Em defesa da defesa
01 de setembro de 2012 | 3h 07
Roberto Romano
O Estado de S.Paulo
Com o "mensalão" vieram à tona alguns pontos cediços do
Estado brasileiro. As origens do processo residem nos municípios e
Estados, na promiscuidade entre cofres oficiais e particulares, favores
que abrem gabinetes, lobbies conduzidos por deputados e senadores. A
causa relevante encontra-se no imenso poder do Executivo, pois as
políticas públicas são monopolizadas pelo Palácio do Planalto. Os
congressistas "negociam" apoios em troca de recursos para as regiões.
Das verbas aos seus bolsos o espaço é pequeno. Educação, tecnologia,
segurança, cultura, a vida coletiva está presa à tutela da Presidência.
Como de praxe, no fracasso em face dos piores males, nomeia-se uma
vítima que deve lavar todos os pecados. É o que ocorre com a defesa dos
réus na famigerada Ação Penal 470.
Em razão do abuso de prerrogativas aqui existente, a começar pela de
foro, nenhum partido político exibe ortodoxia puritana. Some a ética, a
lei corre perigo. Sábia definição das leis: "Teias de aranha que prendem
os pequenos insetos e liberam os grandes". A frase é de Anacharsis,
contemporâneo do regime democrático grego. Ele também indica na Ágora,
lugar dos julgamentos políticos, o espaço "onde todos se enganam
mutuamente e onde todos se enriquecem praticando o roubo". Agostinho, ao
classificar os Estados sem justiça como quadrilhas, teve
predecessores... A justiça, diz Sócrates, "é como a caça escondida na
moita, ela escapa das mãos". Não existe, no tempo e nos espaço, justiça
absoluta. Daí a necessária e polifacetada mediação do promotor, do juiz,
da defesa. As três funções são essenciais par a o equilíbrio instável
que define o direito.
Justo Lipsio (Política ou sobre a Doutrina Civil, 1594) critica a
advocacia: "O mister de advogado é a praga da Europa, banditismo
permitido, concessum latrocinium". Os habitantes da Utopia, diz Tomás
Morus, "excluem da justiça, um santuário, os perigosos advogados que se
encarregam das piores causas, usam a arte de colorir com o mais belo
verniz e, com discursos insidiosos, absolvem o culpado, condenam o
inocente". Juan de Mariana ataca o mundo jurídico, "massa de advogados
ou procuradores que, por suas tergiversações, prevaricações, seus
prazos, vivem de algum modo da miséria alheia" (De Rege). François
Hotman, advogado e protestante, deplora na Franco-Gália o aumento e o
abuso dos processos ("ars rabulatoria"). Thomas Hobbes ataca a
advocacia: "Ofício da eloquência, nele o mal e o bem, o honesto e o
desonesto parecem maiores do que na realidade, ele faz passar por justo o
não justo" (De Cive).
Em nossa era, o juiz Macklin Fleming afirma que na corrida pelo
dinheiro a advocacia perde o sentido profissional e gera insatisfação
nos clientes e angústia nos causídicos. A moeda dissolve a fé pública,
destrói a accountability. "Na busca do sucesso financeiro", diz o
magistrado, "os truques e ausência de franqueza, somados às distorções
dos fatos, aumentaram nos últimos tempos. Tais coisas foram acolhidas
com tamanha tolerância que os clientes, o público, e os próprios
advogados, não têm mais confiança na profissão" (Lawyers, Money, and
Success: The Consequences of Dollar Obsession, 1997). Na Escócia existe
uma comissão destinada a receber queixas contra os defensores - a
Scottish Legal Complaints Commission.
As invectivas dirigidas à defesa são antigas, renitentes, amplas,
duradouras e justificadas em boa medida. Mas pensemos o que significa
abolir a defesa.
Vejamos o que ocorria na Grécia antiga. Ali, a pessoa assumia sua
própria causa. Mas nem todos tinham dinheiro para remunerar os sofistas
que redigiam as justificativas a serem lidas pelos réus. Surgiram os
advogados na própria Ágora (onde, segundo Platão, muitos juízes roncavam
durante as sessões) para garantir a defesa, salvando vidas e posses do
arbítrio, sobretudo político. O processo de Sócrates, no qual ele mesmo
falou em seu favor, mostra o perigo dos juízes que não têm, diante de
si, a defesa (cf. também o clássico de John Campbell Atrocious Judges,
1856). Em Roma, antes dos césares, no Fórum eram defendidas as liberdade
públicas e privadas. Na Bolonha medieval os advogados abriram a via da
moderna pesquisa contra soberanos autoritários. Nos séculos 17 e 18, as
revoluções da Inglaterra, dos Estados Unidos, da França são impensáveis
sem eles.
No poder napoleônico e na Santa Aliança, juízes e defesa perderam seu
poder, a polícia era árbitro da morte, das prisões, dos exílios. No
século 20 a fraqueza da advocacia trouxe desastres indizíveis.
Recordemos os julgamentos de Vichy, os tribunais sobre raça na Alemanha,
os processos de Moscou. Quem defendeu os judeus nos "crimes" de ordem
racial? Quem defendeu os cidadãos caídos, sob Stalin? Quem defendeu os
presos da ditadura grega de 1967? Quem defende hoje os réus no Irã, na
China, na Coreia comunista? Quem defende os opositores em Cuba?
Recordemos, na outra margem, os advogados de Guantánamo, perseguidos por
patrocinarem a causa de pessoas "indefensáveis" (Mark P. Denbeaux , The
Guantanamo Lawyers: Inside a Prison Outside the Law, 2009).
Na era Vargas foi negada plena defesa em favor de Armando Sales,
Julio de Mesquita Filho, Otávio Mangabeira, Luís Carlos Prestes, apesar
de Sobral Pinto e de outros heróis. No regime de 1964, Evandro Lins e
Silva, Mario Simas, Flavio Flores Bierrenbach lideraram quem defendia os
"subversivos", na maior parte apenas contrários à ditadura. Em data
recente, escritórios de advocacia foram invadidos pela polícia, sem
protestos da sociedade. Hoje, em programas de televisão, o apresentador
cobra dos advogados o "crime" de falar em nome de seus clientes.
São muitos e remediáveis os defeitos da advocacia. Mas conhecemos a
monstruosidade fascista (de direita ou de esquerda) que a bane da ordem
pública. Pensemos, assim, para além da Ação Penal 470, defendamos o
Estado de Direito, impossível sem a livre advocacia.
E minha posição de sempre, coerente com princípios :
E minha posição de sempre, coerente com princípios :
São Paulo, sexta-feira, 15 de julho de 2005 |
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