quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Correio Popular de Campinas, 07 de janeiro de 2009

Publicada em 7/1/2009


Gaza: uma reflexão

Roberto Romano

A batalha de Gaza mostra que não desapareceu a razão de Estado que brota do Inferno no século 17 e cujas raízes penetram as sombras das eras. O poder estatal promete a proteção da vida aos subordinados. Em troca, exige a sua morte. A barganha designa o “monopólio da força física”, sobre o qual muitos juristas tagarelam sem captar o seu tremendo sentido.

Com a moderna política, cada indivíduo só tem segurança se estiver integrado no corpo estatal. Em Hobbes, o cidadão perde o direito de seguir a sua consciência contra o Estado. A ficção do pacto diz que todos assumem a sujeição comum ao soberano. “A personalidade inteira do povo passa sem reserva alguma à do soberano, seja esta a personalidade física de um indivíduo, seja ela a personalidade artificial de uma assembleia. Só nesta última e por esta última o povo é pessoa, enquanto é apenas uma simples multidão sem ela e, portanto, não pode ser pensado como sujeito de qualquer direito diante do soberano” (Otto Gierke).

Hobbes traduziu a Guerra do Peloponeso e o episódio central nas teorias sobre a razão de Estado (Livro V, 84 ss). A ilha de Melos queria a neutralidade na luta entre as potências gregas. Os líderes de Atenas lhe impõem um interrogatório com o quesito único: Melos deve se entregar. Em Tucídides, discursos possuem sentido bélico, basta saber os intentos de quem os pratica. Hobbes utiliza a sua lição, pois é vital interpretar o desejo do oponente.

Os de Melos escutam a dura razão de Estado: “Não usaremos belas frases, não diremos que nosso domínio é justo (...) de sua parte, não digam que recusaram o nosso lado porque são colonos de Esparta ou porque lhes fizemos algum mal (...) sabemos e vocês sabem, tanto quanto nós, que a justiça só é levada em conta quando a necessidade é igual. Sempre que uns possuem mais força e podem usá-la como puderem, os mais fracos arrumam-se nestas condições, como podem”.

M. Walzer (Just and Unjust Wars: A Moral Argument with Historical Illustrations, New York: Basic Books, 2000) indica que ambas, Melos e Atenas, estavam sob o jugo da necessidade. A última devia aumentar o império ou perder terras dominadas. A neutralidade de Melos ergueria rebeliões contra Atenas. Para os Estados em guerra a lei é dominar ou submeter-se. Por necessidade de natureza (termo usado por Hobbes para descrever a guerra de todos contra todos) os coletivos precisam aumentar suas terras e poder. Melos prefere ser livre e insiste: a luta será vencida por Fortuna ou Força. “Em se tratando da Fortuna não seremos inferiores, pois temos os deuses de nosso lado, somos inocentes em luta contra homens injustos. Quanto à Força, o que nos falta será suprido por nossa liga com os espartanos os quais, por necessidade, são obrigados, por laços de sangue ou pela sua honra, a nos defender”.

Resposta ateniense: “Quanto ao favor divino, nós o esperamos como vocês (...) os deuses seguem a opinião comum e os homens pensam que alguns, por necessidade de natureza, reinam em toda parte, segundo a força que tiverem. Não fizemos tal lei e nem somos os primeiros a usá-la; mas a encontramos e a deixaremos para a posteridade, para sempre. Assim a usamos, sabendo que vocês também a usariam, e outros que tivessem o mesmo poder que possuímos”. Quanto aos espartanos, sem interesse próprio nada é feito por um povo em favor de outro. Melos não se rende, os atenienses atacam, Esparta não ajuda os sitiados. Em 416 A.C. a cidade é tomada. Os atenienses matam os homens em idade militar e vendem mulheres e crianças, povoam a ilha para onde remetem 500 colonos. Os termos usados por Tucídides e traduzidos por Hobbes, consistem nos mesmos que o Renascimento sublinha na luta pelo domínio e instauração do poder: força, necessidade, fortuna. Tais palavras se espalham em Maquiavel e nos seus contemporâneos. Hobbes as conhecia e as usou.

As batalhas de Gaza mostram que o mundo vive sob o signo de Hobbes, de Tucídides e Maquiavel. Resta identificar os interesses envolvidos. Quem decide? Os deuses, a força, o direito? A razão de Estado ensandeceu há muito tempo. Para decidir conflitos como o de Gaza, seria preciso ouvir o coração, cujas razões a fria razão desconhece.