sábado, 1 de setembro de 2012

Filosofia e Prostituição. Em muitos casos, sobretudo no Brasil, um acento no "e"daria mais sentido de verdade à frase. Mas fiquemos com a inteligência do autor.


sábado, 20 de agosto de 2011

Filosofia e prostituição: o pensar como idiossincrasia, experimentalismo e risco

por Paulo Jonas de Lima Piva

Resumo: Como pensar sem dogmatizar? Como fazer metafísica sem ser oracular? Como elaborar uma filosofia sem transcendência? Em suma, como curar a razão especulativa da pretensão da Verdade e da obsessão pelo absoluto e pela objetividade? Com base na aproximação entre filosofia e literatura e nas idéias de idiossincrasia e de experimentalismo, este artigo, de inspiração cética e diderotiana, é uma sugestão singela e despretensiosa de resposta a tais indagações: fazer dos pensamentos putas.

Palavras-chave: filosofia – literatura – ceticismo – idiossincrasia – experimentalismo – libertinagem.




Meus pensamentos são minhas rameiras”
Denis Diderot, O sobrinho de Rameau.

À Gotinha, minha gatinha.



Num tom sarcástico e fulminante, o romancista e poeta argentino Jorge Luis Borges definiu a filosofia certa vez como um ramo da literatura fantástica[1]. Nesta mesma direção, Oswaldo Porchat Pereira, o nosso filósofo cético mais importante, descreve a filosofia como um “admirável romance de idéias”[2]. O mesmo encontramos em outro cético brasileiro não menos importante, Plínio Junqueira Smith, para o qual a filosofia parece ser uma ficção, um gênero literário próximo à poesia e também à literatura fantástica[3]. Tais concepções parecem derivar diretamente de Montaigne. Em sua célebre “Apologia de Raymond Sebond”, o autor do século XVI assevera que a filosofia “é tão-somente uma poesia sofisticada”[4]. Mais: escreve que “os mistérios da filosofia têm muitas estranhezas em comum com os da poesia”[5].

Em face dessa perspectiva literaturizante da filosofia, o que podemos inferir de início? Endossar tal concepção implica entender as categorias, os conceitos, os sistemas e as verdades filosóficas como meros personagens literários tais como os demais personagens literários da literatura propriamente dita[6]. Em outras palavras, Deus e o cogito cartesiano, por exemplo, seriam tão personagens quanto a Capitu de Dom Casmurro ou Gregor Samsa de A Metamorfose. Do mesmo modo, o topos uranos, a mônada, a dialética, a vontade de potência, o dasein e outros. Eles seriam tão personagens quanto o Pã de As Sete Faces do Dr. Lao, de Charles G. Finney, ou quanto Kírilov, o protagonista de Os Possessos. Mas com uma diferença fundamental: enquanto na literatura propriamente dita Capitu, Kirílov ou Prometeu são aceitos consensualmente como ficções e irrealidades, Deus, a imortalidade da alma, a dialética, o conatus e até a vontade de potência tentam se impor como a decifração da realidade em meio a uma diafonia insolúvel.

Mas se a filosofia é um ramo da literatura fantástica, se a filosofia é um gênero específico de literatura, se ela é uma forma particular de poesia, em que consiste então a razão especulativa? O que podemos esperar dela? Para resolvermos essa questão, evoquemos aqui o procedimento reflexivo sugerido por Denis Diderot na abertura da sua obra-prima O Sobrinho de Rameau, de 1761:

“Faça bom ou mau tempo, tenho o hábito de ir passear no Palais-Royal, às cinco horas da tarde. Sempre solitário, sou visto sonhando no banco de Argenson. Entretenho-me comigo mesmo divagando sobre política, amor, gosto ou filosofia. Abandono meu espírito à mais completa libertinagem. Deixo-o senhor de seguir a primeira idéia, sábia ou louca, que se apresenta, como, nas alamedas de Foy, nossos jovens dissolutos seguem uma cortesã de ar estouvado, fisionomia risonha, olho vivo, nariz arrebitado, deixando esta por outra, assediando todas e não se prendendo a nenhuma. Meus pensamentos são minhas rameiras”[7].


