Cada
um age e reage como pode e quer, um por medo, outro por necessidade, e
o último para viver. O espaço de todos, a rua, surge como
uma disputa entre os diferentes fragmentos sociais de cada um: é
a luta pela melhor privatização tanto da ordem, do ir e vir,
da legitimidade. Por outro lado, há em todos a sensação
do mal-estar, da impotência e da solidão – São Paulo
surge então como a cidade dos que querem desistir.
A valoração
particular da cidadania gera uma série de incongruentes normas,
aplicáveis a alguns, para benefício de uns poucos, excluindo
a maioria. Não são as pessoas que pensam assim as responsáveis
por isso; pelo contrário: é a estrutura que as força
a agir assim – todos têm suas justificativas, seus motivos e suas
reais razões. Quando um policial diz que é preciso agir com
mais violência contra bandidos, ele pensa assim para [se] defender,
gerando ao mesmo tempo uma situação de autoritarismo. Também
quando um seqüestrador diz que o mundo fora de sua comunidade é
um supermercado, ele nega a existência de outros homens. Cada um
dos dois estabelece suas regras e o morador da cidade, preso entre esses
dois universos, faz, ele mesmo, suas normas próprias de conduta.
“A resultante é,
por sua vez, uma política sem mediações institucionais;
na sua prática convergem no interior do aparelho estatal – desde
uma esfera pseudopública – aquele estilo patrimonialista e – desde
a sociedade – o assalto de interesses privilegiados que, como os das nossas
microcenas, privatizam, pulverizando-o, o espaço público
do Estado”.
Todos esses atores estão
então condenados a seus particularismos, ao medo do desconhecido,
ao medo da rua. É o que se encontra em Anderson que mura sua casa
e paga pelos serviços de um segurança privado, de Leandro
que quer armas mais sofisticadas e de Denílson cuja atividade é
marginal e perseguida
. O discurso legal, que lhes promete direitos e supostamente os constitui
como cidadãos, é inócuo e vazio; abre lugar para a
constituição social fragmentária e do cotidiano. Mas,
ao mesmo tempo, os comportamentos e os conflitos que ocorrem nos fragmentos
sociais não são de âmbito pessoal: extrapolam e preenchem
o espaço civil e, com a banalização das privatizações
do espaço público, tornam–se a lei. Esse espaço civil
não é então movido pela cidadania (uma certa igualdade
jurídica de cada indivíduo perante uma lei consentida na
defesa de seus direitos e no cumprimento de seus deveres), nem apenas pela
ação política (conjunto de estratégias e reivindicações
coletivas). O que se instala são formas de violência: “A violência
das relações pessoais contidas na determinação
histórica da sociedade encontra disciplinamento na violência
legal da repressão política do Estado”.
O
processo da fragmentação urbana gera, com as subseqüentes
perdas de laços sociais e condições precárias
de trabalho e moradia para uma imensa maioria, inclusive para o policial,
um universo de seres apartados dos circuitos normativos da sociedade. A
falta de coesão engendra, na análise de Robert Castel, uma
desfiliação dos que vivem na cidade, principalmente os mais
pobres. Entende-se o conceito como o “desenraizamento social e econômico
[que] significa, de um lado, enfraquecimento dos laços da sociabilidade
primária – família, parentela, bairro, vida associativa e
o próprio mundo do trabalho – e, de outro, desemprego de longa duração
ou trabalho irregular, informal, intermitente ou ocasional que advém
das várias modalidades de desinserção no sistema produtivo”
·. É o caso de Denílson que sofre o desemprego e é
escanteado para uma situação de total miséria. Apesar
de morar só, o que é raro no bairro, onde predomina a superpopulação,
não há janelas no cômodo que é sua casa. Seu
quintal é o mesmo que o de outros 5 vizinhos que, por falta de espaço,
deixam alguns móveis neste espaço. Na casa à esquerda
da sua moram 12 pessoas, em apenas dois quartos. Como não há
banheiro nesta casa que aluga,
Denílson costuma tomar banho na casa de uns amigos, perto de onde
mora. Ele também comentou que são freqüentes as brigas
entre os vizinhos, principalmente por causa do uso do quintal.
