terça-feira, 4 de setembro de 2012

Revista Liberdades, sexta edição. Entrevista sobre o mesmo assunto de meu artigo Em defesa da Defesa.

ENTREVISTA

(João Paulo Orsini Martinelli entrevista ROBERTO
ROMANO)

Nesta 6ª edição, a Revista Liberdades apresenta entrevista exclusiva com  o Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e  Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto  Romano. O entrevistado é graduado em Filosofia pela USP e pós-graduado  na USP e na Escola de Altos Estudos Sociais de Paris, onde se doutorou em
1978. Possui uma vida acadêmica ativa e, atualmente, leciona “História da  Filosofia Moderna” na graduação e “Ética e Filosofia” na pós-graduação do  IFCH. Durante dois anos, coordenou a Frente Nacional em Defesa da Ciência e  Tecnologia. Foi presidente da Comissão de Perícias da Unicamp, quando esta  ajudou a equacionar o problema das “Ossadas de Perus”. Já proferiu centenas  de conferências e palestras no País e no Exterior sobre Ética, Democracia,  Direitos Humanos e Defesa do Ensino Público. Foi distinguido, em 2000, pela  “Associação Juízes para a Democracia”, como defensor dos direitos humanos  no Brasil. Recebeu, ainda, a Medalha de Direitos Humanos da B´nai B´rith em  2007. Entre seus livros, destacam-se: O Caldeirão de Medeia (Ed. Perspectiva);  Cidadania – Verso e Reverso (Ed. Imprensa Oficial-SP); Corpo e Cristal: Marx  Romântico (Ed. Guanabara); Silêncio e Ruído (Ed. da Unicamp); Brasil, Igreja  contra Estado (Ed. Kayrós) e Conservadorismo Romântico (Ed. Unesp).

 A seguinte entrevista foi concedida a João Paulo Orsini Martinelli, Coordenador-
chefe do Departamento de Internet do IBCCRIM:

1) Professor, primeiramente gostaríamos de saber um pouco de sua carreira acadêmica, especialmente o que o levou a estudar a ética.

Roberto Romano: Minha primeira ideia de filosofia foi me dada pelo professor
Ubaldo Martini Puppi, filósofo que ensinava na Faculdade de Ciência e Letras de
Marília, interior de São Paulo. Com ele, e com a leitura de Santo Tomás de Aquino,
aprendi conceitos, como o de Bem Comum, essenciais para o pensamento ético.
Depois, segui cursos no Convento dos Padres Dominicanos, em Juiz De Fora
(MG) e São Paulo, além de ser aluno do Instituto de Filosofia e Teologia (IFC)
em São Paulo. Após deixar aquele Instituto, fiz a graduação em Filosofia na
USP, em que aprofundei a pesquisa em Ética e Filosofia Política. O curso de
doutorado, na França (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, concluído
em 1978), foi orientado para a Filosofia Política. E minha tese (Brasil, Igreja
contra Estado, São Paulo, Ed. Kayrós, 1979) tratou de temas éticos e políticos
a partir de questões religiosas. Quanto à motivação extra-acadêmica, ela vem
do seguinte fato: o Brasil é uma sociedade na qual a corrupção política atinge
níveis insuportáveis. O cidadão que paga impostos não recebe os serviços que
deveriam ser trazidos pelo Estado, o grande sorvedouro de taxas e impostos. E
de tempos a outros, demagogos espertos (ou partidos idem) mobilizam discursos
moralistas para chegar ao poder, aproveitando a perene revolta das pessoas com
o descalabro dos serviços públicos na educação, saúde, segurança. A diferença
entre o moralismo e a ética tem sido o motor de minhas investigações, de modo
a contribuir para que nossa gente não se deixe enganar pelos demagogos
mencionados.

2) O Brasil é um país ético? O que o senhor quer dizer com a seguinte
frase, mencionada em entrevista concedida à Revista Veja: “A ética
brasileira é fundada na violência, no favor e no poder?”

