segunda-feira, 4 de abril de 2011

Gazeta do Povo.

Entrevista

Ideal fascista está sendo retomado, alerta filósofo

Roberto Romano, professor de Ética e Ciência Política da Unicamp

Publicado em 21/11/2010 | Rogerio Waldrigues Galindo

Um velho espectro político volta a rondar o mundo ocidental, com riscos inclusive ao Brasil. E seu nome é fascismo. O alerta é do filósofo e professor de Ética e Ciência Política Roberto Romano, da Unicamp. Ele vê na atualidade o renascer de uma preocupante onda de interesse acadêmico por obras de intelectuais que ajudaram a construir a base teórica dos Estados totalitários surgidos na Alemanha e na Itália no período entre as duas Guerras Mundiais.

O ponto principal de preocupação de Romano é o interesse renovado pela obra do jurista e filósofo Carl Schmitt. Autor “maldito” durante muito tempo por defender a ditadura como melhor forma de governo, o teórico alemão começa a ser revisto em universidades. A intenção seria aproveitar algumas ideias dele, jogando “a parte podre fora”. Para Roberto Romano, porém, isso é inviável.

Glossário

Confira alguns termos-chave no pensamento do filósofo Roberto Romano:

Nazismo

Surgiu na Alemanha depois da I Guerra Mundial, da qual o país saiu arrasado. Numa crise financeira sem precedentes, o líder do partido nazista, Adolf Hitler, foi visto por muitos alemães como uma solução radical para o caos. No poder, Hitler implantou uma ditadura, que pregava a superioridade racial dos arianos e a morte dos inimigos.

Fascismo

Regime totalitário surgido na Itália, entre a I e a II Guerra, que defende a subordinação do povo a um líder, a disciplina como comportamento e a ditadura. O termo fascismo serve hoje para designar hoje uma série de governos com o mesmo perfil.

Liberalismo

Sistema político baseado na defesa das garantias individuais e na existência de um Estado de Direito, em que a lei é igual para todos, com destaque para a ideia de Constituição, que limita o poder do soberano e do próprio povo.

Marxismo

Ideário baseado nos escritos de Karl Marx, filósofo e economista alemão que, no século 19, defendeu a criação de um Estado forte que fosse capaz de impedir a desigualdade entre os homens. Pressupunha a instalação de uma ditadura do proletariado, da proibição da propriedade privada e da distribuição de renda por meio da intervenção estatal. Resultou no comunismo.

Carl Schmitt

Jurista e filósofo alemão (1888-1985), autor de obras que deram base ao governo nazista na Alemanha. A teoria de Schmitt previa um governo forte, ditatorial, em que o líder fosse capaz de, a todo momento, optar por caminhos não previstos pela lei. Para ele, a política estava acima do Direito, e o chefe de Estado não poderia, para ser eficiente, ser limitado por uma Constituição.

Segundo ele, em boa parte dos casos, os defensores de Schmitt surgem de “órfãos de Marx e do stalinismo” – ainda interessados em derrotar o liberalismo.

Romano diz ainda que o temor com o renascimento dessas ideias é ainda maior diante do clima de irracionalismo criado por alguns fanáticos religiosos, da alta taxa de desemprego, do enfraquecimento dos Estados nacionais e da violência social do mundo atual. Ele afirma também que a visão do adversário político como inimigo a ser derrotado, perigosamente inserida na campanha presidencial brasileira deste ano, é uma amostra do risco do renascimento de radicalismos totalitários no país.

O senhor afirma que há um renascimento do interesse pelo pensamento nazista no mundo. De onde vem esse interesse?

Da perda dos paradigmas éticos e políticos que nortearam os séculos 19 e 20. Com o enfraquecimento do liberalismo no início do século 20, surgiram propostas de ordenamento da sociedade com maior ênfase nos coletivos, e não tanto nos indivíduos e grupos. A sociologia romântica acentuou os laços comunitários contra a vida urbana e industrial, com seu “Estado máquina” [nazifascista]. Essa sociologia é um dos muitos pontos que ajudaram a edificar, nos estratos mais reacionários, uma ideia de coesão e disciplina vertical. E, nesta ideia, a vontade seria a diretriz, não a racionalidade.

De modo geral, [György] Lukacs [pensador marxista húngaro] descreveu a mudança de modelos, do racional para o irracional. Ele mesmo, como discípulo de [Max] Weber [alemão, considerado o pai da sociologia], havia procurado uma saída para a ordem mecânica e burocrática do mundo moderno. Encontrou na revolução proletária internacional. Na outra ala dos seguidores de Weber, na sua direita, encontravam-se sociólogos e juristas reacionários como Carl Schmitt. Schmitt, que também criticava as formas mecânicas e liberais, serviu momentaneamente aos nazistas.