Apesar
de isso não ter sido amplamente discutido na entrevista, além
dos problemas de moradia, Denílson, como muitas pessoas de baixa
renda, tem dificuldade em se inserir no mercado de trabalho, estruturado
de forma impessoal e burocrática. Além da própria
falta de emprego, há também o desconhecimento das regras
que devem ser seguidas, das etapas necessárias, dos documentos requeridos.
“Todos os direitos são
transformados em obrigações, e para se poder viver no interior
da ordem coletiva é necessário provar, para várias
instâncias de autoridade, a pertinência a este público.
Exemplifica-se a enxurrada de documentos e certidões, alguns deles
verdadeiras defesas contra a interferência da repressão imediata
– tipo carteira de trabalho, no dizer de Wanderley G. dos Santos, uma ‘certidão
de nascimento cívico’”.
Assim, apesar da fragmentação,
a situação de cada um dos atores, especialmente a pobreza
de Denílson, parece interagir. Cada um dos entrevistados está
distante, mas não desligado – todos intervêm no campo do outro,
quer seja na rua, quer seja arrombando a porta de um barraco. Mas há
um fosso entre eles, fosso que impede o diálogo e a ação
política. Mesmo se pertencem a certas comunidades, como o policial
e sua corporação e Denílson e seu bairro, não
há integração – neste último caso, mais do
que isso há profundo escanteamento. Sua pobreza se traduz em termos
de “cidadania privada, inexistente, confinada, de terceira classe, excludente
ou hierarquizada, concedida, em suma, da subcidadania ou da cidadania lúmpen”
·
Na
mesma perspectiva, como já foi destacado, o modo como Anderson e
Leandro se relacionam com a sociedade, e a visão de cidadania que
têm, é privatista. Para Anderson, “trata-se de uma sociabilidade
enclausurada e defensiva, alicerçada no retraimento da vida privada
– a casa –, que rejeita as esferas públicas – a rua, tida como o
espaço da adversidade por excelência, o espaço social
do anonimato, do imponderável e imprevisível, local, portanto,
do perigo e da violência” ·.
O
pobre é escanteado; a elite se tranca em casa. Os atores parecem
não ter meio de interação, cada um de um lado, distantes.
Nesse sentido, para entender o que cada um tem para falar ao outro, comparamos
trechos das entrevistas, tentando achar nelas temas comuns. Assim, o que
cada um dos atores parece ter dito em formato de monólogo, torna-se
um tipo de diálogo, onde há uma voz ao relento, surge um
coro. Acompanhando os blocos temáticos, rápida análise.
A
percepção da violência
Anderson
Nas
três vezes [em que eu fui seqüestrado], eu só senti pânico.
Ver a arma e ser ameaçado, com isso, você faz qualquer coisa.
Tem que deixar eles dominarem a situação.
Eu
penso que eles vêem o seqüestro como um trabalho – e, por isso,
tem que deixar que eles façam o serviço deles. É assim
que eu fui aprendendo, deixe os caras. Na última vez, o cara estava
com certeza drogado, daí é mais imprevisível. Mas
nas outras tem que se aproveitar da previsibilidade.
Embora
haja problemas sociais, o que ocorre com os seqüestradores é
desvio de conduta. Eles te humilham, a violência psicológica
é brutal.
[A
relação com os seqüestradores] Era o contrário
do que se pode achar que tenha que ser a cidadania. Não há
troca de nada. Tudo é objetivo: eles perguntam, e você responde.
Daí não pode falar mais nada.
Daí
você pensa como eles escolhem as pessoas, como no segundo seqüestro,
e vê que não tem relação de homens. Eles procuram
alvos – procuram o cara que mais se encaixa no que eles estão procurando.
Denílson
Os caras chamam o supermercado
e pega o que quiser. É isso mesmo, sair daqui para pegar uns caras
como no supermercado.
Claro que ninguém
gosta de violência, a violência é uma merda, mas não
tem jeito né. Eles têm o dom. Eles têm a grana, e nós
precisando demais da conta dela, a grana que os caras têm e o barraco
na miséria.
É só o
cara nunca ter visto você, nem te conhecer. Passou, esqueceu. Fora
daqui, todo mundo é vítima, é fácil escolher.