RR: É bom definir as premissas. A ética se define como o complexo de posturas
físicas, valores anímicos e atos de uma coletividade. Uma vez aprendidos
os costumes de uma sociedade, os indivíduos e grupos que a ela pertencem
passam a praticá-los de modo automático, sem demasiada reflexão. Tal é o
perigo da ética: os automatismos aprendidos e aprofundados. Dou um exemplo:
a esmagadora maioria dos motoristas brasileiros aprendeu que os pedestres
não merecem respeito. Assim, de maneira automática, diante de um sinal
vermelho
ou faixa de pedestre, o automatismo os leva a acelerar o veículo,
raramente a parar. Todos os que agem daquele modo ficariam assustados se
alguém lhes dissesse que a sua ética é assassina. De modo idêntico em todos os
demais setores da vida. Raros brasileiros não pediram um favor para eludir procedimentos
formais e igualitários no âmbito do Estado ou da sociedade. É uma
cultura do “quebra-galho” universalizada. E existe uma hierarquia social e política
inconfessada que manda dobrar a espinha a quem “pode mais”, econômica ou
politicamente. A frase “sabe com quem está falando?” é por demais eloquente.
Em outras terras, quando existe tensão entre indivíduos, o revoltado diz ao seu
oponente: “Quem você pensa que é ?” Aqui, na pergunta já surge a lógica
perversa e anti-igualitária: “eu sou  importante e você terá problemas, mesmo que
esteja cumprindo o seu dever funcional”. Poderíamos elencar milhares de costumes
semelhantes, hediondos,mas aceitos como “normais” entre nós. Aqui, numa fila qualquer, o esperto que a desobedece é admirado. O que reclama contra ele é “chato”. Não é mesmo? Em
tais exemplos micrológicos, notamos o que se passa em termos macrológicos na
sociedade e no Estado.

3) Na sua avaliação, como a ética pode reduzir a criminalidade?

RR: Ética, insisto, se diz de muitos modos. Existem valores éticos positivos,
que levam aos atos úteis ao Bem Comum. Existem valores éticos negativos, que
levam ao esgarçamento dos vínculos sociais. Para mudar os comportamentos
criminosos, é preciso que toda a sociedade abandone a ética do favor, da burla
face à lei, da licença política etc. No caso da lei da “ficha limpa”, notamos que
mudanças microscópicas, mas significativas, começam a ocorrer e os criminosos
de colarinho branco passam a ser punidos. Mas enquanto não for abolido o
privilégio de foro para os políticos, uma licença para o crime, nada mudará
em termos substanciais. Só existe uma fórmula para reduzir a criminalidade:
democracia e respeito dos direitos de todos e de cada um (incluindo os acusados
de cometer delitos ou crimes) e acatamento da lei. Fora tal fórmula, temos apenas
a barbárie, a vingança, o linchamento, que não diminuem a criminalidade, visto
que temos aí crimes desumanos, mera reação de massa.

4) Qual a sua opinião sobre o sistema carcerário brasileiro?

RR: Ele ajuda a entender a lógica do genocídio. Monstruosidade é pouco para
definir um sistema que gera o crime industrialmente. A professora Alba Zaluar,
em seus trabalhos, mostra o quanto tal sistema deve ao positivismo que formou
nossa pobre república. Não me deterei na análise dos seus textos. Mas seus
trabalhos sobre o comércio de drogas a levam a considerações estratégicas
sobre a conivência da “boa sociedade” com o crime, ao ser tolerado o sistema
dantesco das triagens feitas pela polícia e do armazenamento de corpos que
aquelas triagens acarretam, as almas são violentadas mesmo antes das prisões,
mas depois delas, perde o sentido o termo “alma” porque o processo oficial conduz
à animalização dos seres humanos entregues à suposta guarda do Estado.

5) O senhor acha viável a pena de morte?

RR: A pena de morte nunca resolveu ou atenuou a criminalidade. Trata-se de
uma covardia dos Estados e dos seus cidadãos. Os primeiros usam o monopólio
da força em sentido oposto a qualquer tese sobre o contrato. Mesmo a tese
hobbesiana é mais digna do que as doutrinas de hoje que pregam a pena capital.



Quando digo que a sociedade brasileira tem como ética a violência, penso
inclusive nos programas fascistas (ditos policiais) que incitam perenemente
os cidadãos para que exijam a covardia de Estado a que aludi. Os inúmeros
linchamentos, ocorridos devido às mentes intoxicadas pelo fascismo policialesco
(existem policiais que são mais clementes e humanos do que muitos jornalistas
“especializados”), mostram um lado insuportável da ética gerada e reproduzida
no Brasil.

