sexta-feira, 17 de julho de 2009

A Concordata, o Vaticano e o Brasil de Lulla.

Acordo com o Vaticano é contra o Estado laico, diz deputado

O deputado Ivan Valente (Psol-SP) disse há pouco que o acordo que cria o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil é um acordo religioso, que não está de acordo com o Estado laico. A Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional discute neste momento o acordo, que foi assinado no ano passado pelo Brasil e pelo Vaticano.
“A laicidade [do Estado brasileiro] entra em contradição com esse tipo de questão. O nosso voto prima pela lógica de que o Estado brasileiro é democrático e fomenta a liberdade religiosa, inclusive no que se refere ao direito de crer ou de não crer”, disse Ivan Valente, que apresentou voto em separado contrário ao acordo.

O relator da matéria, deputado Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), respondeu que outros Estados laicos também firmaram acordos com instituições religiosas.

VOTO EM SEPARADO DO DEPUTADO IVAN VALENTE.

Através da Mensagem nº 134, de 2009, instruída com exposição de motivos firmada pelo Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores o Excelentíssimo Senhor Presidente da República submete à apreciação do Congresso Nacional o texto do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil.
O Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, ora em análise, foi assinado na Cidade-Estado do Vaticano em 13 de novembro de 2008, e tem como objetivo consolidar em um único instrumento jurídico os diversos aspectos envolvidos na relação entre o Estado brasileiro e a Santa Sé e, também, da presença da Igreja Católica no Brasil.

No preâmbulo do Acordo encontram-se assentados os fundamentos de sua celebração a qual, conforme ele próprio estabelece, nasce dos seguintes pressupostos:

- reconhecimento, das relações históricas entre a Igreja Católica e o Brasil e suas respectivas responsabilidades a serviço da sociedade e do bem integral da pessoa humana;
- reconhecimento de que a Santa Sé é a suprema autoridade da Igreja Católica, regida pelo Direito Canônico;
- reconhecimento de que ambas as partes contratantes são, cada uma na própria ordem, autônomas, independentes e soberanas e cooperam para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e fraterna;
- validade, vigência e aplicabilidade, servindo como base jurídica para sua respectiva atuação, de um lado, os documentos do Concílio Vaticano II e o Código de Direito Canônico, que estrutura a Santa Sé e, de outro lado, o ordenamento jurídico interno, com relação à República Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico;
- reafirmação à adesão ao princípio da liberdade religiosa, internacionalmente reconhecido;
- reconhecimento de que a Constituição brasileira garante o livre exercício dos cultos religiosos; e
- intenção das Partes de fortalecer e incentivar as mútuas relações já existentes;

Sem adentrarmos na especificação dos diversos artigos componentes do dito Acordo, passamos à avaliação de alguns pontos, que julgamos essencial sejam trazidos à discussão, eis que a nosso ver constituem verdadeiro retrocesso nas relações entre Estado e Religião nos limites fixados pela vigente Constituição. Convém, então, registrar desde logo, que a nosso ver a proposta não está condizente com o princípio da laicidade do Estado brasileiro, princípio este que se constitui em real avanço da sociedade em relação ao Estado.

Questões tratadas pelo Acordo, o qual possui características jurídicas discutíveis se analisado à luz do ordenamento pátrio, como por exemplo, sua condição de ser firmado com um Estado Teocrático de natureza sui generis, trazem de volta à discussão perante a sociedade brasileira questão superada há mais de cem anos, qual seja a separação do entre a religião e o Estado, uma vez que não há dúvidas que o Acordo independente do formato, tem natureza de acordo religioso. Nesta linha, consideramos que outros aspectos estão a merecer reflexão do ponto de vista de estarem consoantes com o nosso ordenamento jurídico eis que este ordenamento não se fez sem a participação de diversos setores da nossa sociedade. Para ilustrar a afirmação, basta uma simples avaliação no conteúdo dos artigos da proposta que tratam, por exemplo, de questões trabalhistas com óbvios reflexos na Seguridade Social que são patrimônio de toda a sociedade brasileira, inclusive daqueles que não professam qualquer espécie de religião, ou ainda, de artigo que trata de imunidade tributária, estendendo-a para além dos templos e das atividades inerentes ao exercício da religião. Da mesma forma que tal situação afeta toda a sociedade, é necessário registrarmos ainda, outro dispositivo que de forma absolutamente absurda prevê uma espécie de reserva legal de áreas públicas a serem destinadas às atividades religiosas ou templos.

É de se registrar, por absolutamente pertinente, que uma vez ratificado tal instrumento entre os Estados, este adquire status de legislação nacional sendo incluído no ordenamento pátrio. Eis aí, neste ponto, um dos problemas postos à discussão, que diz respeito à sua revisão e complementação.