Tal passagem ficou conhecida como a “metáfora das rameiras”. E o que nela se percebe de imediato é a ocorrência dos gerúndios “sonhando” e “divagando”, respectivamente. Eles antecedem as frases “Abandono o meu espírito à mais completa libertinagem” e “Meus pensamentos são minhas rameiras”. Curiosamente, em Jóias Indiscretas, romance libertino de Diderot publicado em 1748[8], problemas estritamente filosóficos são expostos por meio de visões, alucinações e de sonhos. Num capítulo intitulado “Os sonhos”, por exemplo, um certo personagem refere-se à filosofia como um sonho. Esse personagem diz que não há nada mais filosófico, nem mais exato, do que a expressão “está sonhando”[9], que não há nada mais comum do que homens que imaginam estar raciocinando quando na verdade estão sonhando de olhos abertos[10]. Em outra passagem marcante do romance, no capítulo “Visão de Mangogul”, Diderot ridiculariza as polêmicas metafísicas e teológicas da história da filosofia. Trata-se de uma visão na qual dois homens, tomados por suas imaginações, digladiam-se numa discussão absurda: um dos contendores acreditava ter dois narizes, o outro acreditava ter dois ânus. Aquele que acreditava ter dois narizes zombava do outro que acreditava ter dois ânus, e vice-versa, cada um tentando persuadir o seu interlocutor do contrário[11]. Tal episódio ilustra perfeitamente o que diz o holandês Franz Hemsterhuis acerca da relação entre a imaginação e a filosofia: “O que muitas vezes se apresenta sob a denominação de filosofia é, propriamente falando, apenas o excremento que resta após a efervescência da imaginação”[12].

Nota-se claramente nessas passagens bem-humoradas e mordazes que Diderot tinha repulsa pela metafísica. Eric-Emmanuel Schmitt, por exemplo, chega a denominar Diderot “coveiro da metafísica”[13]. Em outro texto, mais exatamente no Diálogo entre d’Alembert e Diderot, o filósofo usa a expressão “galimatias metafísico-teológico” ao fazer alusão às encarniçadas polêmicas metafísicas[14]. Para ele, a dedicação à especulação metafísica é inteiramente vã na medida em que ela extrapola os fenômenos, ou seja, na medida em que ela força a razão especulativa, com os seus limites e falhas, a ir além da natureza em busca de uma transcendência, em última instância, em busca de fantasmagorias. O resultado de investigações desse tipo, no seu entender, é a mais pura garrulice, a mais extravagante vaniloqüência, o mais perturbador blablablá[15].

É importante ressaltar que, no Século das Luzes, período em que Diderot viveu e pensou, o conceito de metafísica ganha um novo significado. Metafísica passa a ter duas acepções, uma negativa e outra positiva. Quando empregada como sinônimo de ontologia ela é considerada má metafísica. Em contrapartida, quando a palavra metafísica é empregada como sinônimo de epistemologia, ela é considerada positiva[16]. E Diderot falou do ser na medida em que desenvolveu uma doutrina ateísta e materialista. Portanto, quando Diderot refere-se ao ser, isto é, quando ele faz má metafísica, ele o faz consciente de que as teses expostas pelo seu discurso podem ser uma extravagante fábula. Dito de outro modo, ao tratar do ser em sua obra, Diderot fala hipoteticamente, baseado na experiência e nas descobertas científicas da sua época.

