Em data recente a Folha de São Paulo designou o poder militar que dominou o país como "ditabranda". Artigos surgiram em defesa do periódico, atitudes contrárias também se revelaram. Alguns chegaram a atenuar o peso tremendo da ditadura com base no eufemismo proposto. O ódio contra a esquerda dirigiu estas últimas posições. Resultado: o assunto não foi discutido nem debatido. E desapareceu da cena pública, como veio. O defeito passa por todos os temas relevantes do Brasil. Mas questões semelhantes exigem, de quem não se pretende apenas um partidário, ou sectário, atitude fria : "não rir, nem chorar, compreender", segundo os parâmetros de Spinoza. Não gosto da esquerda, menos ainda da direita, ambas brasileiras no seu imediatismo, no seu gosto pelas coisas públicas para satisfazer desejos privados, etc. Mas não aceito emitir juízos distorcidos sobre as duas correntes sob o tacão dos preconceitos. Assim, dizer que a ditadura não foi ditadura, para atingir os que, na esquerda, exigem que ela seja vista como tirania sangrenta, é algo reativo, ressentido. E lemos Nietzsche o bastante para saber que a reatividade e o ressentimento são contrários à vida. Antes do debate surgir no jornal, no meu curso de graduação (Unicamp) analisei com os alunos os pressupostos históricos e lógicos da ditadura. Publiquei os manuscritos neste Blog, mas retomo a publicação, para dar aos que desejam, a oportunidade de analisar as fontes do problema, na cultura ocidental. Como são notas de aulas, boa parte do que foi passado aos estudantes tem alí apenas o ponto de partida. A partir das notas, dissertei sobre temas e bibliografias conexos, com maior extensão e profundidade. Trechos de artigos anteriores, sobre a Razão de Estado, foram resumidos ou retomados nas notas. Espero que, na leitura, fique clara a minha posição: a democracia é dura de suportar, sobretudo quando os seus operadores se corrompem, como é o caso dos atuais legisladores e executivos brasileiros. Mas a ditadura jamais é solução.
Roberto Romano
Roberto Romano
Graduação Unicamp, 2008.
A ditadura
Prof. Roberto Romano
A ditadura é invenção romana, como também o município. A palavra “município” teve duas acepções diferentes em Roma. De modo geral o vocábulo foi usado para designar uma cidade de constituição romana na Itália e nas províncias, em oposição a Roma. Mas ele também foi usado para designar um direito público, categoria especial das cidades itálicas e provinciais. Município deriva de municeps, como principium deriva de princeps. No início, municipes não eram eleitores nem elegíveis. Municipium na Lei Julia designa exclusivamente as cidades itálicas. No império, o termo é empregado para designar as cidades itálicas e as provinciais. Nos inícios do Estado romano municipium já se emprega não no sentido comum de cidade, mas para designar uma condição de direito público. Municipes são os habitantes itálicos que, sem serem romanos, têm direitos de gestão própria e são assimilados aos romanos nas munera publica, sem o direito de votar e ser votados para os cargos mais importantes de Roma. Eles teriam uma espécie de “naturalização incompleta”: serviam nas legiões romanas e não como os socii, foederati nos corpos auxiliares armados. E pagavam impostos nas mesmas condições dos romanos. Considerada a desconfiança diante dos estrangeiro, o estatuto de municipe era uma deferência romana para com os habitantes sem cidadania. Dessa condição, muitos municipes seguiam para adquirir a cidadania plena. Quanto à administração, a condição de cada municipio era regulamentada pelo Senado ou pelo povo romano, sendo que a autonomia poderia ser concedida ou retirada, conforme o jogo político e militar. Municipios leais mantiveram sua condição. Quando sem autonomia, as cidades eram privadas de assembléia popular, de senado, de magistrados, sendo administradas pelos praefecti, delegados do povo romano, ou pelo pretor. Assim, elas tinham o nome de praefecturae. Os habitantes das praefecturae não perdiam sua qualidade de cidadãos de Roma, mas a coletividade deixava de ser, administrativamente, independentes e com vida própria. Ela era sujeita ao Senado e ao povo de Roma. