quarta-feira, 22 de abril de 2009

Correio Popular de Campinas, 22/04/ 2009

Publicada em 22/4/2009


Os frutos da corrupção

Roberto Romano


Abro o livro de Jan-Werner Müller, Carl Schmitt in Post-War European Thought (Yale University Press, 2003). O texto analisa a voga atual do jurista autoritário. Longe de ficar restrita às hostes da direita, a importância de Schmitt se espalha nos ambientes da extrema esquerda e dos supostos “neutros” ideológicos. Como explicar o aplauso geral a um escritor unido ao pior pesadelo racista e antissemita da modernidade? Respostas foram dadas por Jean-Pierre Faye no magnífico Théorie du Récit. Este livro acaba de ser publicado no Brasil com o título de Introdução às linguagens totalitárias, teoria e transformação do relato (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2009).

Para entender o idioma político que surge num campo ideológico (a direita) e migra para outros setores, é vital o nível poético. Como enuncia Hegel, lembrado por Faye: “O conflito entre a forma de uma proposição em geral e a unidade destrutiva do conceito (der sie zerstörenden Einheit des Begriffs) é análogo ao que ocorre entre a métrica e o acento. O ritmo resulta do núcleo oscilante”. Faye busca entender o efeito de ‘tradução’, necessário para distinguir os níveis em que se move a política. Narrar a história, fazê-la, ambos os atos passam pela mudança formal. Faye remete a O Capital: “Devemos considerar, diz Marx, o processo completo no lado da forma, ou seja, apenas na mudança de forma, ou metamorfose da mercadoria, que mediatiza a mudança material na sociedade”. O vínculo entre alma e significante passa pelo artifício: “Roman Jakobson acertava, adianta Faye, quando dizia que a produção das ferramentas e o surgimento da linguagem (e o interdito do incesto) é um único processo, o do articulação dupla”. O efeito (Wirkung) discursivo textualiza as imagens e a luz que as carrega. “Quando Marx analisa o aparecimento dos quanta de valor, os Wertquanta, precisando que eles se produzem como uma linguagem, wie eine Sprache, abre (...) as possibilidades de um exame teórico das relações entre os corpos sociais e suas emissões” (Théorie du récit. Na edição brasileira, p. 33; cf. Roberto Romano, "Diderot, Penélope da Revolução", Revista USP: www.usp.br/revistausp/01/03-romano.pdf).

Seguindo-se conceitos de origem marxista, rearticulados por Faye, transparece o itinerário que vai de Schmitt às forças terroristas, cuja última ratio na Itália e na Alemanha (nos anos 60 e 70 do século 20) incluía sequestro, assassinato, bombas jogadas contra o público. A “tradução” poética da crítica schmittiana ao liberalismo e ao Parlamento, efetuada pelo terror da esquerda, segue o desencanto face às instituições representativas. Desconfiança idêntica partilha o fascismo diante do Legislativo e do Judiciário.

Ao discutir o fascismo e a esquerda, Müller indica que para eles os parlamentos seriam o meio eficiente de afastar as massas do poder. Só a oposição econômica restaria nos Legislativos, pois mesmo “os partidos socialistas foram integrados à oligarquia. E os partidos se envolveram num cartel que se fundiu com o Estado. “A representação no Parlamento era o melhor meio de repressão”. (Müller, p. 172).

Cito o parágrafo seguinte de Müller: “A instituição do Parlamento se tornou amplamente corrupta. O que Hans Kelsen chamara ‘a ficção da representação’ assegura que não o povo, mas o Estado se representava no Parlamento. Poder Legislativo e Executivo se fundem, o parlamento serve como correia de transmissão entre a oligarquia e o povo.”. Os “representantes” traduzem a vontade oligárquica aos supostos soberanos populares.

Quem segue a farra desavergonhada e ignóbil de senadores e deputados brasileiros, aprecia o pensamento de Faye, de Müller e de outros analistas atentos à dominação discursiva que inferniza a modernidade. Detalhe: a tradução terrorista de Schmitt surge quando a impotência cidadã face aos “representantes” passa ao desespero. Quem raciocina com prudência, visualiza os frutos amargos que brotam da corrupção política.