O Sonho de d’Alembert é um outro caso na obra diderotiana em que filosofia — entendida como má metafísica — e sonho se confundem. Mais do que isso, nesse diálogo a filosofia é o próprio delírio, pois as teses principais da doutrina materialista de Diderot são explanadas por um personagem que, além de estar dormindo, também delira de febre. Em uma carta dirigida a sua amante Sophie Volland, Diderot declara que colocou as suas idéias na boca de um homem que sonha e que delira de febre porque é preciso dar à sabedoria o ar da loucura[17]. Fazendo isso, Diderot liberta a imaginação do controle da razão, que é sempre rígido, e abre o caminho para que novas reflexões, hipóteses e analogias sejam feitas[18]. Contudo, não é apenas com o sonho, com a vertigem, com o delírio ou até com a loucura que Diderot identifica a filosofia[19]. Em Jacques, o fatalista, e seu amo, um determinado hábito de Jacques, o protagonista, desperta a atenção por ser muito sugestivo. Antes de dar início a qualquer reflexão, a qualquer divagação metafísica, Jacques sempre toma um gole de vinho do seu inseparável garrafão[20]. E quanto mais bêbado ele fica, mais filosofante ele se torna. Ora, não haveria nesse procedimento do personagem uma intenção implícita de Diderot de levar o seu leitor a aproximar a filosofia também da embriaguez?

Mas qual é a finalidade de Diderot com tudo isso? O que ele pretende demonstrar? Ao tratar a filosofia como sonho, divagação, visão, delírio, loucura e até mesmo como embriaguez, Diderot parece nos alertar para a sutil e às vezes imperceptível fronteira que há entre a imaginação e a racionalidade pretensamente objetiva quando nos entregamos ao filosofar, em particular, quando fazemos metafísica. Ele procura mostrar o quão a razão especulativa é imaginativa e criadora de irrealidades, situação essa, ao que parece, irremediável. Esta também talvez seja a intenção de Borges ao definir a filosofia como literatura fantástica, a de Porchat ao compará-la ao romance, e a de Montaigne e de Plínio Smith ao fazerem dela um estilo poético. Então quer dizer que não há como filosofar sem delirar, sem ser dominado pela imaginação?

O problema, ao que parece, não está no fato da imaginação ser a força condutora das nossas reflexões metafísicas. O problema mesmo é o estatuto que se dá a essas ficções da metafísica. Dito de outro modo, o problema não está no devaneio filosófico em si, mas na pretensão à objetividade e à universalidade dos responsáveis por esses devaneios. Sendo mais claro ainda, o problema disso tudo é o dogmatismo, a crença de que essas construções discursivas são portadoras de verdades, de coisas-em-si, portadoras de essências e de realidades. E aqui invoquemos não mais Diderot, mas a tradição do ceticismo pirrônico.

Em linhas muito gerais, o cético pirrônico é aquele que tem uma experiência diafônica e aporética da filosofia, e que, por isso, suspende o seu juízo, retém a sua crença e a sua escolha em relação às inúmeras e discordantes teses filosóficas, permanecendo, portanto, na indeterminação metafísica. E por que ele suspende o seu juízo em relação às teses e aos argumentos filosóficos? Simplesmente porque ele não encontra razões suficientes para achar que uma tese é melhor, mais convincente ou mais dissuasiva do que outra[21]. Ele se confessa incapaz de afirmar, por exemplo, que Hegel seja mais racional ou mais verossímil do que Aristóteles, ou que Nietzsche seja mais lúcido do que Kant, ou que Kant seja mais verdadeiro ou razoável do que Descartes, ou que Santo Agostinho traduza melhor a realidade do que Derrida. Diante dessa controvérsia indecidível, dessa enorme divergência sobre o que possa estar além, aquém ou na própria essência do que vemos, sentimos e cogitamos, o cético se volta apenas ao que lhe aparece, ou seja, ele adere ao fenômeno, sem se preocupar com o que possa estar além, aquém ou no próprio aparecer. E por fenômeno (tò phainómenon) entendamos tudo aquilo que se impõe a nós de modo irrecusável, ou seja, as impressões, os desejos, as paixões, as emoções, os costumes e as instituições, por exemplo. Em outras palavras, o fenômeno pode ser entendido como tudo aquilo que resta quando suspendemos o nosso julgamento sobre as contendas filosóficas. E a relação desse cético com o fenômeno será a de um cronista a simplesmente descrever aquilo que a ele se impõe[22]. Seu discurso, portanto, será um mero relato pessoal do que lhe aparece num determinado hic et nunc, um relato autobiográfico, confessional, enfim, um discurso idiossincrático[23]. E se é um discurso que se assume como idiossincrático, não há da parte dele nenhuma pretensão de objetividade, de universalidade, de absoluto ou de verdade no que se diz. É apenas um pathos muito particular que se anuncia. Um discurso assim será sempre provisório, para não dizer descartável. Um discurso assim se vê, no limite, como uma simples articulação de palavras, e a filosofia, por conseguinte, como uma coleção embevecedora de jogos de linguagem que procuram verbalizar maneiras muito particulares e datadas de apreciar os fenômenos[24].