Todo mundo de carrão passando, só ficar esperto. Às
vezes pela roupa, com uma gravata, um boné... A roupa é aquilo
que... O tipo do cara é que chama a atenção.
Ninguém fala nada
[quando é seqüestrado]. Eu gostava, até, conversava
com os caras, mas daí os caras não responde. Também
não dá, não tem nem carão de ficar puxando
o papa, que os caras nem querem conversar. Nem eu no fundo. Tem que ser
rápido. Passou, pegou, nem me viu.
Leandro
O tráfico na favela
é um pouco mais antigo, mas hoje o Ecstasy, que custa caro, com
cada pílula custando entre 30 e 50 reais, levou à prisão
de pessoas que moram bem, têm bom nível social. Não
é o cara que, infelizmente, tem que para chegar em casa atravessar
um córrego, andar em meio de brejo, morando em barraco e passando
frio e fome. O cara do Ecstasy tem família, mora bem, mas trafica.
A violência é
banalizada, acontece a qualquer hora, dia ou noite. O enfrentamento com
a polícia lá é grande, é por isso que se fala
que a polícia vai lá e mata porque é periferia, mas
não é isso. A posição geográfica, tem
favela mesmo aqui em São Paulo mesmo na zona sul, é muito
mato, muita coisa perto, facilita a fuga e o pessoal tá bem armado.
[Dá para saber
quando uma pessoa é suspeita.] Quando você tá numa
viatura, e como infelizmente o pessoal tem medo e não gosta da polícia,
você tá numa ronda e você olha para o carro, fica encarando,
a princípio aquela pessoa fica meio desconcertada, desvia o olhar,
é uma coisa normal. Mas você consegue olhar aquele cara que
ao desviar o olhar começa a ficar receoso.
O policial tem uma função
e o ladrão a dele. O problema não é com você
que é vítima.
Quando a polícia
vai lá [para as favelas] esses caras não respeitam nada.
Policial hoje é executado a luz do dia...
O policial tem de ver
para onde atira, o vagabundo atira para todo lado muitas vezes de propósito
para parar a perseguição. O cara sai de um assalto a banco
e para desviar a atenção do policial que tá perseguindo
ele, atira em pedestre, a esmo mesmo...
Se para conter o cara
tem que matar, então a polícia tem que matar. Vai deixar
ele matar dois três e assim por diante? Como é que fica? E
a vida do polícia que está em jogo? Não é que
a PM tá violenta de novo, a sociedade está violenta.
A primeira constatação
dessas leituras é a existência de uma aceitação
consentida do domínio do bandido no momento do crime: quem estabelece
as normas e as leis nesse momento é ele. Do “tem que deixar eles
dominarem” de Anderson, ao “tem que ser rápido” de Denílson
e os enfrentamentos de mesmo nível entre policiais e traficantes,
há então uma disputa de poder e legitimidade entre a esfera
universal de cidadania e ordem legal e a atividade do criminoso. A estrutura
normativa geral perde seu impacto e de intermediação, as
coisas se resolvem no tiro – e ninguém precisa prestar conta para
ninguém: o bandido mata a esmo e o PM por achar que só assim
se acaba com a violência. Leandro coloca que tanto o criminoso quanto
o policial têm sua função: no universo que ele desenha,
e que os outros também traçam, não há lugar
para o Estado, mas apenas para dois campos em guerra.
Pelo
lado de Denílson, o crime parece ser uma caça ou uma compra.
Ele seqüestra em busca do consumo que não consegue obter por
falta de absorção do mercado de trabalho. Como mostra Eunice
Durham, há uma profunda crise moral e social quando deixa de haver
emprego disponível, pois o outro mundo, o dos objetos a serem comprados,
não está mais acessível.
“O progresso da sociedade
que garante a possibilidade de melhoria da vida privada consiste no processo
de ampliação do mercado de trabalho e no acesso ao mercado
de consumo determinados pela industrialização e na oferta
crescente de serviços urbanos à população”.
Não podendo ir a um
centro comercial, os seqüestradores, como acontece no segundo seqüestro
sofrido por Anderson, roubam um carro e vão estabelecendo um sistema
de troca de reféns: pegam um ou dois na rua, e vão ao caixa
eletrônica, e assim em diante.
