terça-feira, 1 de setembro de 2009

Correio Popular de Campinas, 2/9/2009

Publicada em 2/9/2009


Decisão atroz do STF



Roberto Romano

O STF decidiu em favor de Palocci. Nenhuma surpresa no caso. O estupro dos direitos supostamente garantidos aos pobres foi novamente consumado. Doravante a ilusão de justiça desaparece, de vez, para os caseiros e humildes. Quem deseja atenção dos ouvidos e olhos magistrais deve conseguir, primeiro, mandato e fortuna. O resto é silêncio. Eis como finalizei, em Porto Alegre, uma palestra sobre a Constituição solicitada pelo Unafisco, hoje no centro de tristes fatos que envolvem a Receita Federal, também vítima de estupro político. Poderíamos, disse eu, recitar muitos casos que mostram a cumplicidade de juízes com sistemas iníquos de poder. As ditaduras que nos desgraçaram no século 20 tiveram sustento em propaganda, força física, auxílio de muitos magistrados, causídicos, constitucionalistas. Com o retorno ao mando civil e advinda a Constituição cidadã, milhares de pessoas no Brasil passam por torturas, escravidão, sequestros de seus bens por planos econômicos que são verdadeiros golpes de Estado brancos, e não encontram abrigo em togas que deveriam servir para protegê-las.

Entre as muitas lutas a serem iniciadas ou repetidas, afirmei, os cidadãos devem exigir que o STF seja ocupado por magistrados de carreira, sem nenhuma indicação da presidência da República, cumprindo a plena autonomia entre os três poderes. Depois do julgamento histórico do STF, as causas dessa batalha são mais do que óbvias.

Dominique Rousseau, professor de direito constitucional na Universidade de Montpellier (França), analisa o papel do juiz e aponta a presença dos magistrados em tarefas que antes não eram usuais, como é o caso da Operação Mãos Limpas. Assistimos, diz ele, o declínio de instituições que até agora exerciam um papel de contra-poder, de controle, de sanção, tanto no domínio político quanto no econômico e civil. A filosofia política fora edificada, argumenta, sobre um buraco negro relativo ao terceiro poder. Montesquieu, que teoriza a separação dos poderes, dizia que “a potência do juiz é nula”. O aumento do poder dos juízes mostra que tal idéia é falsa. O poder dos juízes coloca interrogações sobre o paradigma democrático, cujo fundamento é o voto, finaliza o professor francês.

O que Dominique Rousseau descreve em poucas palavras pode ser uma saudável interferência dos magistrados na ordem pública. Mas quando ele relativiza a democracia eletiva em favor do controle judicial da coisa pública, sem que exista passagem pelo voto, é possível temer pelo futuro. Uma tirania, apenas porque é sapiente e togada, não é menos letífera do que as demais. É importante que os juízes deixem uma posição distante face aos problemas da república. Eles integram a essência mesma do Estado e não lhes cabe o afastamento. Mas disto não se pode inferir, sem muitas controvérsias e análises, que eles tem legitimidade para se imiscuir, sem votos e sem prestar contas ao povo, do que é entregue ao múnus dos demais poderes. Tal situação seria típica das ilegitimidades ex defectu tituli. E tal status se agravaria, ademais, com o exercício ilegítimo.

Com os exemplos do passado e do que assistimos no Brasil temos muitas e ponderáveis razões para exigir que o poder dos juízes receba fortes contrapesos dos demais poderes e, sobretudo, que eles sejam obrigados a prestar contas ao povo soberano, que nos textos jurídicos e nos discursos judiciários é dito “leigo”. Ainda vivemos, infelizmente, no mundo hierarquizado de Dionisio Areopagita. Nele, o cosmos natural e político vai dos seres mais próximos do divino, anjos e arcanjos e deles aos sacerdotes. Abaixo dos quais vive o “laós”, composto pelos mortais comuns que só merecem receber lições e governo. Esta escala sagrada foi destruída por Lutero e pelas Revoluções inglesa (século 17), norte-americana e francesa. Parece que em muitos setores do Estado brasileiro, em especial no Judiciário, ainda estamos muito longe da Reforma e da moderna democracia. Nosso regime é tirânico (“tirano é quem usa os bens do governado como se fossem seus”, Jean Bodin). E nossos juízes pouco ajudam para atenuar o desastre.