A história da filosofia, nessa perspectiva, passa a ser vista como a história das idiossincrasias[25]. Contudo, idiossincrasia soa como um eufemismo de algo ainda mais radical, como eufemismo de “achismo”: “Platão achava que...”, “Aristóteles achava que...”, “Nietzsche e Marx não achavam que...”, “Eu acho que...”[26]. Indubitavelmente, trata-se de uma conclusão no mínimo profana, de um posicionamento em face da “natureza” da filosofia que causa um enorme mal-estar entre nós filósofos. Em última instância, tal redução provoca uma enorme indignação corporativa, de certo modo, uma crise existencial, pois coloca em xeque 25 séculos de pensamento e de buscas obsessivas por desvelamentos e verdades. Mais: põe abaixo a presunção histórica dos filósofos de que a filosofia é um saber privilegiado e superior em relação a um assim chamado “senso comum”, que de comum não tem nada, uma vez que é extremamente heterogêneo. “Mas como ‘achismo’?!”, pergunta com efeito o acadêmico atingido em seu orgulho. “E o rigor?! E o método?! E a lógica?! E a concatenação precisa dos argumentos?!”. Ora, colegas, o que não faltam às filosofias são método, lógica, complexidade argumentativa e sobretudo rigor ou pretensão a ele! E o que vemos? Vemos que nenhuma delas, com tudo isso, consegue obter consenso em torno de suas teses, que nenhuma consegue se impor como a expressão única, inquestionável e verdadeira da realidade. Quando adentramos o universo leibniziano ou o universo hegeliano, por exemplo, tudo se encaixa perfeitamente do ponto de vista racional. Entretanto, qual é o critério que devemos estabelecer para demonstrar que essa ou aquela filosofia é mais racional ou mais verdadeira do que a outra?

Não podemos esquecer que a diafonia também ocorre no momento em que estabelecemos critérios. Assim sendo, nessa perspectiva poderíamos falar, por exemplo, de uma idiossincrasia platônica, de uma confissão cartesiana, de uma crônica foucaultiana e até mesmo de um “achismo” cético[27]. Em suma, a máxima do chamado “senso comum” de que cada um tem a sua opinião parece ter razão. Qual seria então a diferença crucial entre um discurso dogmático e um discurso cético? Pois bem. O dogmático diria: “Eu nunca acho sobre aquilo que sei”. O cético por sua vez diria: “Eu nunca sei sobre aquilo que acho”[28].


II 

Qual seria a conseqüência efetiva de tamanha radicalidade? Seria obviamente uma proposta de filosofar muito diferente da praticada pela tradição. Talvez muitos a pratiquem, e não há aqui nenhuma pretensão à originalidade. E mais uma vez remetamo-nos ao ceticismo pirrônico. Além do fenômeno, outras referências fundamentais desta corrente são as noções de empeiria e de tekhné, isto é, as idéias de experiência e de arte ou técnica. O cético pauta o seu viver fundamentalmente pelo fenômeno e pela experiência, ou melhor, pela experiência do fenômeno, ou melhor ainda, pelo fenômeno da experiência do fenômeno. E a técnica ou instrução das artes surge para aprimorar esse viver[29]. A título de ilustração, a agricultura e a medicina seriam uma dessas tékhne. Nesse sentido, voltemos a Diderot e à sua metáfora das rameiras. Fazer dos pensamentos putas e da reflexão uma libertinagem do espírito parece ser um procedimento que se enquadra perfeitamente na noção de tékhne, pois são eufemismos poéticos de experimentalismo. A metáfora das rameiras como tékhne, como procedimento experimental, a metáfora das rameiras como método antidogmático