Na fala de Leandro, há
algo bastante característico do imaginário da classe média,
denunciado por Kowarick e Telles: a identificação da pobreza
com a criminalidade. É o imaginário que associa o bandido
ao pobre:
“A pobreza é
transfigurada em questão de segurança pública nas
imagens ameaçadoras da convulsão social e da criminalidade
urbana, que reclamam a ação punitiva e repressiva do Estado.
Nesse registro, a pobreza aparece como lugar da desrazão, lugar
daqueles que rompem as regras da vida civilizada por atos e demandas desmedidas
dos que obedecem apenas à voz da paixão e agem pela violência
bruta enquanto forma extremada de ruptura do pacto social. É, sobretudo,
em torno da violência que se constitui uma opinião pública
que abarca amplo espectro de posições à direita e
à esquerda e oscila entre a cobrança de maior controle e
repressão e a exigência de políticas sociais que quebrem
o que é percebido como ciclo inevitável da pobreza e criminalidade”.
É nesta lógica
que o policial enxerga o transeunte: se estiver na rua e virar o rosto,
é suspeito. Para o coronel Erasmo Dias: a distinção
entre trabalhadores de bandidos “pode ser feita com uso de bom senso.
Mesmo porque o bandido tupiniquim, o nosso bandidão, [...] tem tipologia
definida, está sempre abaixo da média. É subnutrido,
mal vestido, subempregado, enfim, tem psicossomática definida. A
aparência geral dos bandidos é idêntica”.
A
rua
Anderson
Da primeira para a segunda
vez [que fui seqüestrado], eu já andava com medo na rua, já
ficava com medo das pessoas na rua. É difícil não
sentir medo quando se é abordado andando em uma das principais avenidas
de São Paulo.
Não deixei de freqüentar
lugares que eu freqüentava, mas admito que tenho medo de ir a lugares
que não conheço tanto assim. Em alguns bares, até
conheço umas pessoas, isto dá confiança, mas também
nem tanta.
Denílson
Aqui não dá
e não pode [cometer crimes]. Todo mundo te conhece e o pessoal é
tudo teu amigo. Não dá nem louco. Essa a gente deixa para
fazer lá fora, que é onde tem e que é onde dá.
Leandro
Estou invadindo bares por
causa do tráfico de entorpecentes, nas vielas da favela eu estou
mais propenso a tomar um tiro, pela posição geográfica
que nos Jardins. A polícia sabe onde ela vai e o que faz, conhece
a região que patrulha. Nos Jardins cê vê os caras mais
de nível com carro bom, pode ser amigo deste ou daquele mas você
aborda e naqueles lugares não tem tanto lugar para ele correr, não
tem mato e o cara não vai pular muro de mansão para se esconder.
Na favela tem lugar de sobra.
Você vai no bairro
dos Jardins, nas mansões pode estar acontecendo algum tipo de crime,
mas na favela você vê que lá sim, o tráfico é
24 horas, a polícia vai lá, isso tá sendo combatido
e tem enfrentamento.
A polícia é
mal paga. Um policial com três qüinqüênios ganha
1.500, 1.600 reais, tem quinze anos de experiência já passou
por situações que não é brincadeira, principalmente
os da ativa, da rua. Isso é uma diferença de 300, 400 reais
de uma pessoa que ingressa agora.
O policial acostumado com
a rua sabe pelo jeito do cara. Tanto que você muitas vezes vê
a polícia abordar um cara desarmado, você vai e puxa a ficha...
tem várias passagens. Dá para saber, suspeitar até
durante a abordagem, tatuagem que tem seus significados...
A rua, para Denílson,
é o campo das oportunidades, é onde da para fazer as coisas,
diferentemente da comunidade, onde as regras precisam ser respeitadas,
ou corre-se o risco de ser assassinado. Para Anderson, por isso mesmo,
é o espaço do incerto e da desconfiança: com medo,
ele decide não parar nos semáforos (símbolos da ordenação
da rua), pois está generalizada a percepção de que
há perigo. E é justamente nesse campo do medo e do enfrentamento
que Leandro atua; como os policiais acostumados, é aí que
se faz seu trabalho – e, ao mesmo tempo, em realiza seu jogo das suspeitas,
abordando, lendo os significados dos indivíduos que passam (tatuagens,
rostos).