6) E a prisão perpétua? Qual sua opinião a respeito?

RR: Estamos em 2010. Cesare Beccaria escreveu o monumento intitulado
Dei delitti e delle pene em 1763. Temos, pois, 247 anos de experiência, análise,
renovação das teorias sobre a pena. Prisão perpétua equivale à pena de morte
civil, é algo que mostra o falecimento da sociedade, a sua fraqueza em inserir
indivíduos no seu interior. O tempo cósmico pode ser finito ou infinito, conforme
a perspectiva pela qual é considerado. Mas o tempo das sociedades é sempre
finito e o dos indivíduos ainda mais restrito. “Perpétuo” é algo que só vigora
para o registro natural ou divino. Nenhuma sociedade reúne toda a natureza,
e nenhuma sociedade é divina. Ela deve premiar ou punir de acordo com o
diapasão temporal que é o seu. Punir alguém “pela vida toda” que lhe resta é
arrogância e, portanto, viola a essência do convívio humano. Permito-me indicar,
sobre o tema, um artigo meu publicado para uma revista universitária cujo título,
justamente, é o seguinte: “Os laços do orgulho. Reflexões sobre a política e o
mal”. A revista chama-se Unimontes Científica, volume 6, número 1, janeiro /junho
de 2005), no endereço eletrônico: http://www.unimontes.br/unimontescientifica/
revistas/sumario_v6_n1.htm. Alí, mostro o quanto a arrogante atitude de homens
é, ela mesma, a matriz de todos os males, de todos os crimes.

7) Quais seriam as principais causas da criminalidade na sua opinião?

RR: As causas podem ser múltiplas, e as ciências da psicologia social, da
sociologia, da política, do direito, com uso de inúmeros instrumentos técnicos
(da estatística às pesquisas, como as já referidas, da Dra. Alba Zaluar) ajudam
a aclarar um pouco os mecanismos que distorcem o agir humano e fazem os
indivíduos e grupos seguirem a via da violência física ou psíquica contra seus
semelhantes. Explicações religiosas, como a doutrina do pecado original cristã,
podem ajudar a entender um pouco o mecanismo do crime. Não por acaso, nos
relatos religiosos, o assassinato surge logo após a queda dos entes humanos do
mítico paraíso, com a história de Caim e Abel. Tais figuras simbólicas mostram
o traço arcaico do crime na sociedade. E a sua relevância. Existe também toda
uma doutrina prudencial sobre o crime: apenas os hipócritas (o Novo Testamento
os chama de “fariseus”, devido a uma seita rigorista em termos de moral e direito)
se imaginam isentos de cair no crime. Os hipócritas não conhecem a misericórdia
quando alguém comete um atentado à vida alheia, à sua propriedade etc. A
justiça (os gregos a chamam “epikéia”) vai além da letra da lei, reconhecendo
o fato de que todos os entes humanos são suscetíveis de praticar crimes. Ela
dosa as penas de maneira a não permitir que um crime seja retribuído por outro,
sob a chancela do poder político ou religioso. Se me permitem, eu diria, sabendo
todo o peso das palavras, que o crime, ainda hoje e, imagino, em longo prazo,
será um mistério para a humanidade. Tentar compreendê-lo com os métodos
científicos ou filosóficos pode ajudar, mas não desce até suas raízes.

8) Qual deveria ser o papel da mídia na divulgação dos casos de violência?

RR: Deveria ser exigido da mídia que preservasse o direito das vítimas e o dos
agressores, sobretudo quando eles são apenas supostos agressores. A exibição
pornográfica de presos (muitos depois inocentados), com sensacionalismo
fascista, deveria ser proibida. Na Europa, quando alguém é preso e acusado, seu
rosto aparece borrado nas telas de televisão. Aqui, lembremos o caso da Escola
de Base, a TV policialesca mostra a casa, os familiares do acusado, além do
próprio, julgando antes do juiz e do devido processo legal. Existem “jornalistas”
que interpelam advogados de defesa, como se exercer aquele múnus fosse um
crime a mais.