A contribuição insólita de Diderot com a metáfora das rameiras encontrou eco no século XX[30]. Curiosamente, o filósofo romeno Emil Cioran relacionou-se com as suas idéias quase do mesmo modo que o pensador iluminista. Em um aforismo intitulado “Filosofia e prostituição”, do Breviário de Decomposição, Cioran declara o seguinte:

“O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mas ainda perseverante nos caminhos do mundo, deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos dogmática: a prostituta. Desprendida de tudo e aberta a tudo; esposando o humor e as idéias do cliente; mudando de tom e de rosto em cada ocasião; disposta a ser triste ou alegre, permanecendo indiferente; prodigando os suspiros por interesse comercial; lançando sobre os esforços de seu vizinho sobreposto e sincero um olhar lúcido e falso, ela propõe ao espírito um modelo de comportamento que rivaliza com o dos sábios. Não ter convicções a respeito dos homens e de si mesmo: tal é o elevado ensinamento da prostituição, academia ambulante de lucidez, à margem da sociedade como a filosofia. ‘Tudo o que sei aprendi na escola das putas’, deveria exclamar o pensador que aceita tudo e recusa tudo, quando, a exemplo delas, especializou-se no sorriso cansado, quando os homens são, para ele, apenas clientes, e as calçadas do mundo o mercado onde vende a sua amargura, como suas companheiras seu corpo”[31].


A comparação entre filosofia e prostituição é feita por Cioran em outros momentos de sua obra, em particular do Breviário. Em “Invocação à insônia” lemos: “Eu tinha dezessete anos e acreditava na filosofia. O que não se referia a ela parecia-me pecado ou lixo (...) Só a abstração parecia-me palpitar: entregava-me a façanhas ancilares por medo de que um objeto mais nobre me fizesse infringir meus princípios e me entregasse às degradações do coração. Repetia-me: só o bordel é compatível com a metafísica; e espiava — para fugir da poesia — os olhos das criadinhas e os suspiros das putas”[32]. Mas, enfim, em que consiste essa libertinagem do espírito?

Além de enaltecer a liberdade de pensar, a libertinagem do espírito é um convite ao experimentalismo filosófico, ao pensar anti-sistemático[33] e, sobretudo, antidogmático, uma vez que quando filosofamos ficamos sujeitos à imaginação e ao devaneio. Por conseguinte, o filósofo libertino seria um espírito aberto a todas as interpretações e perspectivas, um espírito que se alimenta de tudo o que se apresenta ao seu entendimento[34]. Para que isso ocorra, não haver regras austeras e padrões literários fixos para a expressão dos pensamentos é fundamental[35]. A racionalidade então deixa de ser linear e unívoca. Com a sua metáfora libidinosa Diderot seduz-nos a nos entregarmos sem reservas a um pensamento qualquer, deixar se aliciar por ele, meditar como se passeia, escrever como se fala, falar como se faz sexo[36]. No fundo, ele faz do espírito uma mulher depravada, que não dá à luz como uma mulher respeitada; um espírito libertino não engravida como uma mulher virgem inseminada por uma transcendência; um espírito libertino engravida como uma moça fogosa que se deita não importa com quem, onde, quando e como[37]. A propósito, Sainte Beuve declara que o espírito de Diderot “era uma espécie de lugar público, de mercado persa: era em demasia o boteco da esquina onde todos entram e acendem um charuto”[38].