“Se, em casa, não
devo jamais fingir ou enganar, ser calculista ou mentir, na rua é
o modo de procedimento normal. [...] Na rua, além disso, vejo-me
também diante do sistema legal (que me iguala teórica e inapelavelmente
a todo mundo), da polícia (que se não sabe quem eu sou pode
perfeitamente me espancar e até mesmo me matar) e das várias
instituições do governo cujo comando e controle escapam totalmente
de minha alçada como cidadão. Quer dizer: na rua não
sou mais reconhecido como uma pessoa: um amigo, um parente, um afilhado
ou um compadre. Sou muito mais um número, uma carteira de identidade,
um pagador de impostos, um passageiro, um usuário ou parte de um
outro papel universalizante”.
Para quem tem, e por
isso teme, uma identidade, a rua é assustadora; para quem não
a tem, é uma característica fundamental, que cria o elemento
surpresa (onde todos são vítimas em potencial); e, finalmente,
é o que dá a adrenalina de quem tenta manter uma ordem insustentável,
pois a universalização não permite a diferenciação
da ação. E Leandro é categórico: o trabalho
na favela e em um bairro nobre da cidade, não se faz do mesmo jeito:
não se arrombam as portas com a mesma estratégia e, principalmente,
não se aguarda o mesmo tipo de reação.
A
casa
Anderson
Não,
nunca fiquei com medo de eles virem para cá. Eles falavam para eu
não dar queixa, e eu não dei. Não dava porque era
perda de tempo.
Só tenho segurança
em casa. Na rua tem viatura particular, todo mundo da rua paga, isso inibe
os bandidos. Mas mesmo assim, mesmo com a rua protegida, prefiro minha
casa.
Denílson
Não tem nada para
ser roubado aqui [em casa]. Já não tem nem fogão,
nem microondas, tá miséria. A confiança, isso é
que precisa estar em pé, né?
Leandro
Eu combato esse tipo de
crime no bairro onde eu moro, tem mais essa, nas minhas horas de folga
pois tenho facilidade de informação e vou lá combater.
O policial, por lei, é policial 24 horas por dia. A criminalidade
cresce a cada dia...
Para os três, a casa
é um refúgio. É o espaço da confiança
para Denílson, onde ele não será assaltado, da tranqüilidade
para Anderson, onde não será vítima da criminalidade,
e do “trabalho de folga” para Leandro, quando, com as próprias mãos,
decide combater os bandidos de seu bairro. É então o espaço
em que se quebra com as tensões do mundo exterior. Não há
dúvida: mesmo uma rua protegida não é tão segura
quanto a própria casa– idéia recorrente em entrevistas sobre
o sonho da compra de um imóvel, compra-se a segurança e a
certeza do repouso.
“Em casa, portanto,
posso operar por meio de uma lógica de lealdades e amizades. Meu
território aqui [...] é do respeito e da fidelidade aos parentes,
compadres e amigos. A casa é o ninho de relações pessoais
e dos sistemas de troca de favores e informações que são
tão críticos no sistema brasileiro”.
A
comunidade
Anderson
Não,
[os seqüestradores] não eram [do meu bairro]. Eram de bairros
afastados, dava para ver pelo modo de eles falarem e de se vestirem. Aquele
vocabulário de marginal – eu já conhecia esse tipo de vocabulário,
pois estudei em colégio estadual. Tinha uma diferença social
gritante.
Eu
evito esse tipo de contato [com desconhecidos]. Não tenho esses
contatos no dia-a-dia, não me relaciono com pessoas se não
for da rotina. Só se for em um lugar em que tem bastante gente.
As
coisas vêm sendo cercadas, tudo está murado. Não tem
mais área de lazer que seja espaço público. A Paulista
é agradável, mas eu tenho medo de ir para lá. Tenho
medo mesmo.
Denílson
Na favela as pessoas não
têm nada, vive tudo em barraco pior que o meu e seria mancada tirar
deles. Nos bairros chiques que nem a Olímpia e aquele lá
do Shopping Ibirapuera tem de tudo, carrão, casão, um monte...