9) Qual sua opinião sobre a reação popular em crimes de grande
repercussão? Isso é prejudicial à democracia?

RR: Tal manipulação das massas é um treino para o fascismo.

10) Normalmente, a massa fica mais exaltada quando ocorre um
crime praticado por meio da violência. No entanto, parece haver menor
mobilização popular nos casos de corrupção. A população, em geral, ainda
não assimilou que um crime envolvendo a Administração Pública pode ser
mais grave por atingir pessoas indeterminadas?

RR: Infelizmente, não. E pior: com o sistema de concentração quase absoluta
que torna inoperante a prática federativa entre nós, os recursos monetários e
humanos sendo quase monopolizados pelo poder de Brasilia, os impostos só
voltam às cidades pelo mecanismo do “é dando, que se recebe”. Os políticos
oligarcas conseguem, em tratos não raro espúrios com o Executivo Federal,
liberar verbas e obras para suas regiões. A massa dos contribuintes que vive
nos municipios, embora condenando, da boca para fora, a “corrupção”, só vota
nos candidatos que já mostraram eficácia na obtenção de verbas (escolas,
estradas, hospitais etc.) para suas cidades. Assim, temos uma hipocrisia política
estonteante, visto que os mais prejudicados pela corrupção aprovam e só votam
nos candidatos que praticam o “realismo” político, ou seja, a troca do que é
público por supostos “favores” dos eventuais governantes.

11) O senhor acha correto que autoridades públicas apareçam em
público para darem suas opiniões a respeito de crimes que investigam ou
denunciam? Promotores e delegados não deveriam se manifestar apenas
nos autos do processo e do inquérito?

RR: Um julgamento (no júri) possui quatro partes essenciais e sem uma delas
é vingança ou tirania: a acusação, a defesa, o juíz e os jurados. Eles efetivam
um sistema harmônico e solidário na busca dos fatos e das leis aplicáveis a
cada caso. Se o acusador (e antes dele a polícia) se permite vir a público, antes
do julgamento e da sentença, para afirmar a culpa de um acusado, ele deixa o
sistema e passa a operar como parte independente. Logo, subverte o sistema
da justiça, abusa do seu múnus, age de maneira injustificavelmente tirânica.
Gosto de recordar que a instituição do acusador público teve origem na Atenas
democrática. Aquela figura, na primeira forma democrática, surgiu justamente
para evitar a vingança das famílias, algo que impedia a unidade do Estado em
guerras privadas. O acusador fala em nome da família ofendida, mas também
em nome do povo. Contudo, naquele regime ateniense, o acusador, se não
apresentasse provas ponderadas que levassem à condenação do acusado,
deveria pagar multa pesada. Platão, nas “Leis”, propõe multas também para
os juízes que não operam de acordo com o correto julgamento. Se, no Brasil,
multas fossem aplicadas aos operadores do direito que trabalham na acusação e
extrapolam seus limites, boa parte do apelo midiático (que os leva a operar fora
do sistema judicial correto) já teria desaparecido.

12) Qual a importância da interdisciplinariedade do curso de direito com
outros ramos do conhecimento? O que as demais ciências humanas podem
acrescentar ao jurista?

RR: Existem trabalhos sobre o assunto, de modo que eu pouco acrescentaria
ao ponto. Mas com o nível e complexidade das informações teóricas e práticas
a que chegamos hoje, quase nenhuma especialização dispensa o auxílio de
pesquisas conexas. Isto ocorre nas ciências da natureza, nas matemáticas, na
lógica e no direito. A informação pluridisciplinar permite ao profissional perceber
nexos entre problemas e soluções que permaneceriam ignorados nos limites
estreitos e estritos das supostas especializações.



13) Quais seriam os pensadores que o senhor entende fundamentais aos
estudiosos do direito?

RR: Ouso indicar um apenas. Como disse alguém, toda a filosofia do Ocidente
é apenas um conjunto de notas de rodapé aos seus livros: Platão.

14) Agora uma questão mais polêmica, que envolve direito e outros
ramos do conhecimento: qual sua opinião a respeito da eutanásia?