Outro aspecto importante da libertinagem filosófica é o seu caráter auto-reflexivo e até autofágico, uma espécie de “pensar contra si próprio”[39]. Ela se apresenta antes de tudo como uma investigação que a razão faz de si mesma, como uma reflexão que faz da própria filosofia a principal dificuldade do filosofar[40]. Ou seja, Diderot pensa e se pensa pensando[41]. Sua concepção da razão, portanto, além de delirante, destaca limites, aponta falhas e fragilidades estruturais na racionalidade. Tendo isso em vista, Diderot sugere hipóteses provisórias e flexíveis mediadas pela experiência no lugar de convicções e certezas[42]. A hipótese ou conjectura é consagrada como o momento teórico por excelência[43]. E mais: graças a Diderot, a imaginação, a qual sempre foi subestimada e desprezada pela epistemologia, ganha valor cognitivo[44]. Doravante, sua função será elaborar hipóteses. A filosofia torna-se então uma fundição de hipóteses, um ateliê de conjecturas. Desse modo, toda investigação filosófica deverá ser entendida literalmente como uma viagem sem paradeiro conhecido[45], todo discurso passará a ser compreendido como um simples ponto de vista[46], bem ao modo cético. Isso exigirá do filósofo um outro comportamento. O filósofo deverá ser sobretudo um ator. Do mesmo modo que o ator interpreta no palco vários personagens consciente de que tudo o que ele desempenha não passa de uma ilusão, o filósofo deverá interpretar os fenômenos por vários prismas, também com a consciência de que cada olhar pode equivaler também a uma ilusão. Assim como o ator desempenha, troca e abandona vários papéis, o filósofo deverá encarnar, trocar e abandonar as inúmeras hipóteses que invadirem o seu espírito[47]. Mas afinal, o que podemos esperar desse tipo de filosofar cético e libertino?

O mínimo ou o máximo possível, diríamos, pois ele aceita a dimensão da contingência e do imprevisível, além de ser extremamente maleável e consciente da sua precariedade. Por ter inspiração no ceticismo, essa filosofia libertina não é em hipótese alguma uma espécie de negativismo metafísico ou de dogmatismo às avessas. Pela necessidade de coerência, ela admite que uma verdade absoluta e universal possa existir e se revelar a qualquer momento, como também acha plausível o contrário. Longe de ser um dogmatismo absolutista, ela é tampouco uma forma de relativismo dogmático[48]. Admite, entretanto, que no relativismo há a vantagem da tolerância[49]. Uma filosofia cética, de natureza idiossincrática e libertina, que se constitui como um discurso fenomênico e que concebe a verdade como “uma questão idiótica”[50], também deve ser lúdica e até bufônica. Brincar com as idéias, rir da razão, desconfiar dos discursos obscuros e excessivamente complexos, duvidar da legitimidade, da validade e da efetiva significatividade dos problemas filosóficos[51], zombar das pretensões da filosofia, da arrogância dos filósofos e das próprias ousadias são posturas extremamente férteis e necessárias. Mas o mais importante de tudo é arriscar-se. Isso significa suscitar hipóteses, poetizar teorias, propor ficções que auxiliem a sobrevivência e que engendrem sentido à existência. Em suma, para a razão libertina é vital que as orgias do espírito permaneçam sempre efusivas e abertas a todas as idéias. Nesse sentido, as tolices também deverão ser bem-vindas, visto que, como assevera Montaigne, ninguém está isento de dizê-las[52]. Nem mesmo Sócrates, Descartes, Diderot ou os próprios céticos, acrescentaríamos. Contudo, é evidente que aos olhos da sacrossanta e burocrática filosofia universitária, com as suas inseparáveis notas de rodapé e suas sisudas referências bibliográficas[53], tais idéias são consideradas, além de indecentes, extravagantes e insensatas. Em face disso, cabe ao filósofo libertino a seguinte frase de Montaigne: “se faço papel de louco, é à minha custa e sem prejuízo de ninguém”[54].



Referências Bibliográficas 


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6. ____________ “Lettre a Sophie Volland du 31 août 1769”. In: Correspondance. Éd. Laurent Versini. Paris, Robert Laffont, t. V, 1997.

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13. ___________ “Oswaldo Porchat, o comum dos homens” (entrevista). In: Livro Aberto, nº 5. São Paulo, Cone Sul, agosto de 1997.

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19. SCHMITT, E.E. Diderot ou la philosophie de la seduction. Paris, Albin Michel, 1997.

20. .SEXTO EMPÍRICO. “Hipotiposes Pirrônicas” (Livro I). Trad. Danilo Marcondes. In: O que nos faz pensar, nº12. Rio de Janeiro, PUC-RJ, setembro de 1997.