E o melhor é que eles não me conhecem e daí dá
para tirar um pedaço. De vez em quando...
Leandro
Nessas favelas onde tem
esses crimes que o traficante manda em tudo, em São Paulo mesmo,
o cara manda na favela inteira sendo você ou não do tráfico.
O traficante da favela que morava ali não mora mais, ele comanda
lá, ele manda lá. E a lei dele é a seguinte: desrespeitou,
morre.
Na comunidade, segundo Bourdieu,“la
moral del honor se opone, por sus mismos fundamentos, a una moral universal
y formal que afirme la igualdad en dignidad de todos los seres humanos,
y, en consecuencia, la identidad en derechos e deberes”
. Até mesmo o policial, supostamente orientado por regras formais,
oriundas de uma estrutura social mais ampla, o Estado, reconhece que, na
favela, as normas são particulares. Há uma apropriação
do poder público, como o da segurança, por exemplo, redefinidos
a partir dos anseios e das relações de poder de uma certa
comunidade.
Nesse
sentido, em comparação com a sociedade metropolitana central,
na periferia há uma relação muito mais próxima
entre as pessoas, tanto família quanto vizinhos. Também não
há esse medo dos desconhecidos que, por exemplo, tem Anderson. Ao
mesmo tempo, não há o grau de respeito e preocupação
às normas universais: sobre matar alguém, Denílson
parece mais preocupado na reação de sua mãe – que
ele acha que pode matá-lo por isso – do que nas conseqüências
legais.
As
regras de alguns se sobrepõem então às universais,
às de fora da comunidade. Como já foi destacado, isto não
ocorre porque os bairros de periferia estão totalmente desligados
da sociedade – pelo contrário, estão dentro e se estruturam
com base nela. Mas, nesse caso, em grau exponencialmente maior do que em
famílias de classe média, como a de Anderson e Leandro, a
idéia de grupo é mais importante para as classes populares.
Anteriormente, foi salientada a incompreensão de diversas pessoas
de baixa renda em relação à burocracia própria
à esfera estatal: há um bloqueio na extensão dos valores
formais para as comunidades periféricas. Parte disto deve-se à
falta de investimento em instituições públicas nessas
áreas escanteadas. Para muitos moradores da periferia, com a experiência
da repressão policial ou até de aprisionamentos,
“a ordem institucional
significa o meio pelo qual se é privado de liberdade, encarcerado,
significa perder a movimentação física e o sentido
do tempo, aprender a conviver na ambigüidade do puro sentido da sobrevivência.
E, sobretudo aprender a própria estratégia da violência
do dominador: de agora em diante qualquer que seja o lugar para se viver
(dentro ou fora da prisão), é neste mundo que a vida vai
se desenrolar. Está constituído o cidadão invertido,
aquele que tem absolutamente presente a ordem pública, como repressão” .
A crise econômica
Anderson
Você
vê gente batalhando, fazendo a luta de forma mais íntegra.
Embora haja problemas sociais, o que ocorre com os seqüestradores
é desvio de conduta.
Denílson
Eles são dos bairros
que têm as coisas e nós ficamos aqui na miséria e na
tristeza. Daí eles têm carrão do ano, relógio
de ouro, e nós com o despertador velho. Aqui falta de tudo, não
tem asfalto, não tem água boa, não tem hospital, nada.
A gente mesmo que faz as coisas e os caras lá de fora que não
fazem nada.
Leandro
Como ele tem esses gastos,
o policial tem duas opções: ele tem que trabalhar e está
numa profissão que escolheu e gosta, mas é mal compreendida,
paga mal...
O bico, na hora que ele
tem para descansar, é para arranjar um complemento, e ele tá
sujeito a tudo o que ele se sujeita durante o serviço. E é
na hora em que deveria estar com a família, no lazer, desfrutando.