Poderíamos, desta forma, elencar um sem número de situações que estão a merecer uma avaliação mais aprofundada das Comissões Especializadas desta Casa. Neste sentido, apresentamos e foi deferido requerimento determinando a tramitação da proposta pela Comissão de Trabalho e pela Comissão de Educação, eis que, a nosso ver, algumas das questões previstas no Acordo necessitam de avaliação mais aprofundada sem prejuízo da sua avaliação quanto à consonância com o ordenamento jurídico a ser efetuada pela Comissão de Constituição e Justiça. Cabe, entretanto, com a finalidade de não permitir interpretações equivocadas a respeito de tal providência antes efetivada, que o móvel a justificá-la foi tão somente a de permitir que o instrumento do Acordo seja analisado com a profundidade necessária a não permitir a restrição de direitos tão duramente conquistados pela sociedade brasileira, independentemente de qualquer credo ou profissão religiosa.
Outro aspecto que merece discussão bastante aprofundada em função dos desdobramentos possíveis e de sua influência sobre a formação da nossa sociedade, diz respeito ao ensino religioso que, evidentemente, não pode ser visto, analisado ou ainda, implementado, sob a ótica de apenas uma das confissões religiosas, não sendo razoável, em nenhuma hipótese, que questão tão importante como a formação educacional do nosso povo seja tratada no corpo do Acordo, como se vê no artigo 11 e, menos ainda, que ainda que tal hipótese fosse admitida, se faça tal regulação para outras confissões religiosas. Não relevar a pluralidade religiosa de nosso povo e a diversidade das raízes que formam nossa ímpar sociedade é relegar a segundo plano a cultura e a religiosidade de parcelas imensas da população.
Apenas para ilustrar o alcance de tal Acordo e sem a intenção outra que não a de estabelecer o debate, trazemos à avaliação um dos argumentos utilizados pelo nobre Relator da matéria nesta Comissão para fundamentar seu voto pela aprovação:

“O Acordo é assim, indireta ou implicitamente, um conjunto de normas que vai oferecer idênticas garantias a todos os credos, às igrejas evangélicas, aos movimentos espíritas e espiritualistas, aos ramos religiosos mulçumanos, às organizações judaicas e israelitas, aos budistas, aos xintoístas, aos confuncionistas, às diferentes tradições afro-brasileiras e até às práticas religiosas que possam existir em frações indígenas do país.”

Não há dúvidas que na avaliação do nobre Relator o Acordo tem natureza religiosa o que demonstra com absoluta clareza sua característica intrínseca, e que tal característica é repudiada pelo nosso ordenamento constitucional haja vista que o laicidade do Estado é um dos dispositivos fundantes da nossa Constituição e, ainda que com óbvias contrariedades de alguns setores foi este princípio erigido à garantia de direito da cidadania.

Ainda que dúvidas pudesse haver quanto ao caráter de fundamento religioso do Acordo, a posição expressa pelo nobre Relator para fundamentar sua aprovação, nos leva a não ter dúvidas deste caráter e, por força dos mandamentos constitucionais concluir exatamente pela contrariedade de seu conteúdo em face do ordenamento jurídico nacional, o qual aliás, nunca é demais repetir, neste aspecto consolidou tal posição há mais de cem anos. Considera o nobre Relator:

O acordo do Brasil com a Santa Sé é um tipo de aliança jurídico-religiosa de ordem internacional que encontra exemplo em diversos continentes em nossa época. Em anexo a este Parecer, juntamos um documento com uma lista de vários acordos e concordatas de diversas nações.

Poderíamos desta forma e em outros aspectos do dito Acordo que atinge ainda questões pretéritas como a tratada em seu artigo 20 sobre a assistência religiosa às Forças Armadas, ou ainda a questão relativa ao reconhecimento de sentenças, questionar diversos dos seus dispositivos. Porém, temos a convicção que tais dispositivos de constitucionalidade, a nosso ver duvidosa, serão profundamente analisados do ponto de vista de sua constitucionalidade pela Comissão de Constituição e Justiça, que por determinação regimental possui competência para tanto.

Assim, ainda que respeitando as convicções e opções religiosas de todos aqueles que apóiam a presente proposta e tendo a absoluta clareza de que a principal forma de garantir a liberdade de exercício religioso, assim como outras liberdades essenciais ao ser humano, é garantindo que o Estado nacional mantenha seu caráter laico, não vemos como prosperar tal proposta, sem que sejam feridos preceitos constitucionais tão duramente conquistados pelo povo brasileiro. Votamos desta forma, pela rejeição da Mensagem 134/2009, por esta Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional.

Sala das Comissões, em

Deputado IVAN VALENTE
PSOL/SP

Fonte: Portal da Câmara Federal