21. SMITH, P. “Do começo da filosofia”. In: O que nos faz pensar, nº 12. Rio de Janeiro, PUC-RJ, setembro de 1997.

22. ________. “Terapia e Vida Comum”. In: Discurso, nº 25. São Paulo, USP, 1995.

23. SONTAG, S. A Vontade Radical. Trad. João Roberto M. Filho. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

24. VERSINI, L. "Introduction a Le Neveu de Rameau”. In: Diderot, D. Oeuvres. Paris, Robert Laffont, t. II, 1994.




Notas

[1] Cf. “Oswaldo Porchat, o comum dos homens” (entrevista). In: Livro Aberto, nº 5. São Paulo, Cone Sul, agosto de 1997, p. 12.

[2] Porchat, O. “Prefácio a uma filosofia”. In: Vida comum e ceticismo. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 33.

[3] Smith, P. “Do começo da filosofia”. In: O que nos faz pensar, nº 12. Rio de Janeiro, PUC-RJ, setembro de 1997, p. 15.

[4] Montaigne, M. Os Ensaios (Livro II). Trad. Rosemary C. Abílio. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 306.

[5] Idem, p. 335.

[6] Cf. Porchat, O. “Porchat, o comum dos homens” (entrevista), op. cit., p. 12.

[7] Diderot, D. “O Sobrinho de Rameau”. In: Textos Escolhidos. Trad. Marilena Chauí e J. Guinsburg. São Paulo, Abril Cultural, 1979, Col. “Os Pensadores”, p. 41.

[8] Um sultão é presenteado por um gênio com um anel mágico capaz de fazer as vaginas das mulheres do seu reino falarem, arrancando de suas donas os mais escandalosos segredos de alcova. Este é em suma o trama de Les Bijoux Indiscrets ou, numa tradução mais explícita, “As Vaginas Indiscretas”.

[9] Diderot, D. Jóias Indiscretas. Trad. Eduardo Brandão. Rio de Janeiro, Global, 1986, p. 225.

[10] Idem, Ibidem.

[11] Cf. Idem, p. 71.

[12] Hemsterhuis, F. “Carta sobre o homem e suas relações”. In: Sobre o homem e suas relações. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo, Iluminuras, 2000, p. 49.

[13] Schmitt, E.E. Diderot ou la philosophie de la seduction. Paris, Albin Michel, 1997, p. 17.

[14] Diderot, D. “Diálogo entre D’Alembert e Diderot”. In: Textos Escolhidos, op. cit., p. 90.

[15] A metafísica como garrulice e palavrório é um dos assuntos centrais de Roberto Romano em Silêncio e Ruído: a sátira em Denis Diderot, Campinas-SP, Ed. Unicamp, 1996.

[16] Cf. Schmitt, E.E. op. cit., p. 199.

[17] Cf. Diderot, D. “Lettre a Sophie Volland du 31 août 1769”. In: Correspondance. Éd. Laurent Versini. Paris, Robert Laffont, t. V, 1997, p. 969.

[18] Cf. Schmitt, E.E. op. cit., p. 192.

[19] Há um capítulo no livro de Schmitt com um título bastante sugestivo sobre essa questão: “O mundo não é senão um sonho”. Cf. Schmitt, E.E. op. cit., p. 129.

[20] Cf. Diderot, D. Jacques, o Fatalista, e seu Amo. Trad. Antônio Bulhões e Miécio Tati. São Paulo, Difel, 1962, p. 207.

[21] Cf. Porchat, O. “O conflito das filosofias”. In: Vida Comum e Ceticismo, op. cit., p.p. 5-21.

[22] Cf. Sexto Empírico. “Hipotiposes Pirrônicas” (Livro I). Trad. Danilo Marcondes. In: O que nos faz pensar, nº12, op. cit., p. 115.

[23] Cf. Smith, P. “Terapia e Vida Comum”. In: Discurso, nº 25. São Paulo, São Paulo, USP, 1995, p. 92.

[24] Cf. Idem, p. 81.

[25] Cf. Piva, P.J. “Filosofia como idiossincrasia, ética como fenômeno: sobre o ceticismo de Plínio Smith”. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política, nº 3. São Paulo, Humanitas, 2001, p. 99.