Para Denílson, a sociedade
de mercado aparece como um ideal: é o que ele não tem e quer,
é o que o faz sair de sua casa, de sua comunidade. Há, nos
objetos que cita, uma promessa de felicidade que, com a situação
típica de marginalização e escanteamento social que
sofre, não acontece. É uma miragem que, tão logo obtida
e vendida para conseguir comida ou qualquer outra coisa de rápido
consumo, deixa de existir: são como valores que se impõem
à pobreza da periferia, mas que não trazem consigo a aproximação
social. Mesmo com um dinheiro rápido e fácil, a situação
não melhora no todo, a não ser em raras exceções
do crime organizado.
“Habitar em favelas representa
para a grande maioria viver em um ambiente sujeito a altos índices
de degradação e contaminação, haja vista o
destino dos dejetos, a baixa proporção de unidades habitacionais
ligadas à rede de esgoto, o grande número de aglomerados
à margem de córregos ou em áreas de acentuada declividade,
sujeitas a inundações e erosões”.
O desemprego surge como o
mais grave dos problemas, pois sem a renda que o trabalho traz os habitantes
de periferia estão condenados à miséria. Além
disso, por não conseguirem renda, eles também ficam condenados
à estagnação social: com pouca qualificação
e um nível mínimo de escolaridade, eles têm pouca vez
em uma sociedade que exige cada vez mais educação e especialização.
Ao mesmo tempo, o crime surge como uma forma de compensar esse ciclo infinito
de escanteamento: já foi destacado por Denílson, como realizar
um seqüestro-relâmpago se aproxima de fato a estar fazendo um
bico. Mesmo termo, aliás, usado por Leandro ao explicar como complementa
seu final de mês. Há, claramente, uma ligação
entre o trabalho informal e esporádico e a crescente criminalidade:
ambos decorrem, em parte ou no todo, da crise econômica.
Quinta
vez
A
cidade de São Paulo reflete as ordenações sociais
em direções características do país que ali
se aglutinaram e evoluíram para as condições hoje
observadas. Seu processo histórico foi paradigmático de um
modelo de desenvolvimento nacional que atraiu para si imensas quantidades
de capital e mão-de-obra e suas relações sociais acabaram
por refletir as opções e trajetórias de um país
desigual desde os tempos coloniais. Como uma cidade que hoje desponta para
a posição de “cidade global”, São Paulo escolheu também
formas modernas de organização que demonstram os caminhos
do capitalismo hoje unilateral e mundialmente homogêneo. Os desvios
e particularidades do processo histórico nacional hoje colidem com
conceitos internacionais na medida em que etapas foram suprimidas ou reprimidas,
o que determina que o conjunto formado padeça de uma unidade coerente,
sobretudo no tocante à cidadania. Uma cidade que hoje se divide
em muros que separam pessoas que muitas vezes convivem diariamente ou que
utiliza o artifício de espaços privatizados para sinalizar
a segregação evidente de seu dia a dia demonstra as opções
que o país tomou principalmente depois de seu período de
“redemocratização”.E os pobres são geralmente culpados,
como se leu na entrevista do policial, por serem pobres – o que vem a dizer:
os violentos. Essa lógica é a do permanente escanteamento:
quando o espoliado é ad eternum visto como o malfeitor, tratado
de vagabundo.
Por
crise econômica, falta de integração em valores universais,
a pessoa de baixa renda, como no caso de Denílson, encontra no crime
uma forma de conseguir – mesmo que rapidamente – os objetos que lhe aparecem
como símbolos de poder e status, o mercado de c dinheiro onsumo.
Como diz, o mundo fora de sua comunidade é o supermercado, o local
aonde se vai pegar os que têm carro e cartão de crédito
para ir sacar dinheiro, de banco em banco. Mas não é só
nele que falta a integração da cidadania, do interesse com
o outro: os três atores analisados, criminoso, vítima (?)
e policial, valorizam seu espaço fechado, protegido, sua falta de
contato. São zumbis: vagam desconhecidos, não respeitam a
ordem de personalização, fazem o que querem; são irreconhecidos,
pois são vistos de longe, sem precisão, apenas papéis
sociais... E assim vão indo, e desistindo das esferas públicas,
da atuação coletiva, fechando-se, murando-se, aterrorizando.
Como diz Leandro: a vítima precisa entender que, em São Paulo,
a disputa é entre os bandidos e os policiais. Ela está
de fora.
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