Nos anos 70 do século 20, pensadores que, na esteira da crítica à União Soviética deixaram de aceitar pressupostos do pensamento marxista, passaram a ver nos escritos de Carl Schmitt um instrumento para continuar a recusa do liberalismo. Órfãos de Marx e do stalinismo, eles acentuam a resistência às formas liberais do Estado, sem no entanto acreditar mais numa “revolução proletária internacional”. Esses escritores ajudam a estabelecer o relativismo, a corrosão dos padrões éticos e se colocam como geradores do éter de ideias que paira sobre os movimentos nazifascistas. É preciso lembrar que esses movimentos jamais deixaram de existir na Alemanha, na Europa, no mundo. Os demais, não saídos do campo marxista, partilham os mais variados matizes do pensamento conservador ou francamente reacionário, não aceitam as luzes, a democracia, etc. Estes últimos são os que mais gasolina injetam nos movimentos irracionalistas e fascistas que hoje se apresentam na cena mundial.

Quais são os indícios desse novo interesse por esse pensamento?

Obras de autores como Schmitt são editadas na Europa, na Ásia, nos EUA, na América do Sul. Seminários, publicações jurídicas ou supostamente filosóficas se espalham, sempre com o mote de, inicialmente, livrar Schmitt e seus pares da “pecha” de nazistas. Teses universitárias surgem, e tomam como dados inquestionáveis os dogmas do decisionismo político e jurídico; as teses sobre a política como exercício da inimizade; os “desvios” da modernidade no pensamento liberal e socialista democrático, etc.

O que pregam esses intelectuais?

Pregam o afastamento imediato das mediações jurídicas e políticas liberais e o reforço do poder decisório dos líderes que movem o Executivo. Em suma, pregam a ditadura do Poder Executivo nas matérias estratégicas dos países, em detrimento do Legislativo e do Judiciário.

O senhor afirma que os intelectuais que tentam fazer um “renascimento” da obra de Carl Schmitt tentam separar o resto de sua obra, evitando a defesa da ditadura, por exemplo. Isso é possível?

Não. Mesmo autores irracionalistas escrevem textos que se caracterizam como um todo. Impossível arrancar do decisionismo schmittiano a sua atribuição ao chefe de Estado de poderes ditatoriais.

Qual o risco real de um grupo de intelectuais defenderem ideais como os que levaram à ditadura de Hitler na sociedade atual?

Embora a conjuntura seja outra, e não exista mais a bipolaridade geopolítica entre comunismo e nazifascismo, a crise que gerou naquela época os movimentos totalitários se apresenta agora, em outra face, mas tão corrosiva quanto nos anos 20 do século passado, no campo dos valores, das instituições, das ciências. Massas sem emprego, desindustrialização comandada e em proveito do capital financeiro, corrosão dos Estados, violência social, preconceitos, fanatismos, irracionalismo religioso sectário, todos elementos são férteis sementeiras de ódio. E permitem pensar e agir na política como se ela fosse uma guerra civil, não como uma instância de diálogo e cooperação entre cidadãos que discordam mas buscam o bem coletivo. No fascismo, o “bom coletivo” é o meu. Os demais devem ser derrotados e expulsos da cena pública e, mesmo, da vida.

Esse interesse existe também no Brasil? Onde?

Em nossas universidades existem muitos pesquisadores e professores que apresentam o pensamento de Schmitt como algo “neutro”, que não traria nenhum perigo para a ordem democrática. Sou contra escritores como Yves-Charles Zarka, um mestre do pensamento filosófico e político atualmente, que recomenda retirar os textos de Schmitt das prateleiras, em livrarias e bibliotecas. Creio ser preciso ler aquele autor, e todos os autores relevantes na história de nosso tempo. Mas uma coisa é ler; outra é aceitar e espalhar as doutrinas genocidas.

Agora, pensemos um pouco sobre a última campanha eleitoral para a Presidência – com os insultos, os ataques de lado a lado, a redução dos concorrentes a inimigos – para perceber os possíveis frutos da corrosão nos movimentos políticos, se eles aceitarem a tese de que o outro deve ser aniquilado. É bom recordar que, em nosso caso, todos os partidos que lideraram as campanhas saíram da esquerda, sendo notával a ausência, nelas, de elementos conservadores. Neste vácuo, a pregação fascista (intolerante, racista a pretexto de ser regionalista) toma fôlego, à espera de seu momento certo.

A tensão étnica e religiosa que ressurge na Europa, especialmente com o crescimento do Islã, tem a ver com esse pensamento?

Sim. O Islã é visto como o inimigo, na ausência do comunismo. Mas o inimigo pode ser qualquer religião, ideologia, partido político. A redução da política à dimensão de uma guerra gera apenas a fratura no social e no Estado.

Como combater esse tipo de ideal que vem ressurgindo?

A única forma de combater eficazmente o fortalecimento fascista é viver a democracia, mesmo com todos os seus defeitos. Qualquer apelo ao voluntarismo, à radicalização das próprias teses em detrimento da voz alheia, da redução dos que pensam diferente ao estatuto de inimigo, resultam em favor dos que consideram impossível o convívio democrático respeitoso, nos parâmetros dos direitos humanos. A única fórmula para combater o fascismo, em pensamento e atos, é viver e valorizar a democracia.