RR: A morte abraça a vida desde a gênese dos seres. Como diz André
Leroi-Gourhan, um etnólogo maior do século 20, os humanos construíram
seu corpo e seus instrumentos na luta, de instante a instante, contra a
violência da natureza, ou seja, da morte. E sabemos, com as teses sobre a
entropia, que os mundos, as estrelas, as constelações, o universo, todos
morrem. Importa sobremodo determinar o jeito pelo qual o tempo que nos resta é
usado, se a soma das tristezas e misérias é menor ou maior do que a que resulta
em felicidade.

Desconfio das palavras e atos que se iniciam com a inicial grega “eu”. Tais
ações e termos podem conduzir a coisas deslumbrantes e saudáveis, como
é o caso do Euangelion (Evangelho, boa notícia). Mas não podemos ignorar
o quanto o século 20 se esmerou em atrocidades em nome da eugenia e da
eutanásia. Basta ler o pungente livro de Edwin Black, A Guerra contra os
Pobres, traduzido para nossa língua pela Editora Girafa. Aliás, as raízes da
violência contra os desvalidos vem do predomínio, sem demasiadas
vigilâncias, da ordem médica.

Não é preciso aprovar as análises de Michel Foucault sobre o poder da
clínica, para suspeitar de medidas supostamente oferecidas para “minorar o
sofrimento” humano. Um dado: ainda no século XVI, o estatuto do louco era
o de “ausente”. Aos juízes e advogados, era atribuído o seu cuidado. Se
houvesse “retorno a si”, decidido pelo juiz, o tutor do louco deveria
prestar contas a ele e à sociedade de a respeito de sua pessoa, seus bens etc.
Com o domínio do “saber médico”, no entanto, o estatuto do louco passou a
ser o de morto.Os abusos, a falta de proteção jurídica e toda uma panóplia de
malefícios surgiram do poder médico. A história dos choques, das castrações
e outras, ainda mais trágicas (que desembocaram no Holocausto), indica que
devemos, se quisermos ser prudentes, desconfiar de doutrinas “humanitárias”
como a eutanásia. Quem desejar informações sobre o que digo, recomendo
a leitura do simpósio internacional ocorrido em Bruxelas: Folie et déraison à
la Renaissance. Colloque international (1973), Fédération Internationale
des Instituts et Sociétés pour l’Etude de la Renaissance, Bruxelles, Editions
de l’Université de Bruxelles. Decisões “humanitárias” levam, de maneira
constante, a decisões como a do juiz norte-americano que exigiu a castração
de uma jovem, depois de a mãe da mesma jovem ter sido castrada, em nome
do bem-estar social. Basta conferir o processo Buck versus Bell, no qual se
definiu o direito de usar a eugenia em nome da “proteção e da saúde do
Estado”. As vítimas, supostamente, deveriam consentir no “bem maior” em
favor do coletivo. Alí se consagrou a doutrina eugênica, exportada para a
Alemanha e nela usada como instrumento de aniquilação de massa.

Face à dor que antecede a morte, é previsível que entes humanos desejem
a libertação com o fim da vida. Mas oficializar a licença para a morte, dando
mais poderes ainda ao poder médico, anuncia desgraças futuras. Quem sofre
dores insuportáveis não tem pleno domínio de si mesmo, seu livre-arbítrio está
abalado até os fundamentos. Não esqueçamos a pressão coletiva, e mesmo de
familiares, para que o fim seja apressado. O egoísmo se transforma, como por
mágica (na verdade, a partir de intensa propaganda), em humanitarismo. Dar
licença para a sua morte, sobretudo aos médicos, é retirar da pessoa doente a
liberdade efetiva, atribuindo-a ao estamento médico, cuja arrogância “científica”
já mostrou sobejos frutos de arbítrio, erros, atentados à ética.

15) Por fim, quando se fala em punição no Brasil, existem desigualdades?

RR: Sim, inúmeras. A Justiça lenta e apegada a ritos formais, e menos atenta à
“epikéia”, conduz ao privilégio negativo (o conceito é de Max Weber) dos pobres
e dos que não têm poder. O privilégio de foro demonstra o quanto somos uma
sociedade injusta, com uma justiça que raramente merece seu nome.

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