Os labirintos do capital
Data de Publicação:
31/08/2012
Data de Publicação:
31/08/2012
Jornal Valor Econômico, 31 de agosto de 2012.
CULTURA & ESTILO
Os labirintos do capital
Por Luiz Gonzaga Belluzzo | Para o Valor, de São Paulo
No dia 11 de julho de 1856, o "New York Tribune" publicou o terceiro
artigo de Marx sobre o Crédit Mobilier. Sob os auspícios de Napoleão
III, o banco de investimento empreendido pelos irmãos Pereire, Emile e
Isaac, tinha o propósito de "concentrar grandes somas de capital de
empréstimo para investimento em empresas industriais".
Depois de ironias e sarcasmos lançados sobre o "socialismo imperial"
de Luís Napoleão e das habituais estocadas nas concepções reformistas de
Saint Simon e discípulos, Marx reconhece que as transformações da
finança capitalista e o surgimento da sociedade por ações, sobretudo da
sociedade anônima, "marcam uma nova época na vida econômica das nações
modernas".
Os bancos comerciais, diz ele, "fluidificam temporariamente o capital
fixo", enquanto os bancos de investimento cuidam de "fixar o capital
líquido" em estruturas empresariais cada vez maiores e de administração
mais complexa. Marx conclui: "Quase todas as crises comerciais dos
tempos modernos estão relacionadas com o desarranjo nas proporções entre
o capital fixo e o "floating capital" (os títulos de dívida e de
propriedade negociados diariamente nas Bolsas de Valores e nos demais
mercados secundários).
A série de artigos sobre o Crédit Mobilier foi estampada nas páginas
do "New York Tribune" no período em que Marx trabalhava nos chamados
"Borradores" ("Grundrisse") e dez anos antes da publicação do primeiro
volume de "O Capital". Quatro décadas iriam transcorrer entre as
primeiras e pontuais investigações de Marx sobre as peripécias do
capital financeiro e o esforço de Engels para completar os alfarrábios
do terceiro volume, publicado em 1894.
Marx adverte, na abertura do Livro III de "O Capital", que até então,
nos Livros I e II, o processo capitalista de produção foi considerado
em seu conjunto, representando a unidade do processo de produção e de
circulação. "Aqui no livro III, não se trata de formular reflexões
gerais sobre essa unidade, senão, ao contrário, de descobrir e expor as
formas concretas que brotam do movimento do capital considerado como um
todo. Em seu movimento real, os capitais se enfrentam sob essas formas
concretas... As manifestações do capital se aproximam, pois,
gradualmente da forma sob a qual se apresentam na superfície da
sociedade, mediante a ação recíproca dos diversos capitais que se
enfrentam na concorrência e tal como (essas manifestações) se refletem
na consciência habitual dos agentes de produção." Marx procura articular
teoricamente essas formas de modo a demonstrar como o capital, no
exercício de sua natureza expansionista, rompe continuamente as
limitações do seu processo mais geral e "elementar" de circulação e
reprodução. O capital precisa existir permanentemente de forma "livre" e
líquida e, ao mesmo tempo, crescentemente centralizada, para
revolucionar periodicamente a base técnica, submeter massas crescentes
de força de trabalho a seu domínio e criar novos mercados. Apenas dessa
maneira pode fluir para colher novas oportunidades de lucro e,
concomitantemente, reforçar o poder do capital industrial e mercantil
imobilizado nos circuitos prévios de acumulação. Daí as análises da
concorrência, do crédito e, portanto, do processo de concentração e
centralização do capital se constituírem na parte mais rica e
substantiva da investigação marxista sobre a dinâmica do sistema
capitalista e suas metamorfoses.
Uma leitura cuidadosa dos "Grundrisse" e dos três volumes de "O
Capital" permite compreender que o dinheiro transformado em capital -
origem e finalidade da circulação e da produção capitalistas
(Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro) - não só exige a submissão real da força
de trabalho ao domínio das forças produtivas como também impõe aos
trabalhadores (e aos proprietários do valor-capital) os ditames da
acumulação de riqueza abstrata. A acumulação de mais dinheiro mediante o
uso do dinheiro para capturar mais valor sob a forma monetária suscita a
transfiguração das formas de expansão do valor, isto é, impõe o
predomínio das formas "desenvolvidas": o capital a juros, o dinheiro de
crédito e o capital fictício. Nessas formas, o dinheiro-capital realiza o
seu conceito de valor que se valoriza e tenta continuamente romper os
seus próprios limites ao buscar o acrescentamento do valor sem a
mediação da mercadoria força de trabalho. "D-M-D" se converte em "D-D".