[26] Cf. Idem, Ibidem.

[27] Cf. Idem, Ibidem.

[28] Essas duas frases colhi no filme “Os filhos da natureza”, exibido na TV Cultura em setembro de 2001, e as adaptei às minhas necessidades filosóficas...

[29] Cf. Sexto Empírico. “Hipotiposes Pirrônicas” (Livro I), op. cit., p. 120.

[30] Em se tratando de libertinagem no século XVIII francês, não poderíamos deixar de mencionar a figura do marquês de Sade, o qual também parece relacionar a filosofia com a prostituição, na medida em que considerava as putas “as únicas filósofas de verdade!”. Cf. Sade, Marquês. A Filosofia na Alcova. Trad. Augusto C. Borges. São Paulo, Iluminuras, 1999, p. 37.

[31] Cioran, E. Breviário de Decomposição. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 1989, p. 86.

[32] Cf. Idem, p. 163.

[33] Junto com d’Alembert, Diderot foi um dos principais responsáveis pela Enciclopédia, a suma filosófica da da Ilustração francesa, movimento do qual este, ao lado de Voltaire e Rousseau, foi um dos seus maiores expoentes. Nela encontramos o verbete “Filosofia”, de autoria desconhecida, o qual elege o espírito sistemático como um dos maiores obstáculos ao progresso da filosofia. Cf. Salinas Fortes, L.R. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo, Brasiliense, Col. “Tudo é História”, 1991, p. 50.

[34] Coulet, H. “Introduction a Le Neveu de Rameau”. In: Diderot, D. Oeuvres Complètes. Paris, Hermann, t. XII, 1989, p. 37.

[35] Versini, L. "Introduction a Le Neveu de Rameau”. In: Diderot, D. Oeuvres. Paris, Robert Laffont, t. II, 1994, p. 618.

[36] Fontenay, E. Diderot ou le matérialisme enchanté. Paris. Éd. Grasset et Fasquelle,1981, p. 228.

[37] Cf. Idem, Ibidem.

[38] Citado por Roberto Romano em Silêncio e Ruído: a sátira em Denis Diderot, op. cit., p. 135.

[39] É assim que Susan Sontag define o pensamento de Emil Cioran. Cf. Sontag, S. “‘Pensar contra si próprio’: reflexões sobre Cioran”. In: A vontade Radical. Trad. João Roberto M. Filho. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 77-96.

[40] Cf. Schmitt, E.E. op.cit., p. 296.

[41] Cf. Idem, p. 14.

[42] Cf. Idem, pp. 167 e 223.

[43] Cf. Idem, p. 165

[44] Cf. Idem, pp. 182 a 184.

[45] Cf. Idem, p. 296.

[46] Cf. Idem, p. 206.

[47] Cf. Idem, p. 296.

[48] Cf. Lessa, R. “Os céticos e o pós-relativismo”. In: Veneno Pirrônico: ensaios sobre ceticismo. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1997, p. 237.

[49] Cf. Idem, p. 238.

[50] Cf. Idem, Ibidem.

[51] Cf. Porchat, O. “O ceticismo pirrônico e os problemas filosóficos”. In: Cadernos de história e filosofia da ciência, Campinas-SP, Unicamp, jan.-dez. 1996, p. 97-157.

[52] Montaigne, M. Os Ensaios (Livro III). Trad. Rosemary C. Abílio. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 4.

[53] Vale a pena ler a bem-humorada crítica de Fernando Savater à filosofia universitária no prólogo da sua tese sobre Cioran intitulada Ensayo sobre Cioran, Madrid, Espasa-Calpe, 1992, p. 9-15.

[54] Montaigne, M. Os Ensaios (Livro II), op. cit., p. 70.


(Trata-se de uma versão modificada da palestra apresentada no VI Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea, realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, na cidade de Toledo-PR, em outubro de 2001, e publicada nas revistas Tempo de Ciência, vol. 8, n. 16, 2001, e Fragmentos de Cultura, vol. 14, n. 5, maio de 2004. Uma outra versão desse texto pode ser lida em Olhar, n. 10-11, 2004)