Na (re) constituição teórica do modo capitalista de produção, o
dinheiro, enquanto substantivação do valor e objetivo do processo de
valorização, assume a forma de dinheiro de crédito. As determinações
mercantis e capitalistas do modo de produção não são distorcidas, mas,
ao contrário, alcançam o ápice de seu desenvolvimento quando são
introduzidos o capital a juros e o dinheiro bancário. O sistema de
crédito é a forma mais adequada para cumprir as determinações do
dinheiro: ele "aperfeiçoa" a execução das funções monetárias no
capitalismo e constitui uma esfera de "valorização" em que o capital
monetário ensaia estabelecer uma relação consigo mesmo, "D-D". Aqui, o
dinheiro realiza o seu conceito de substantivação do valor e de forma
universal da riqueza. O movimento de abstração real e o fetichismo
chegam ao estágio supremo. "O crédito, que também é uma forma social da
riqueza, substitui o dinheiro (metálico) e usurpa o lugar que lhe
correspondia. A confiança no caráter social da produção faz a forma
dinheiro dos produtos algo destinado a desaparecer...Ao se desenvolver o
sistema de crédito, a produção capitalista tende a suprimir
continuamente o limite metálico-material e fantástico da riqueza e de
seu movimento - mas quebrando seguidamente sua cabeça contra ele."
Ao concentrar capital monetário, os bancos ganharam a prerrogativa de
emitir notas que abastecem a circulação monetária. Com a evolução do
sistema de crédito, os passivos bancários mudam de forma: a emissão de
notas é substituída por depósitos à vista que podem ser mobilizados por
seus titulares como meios de pagamento. "Se B deposita no banco o
dinheiro recebido de A e o banqueiro entrega esse dinheiro a C como
desconto de uma letra, C faz uma compra a D e este deposita no banco,
que por sua vez empresta a E, que compra de F, teremos que o ritmo (da
criação monetária) como meio de circulação se opera mediante várias
operações de crédito." ("O Capital", vol. III, pag 489).
O "salto" no potencial de acumulação promovido pelas formas
financeiras engendra a criação de modalidades de negócios e de
enriquecimento que pretendem se tornar independentes das leis da
produção de mais-valia e das normas de reprodução e acumulação do
capital produtivo. A concentração da riqueza líquida nos bancos e demais
instituições financeiras enseja o adiantamento de recursos livres e
líquidos para sancionar a aposta do capitalista em funções que resolveu
colocar o seu estoque de capital em operação, contratando trabalhadores e
adquirindo meios de produção. Concomitantemente, o movimento de
expansão do valor, ao ampliar as relações de débito e crédito, "cria" o
circuito de negociação de valores - títulos de dívida e direitos de
propriedade. A avaliação e negociação dos direitos de propriedade e de
dívidas abre espaço para episódios especulativos.
O capital a juros patrocina a valorização "fictícia" da riqueza, o
que acentua e acelera as tendências da economia capitalista para
deflagrar crises de superacumulação e de crédito, provocando com
violência a continuidade do processo de "expropriação dos
expropriadores" e de destruição de valor na esfera produtiva e
financeira. A "reunião do que não deveria estar separado" impõe o
"retorno" aos fundamentos, o que se efetua mediante a desvalorização dos
títulos que representam direitos à apropriação da renda futura e do
patrimônio: títulos de dívida e de propriedade, mercadorias não vendidas
e sem valor, capacidade produtiva excedente. Nas crises, fica
demonstrado que não é possível preservar o capital em funções [capital
produtivo] das escaladas de valorização da riqueza capitalista na esfera
financeira.
As relações entre a "economia real" e a economia monetário-financeira
não são de exterioridade, mas nascem das formas necessárias assumidas
pelo capital em seu movimento de expansão e transformação permanentes.
Aí estão inscritas a concentração e centralização do controle do capital
líquido em instituições de grande porte e cada vez mais
interdependentes. O circuito "D-D" nasce das tendências centrais do
regime do capital: um processo necessário e inexorável, porque a
acumulação capitalista é acumulação de riqueza abstrata e, ao mesmo
tempo, um movimento de abstração real que transfigura o dinheiro, a
encarnação substantivada do valor e da riqueza, nas formas
"desenvolvidas" do dinheiro de crédito, do capital a juros e do capital
fictício.
Não há oposição entre as formas - capital produtivo versus capital
financeiro - mas um desenvolvimento contraditório. Por isso, o capital
financeiro, em seu movimento de valorização, tende a arrastar o capital
em funções para o frenesi especulativo, a criação contábil de capital
fictício. A chamada desregulamentação financeira mostrou de forma cabal
como a "natureza" intrinsecamente especulativa do capital fictício se
apoderou da gestão empresarial, impondo práticas destinadas a aumentar a
participação dos ativos financeiros na composição do patrimônio, inflar
o valor desses ativos e conferir maior poder aos acionistas.
Particularmente significativas são as implicações da "nova finança"
sobre a governança corporativa. A dominância da "criação de valor" na
esfera financeira expressa o poder do acionista, agora reforçado pela
nova modalidade de remuneração dos administradores, efetivada mediante o
exercício de opções de compra das ações da empresa.
A "geração de valor" para os acionistas acirra a concorrência entre
as empresas na busca de ganhos especulativos de curto prazo, enquanto a
liquidez dos mercados permite a constante reestruturação das carteiras
pelos administradores dos fundos financeiros "coletivizados". No sistema
de crédito, os prestamistas finais disponibilizam - através dos bancos
comerciais e demais intermediários financeiros - recursos destinados ao
conjunto da classe capitalista, para um empreendimento que eles não
sabem qual é. Entregam aos especialistas das finanças a administração de
suas "poupanças" e dependem de seus critérios para a obtenção de
rendimentos.
No último ciclo de exuberância financeira, que culminou na crise de
2008, foi ampla e irrestrita a utilização das técnicas de alavancagem
com o propósito de elevar os rendimentos das carteiras em um ambiente de
taxas de juros reduzidas. Isso favoreceu a concentração da massa de
ativos mobiliários em um número reduzido de instituições financeiras
grandes demais para falir. Os administradores dessas instituições
ganharam poder na definição de estratégias de utilização das "poupanças"
das famílias e dos lucros acumulados pelas empresas, assim como no
direcionamento do crédito. Na esfera internacional, a abertura das
contas de capital suscitou a disseminação dos regimes de taxas de câmbio
flutuantes, que ampliaram o papel de "ativos financeiros" das moedas
nacionais, não raro em detrimento de sua dimensão de preço relativo
entre importações e exportações.
Na esteira da liberalização das contas de capital e da
desregulamentação, as grandes instituições construíram uma teia de
relações "internacionalizadas" de débito-crédito entre bancos de
depósito, bancos de investimento e investidores institucionais. O avanço
dessas interrelações foi respaldado pela expansão do mercado
interbancário global e pelo aperfeiçoamento dos sistemas de pagamentos.
Os bancos de investimento e os demais bancos "sombra" aproximaram-se das
funções monetárias dos bancos comerciais, abastecendo seus passivos nos
"mercados atacadistas de dinheiro" ("wholesale money markets"),
amparados nas aplicações de curto prazo de empresas e famílias. Não por
acaso, nos anos 2000 a dívida intrafinanceira como proporção do PIB
americano cresceu mais rapidamente do que o endividamento das famílias e
das empresas. A "endogeinização" da criação monetária mediante a
expansão do crédito chegou à perfeição em suas relações com o
crescimento do estoque de quase-moedas abrigado nos "money markets
funds". Esses fenômenos correspondem ao que Marx designou "controle
privado da riqueza social", fenômeno que se realiza no movimento de
expansão do sistema capitalista.
Essa socialização da riqueza significa não apenas que o credito
permite o aumento das escalas produtivas, da massa de trabalhadores
reunidos sob o comando de um só capitalista. Significa mais que isso: os
capitais individuais passam a ser mais interdependentes e "solidários"
no sistema de crédito e, portanto, mais sujeitos a episódio de crise
sistêmica. A "separação" entre o capital em funções e o capital a juros
(capital-propriedade) promove a subordinação "solidária" do capital
produtivo à sua forma mais "desencarnada".
A remuneração do capital em geral "aparece" sob a forma de juros e
dividendos. Formas aparenciais são, ao mesmo tempo, formas ilusórias, no
sentido de que ocultam as conexões fundamentais desse modo de produção,
mas também são formas necessárias, expressões das relações de produção
"transformadas" pelo processo de abstração real. Os juros aparecem como
forma de remuneração do capital "sans phrase" e sua formação nos
mercados de riqueza mobiliária depende da demanda e oferta de capital
dinheiro transfigurado na forma de capital a juros, capital-propriedade.
Essa é a forma mais abstrata de existência do capital, a sua forma
"verdadeira", no sentido de que é a mais desenvolvida. "É evidente que
no capital a juros, o capital se completa como fonte misteriosa e
autocriativa de seu próprio acrescentamento.... é o capital par
excellence". ("Teorias da Mais Valia", vol. III)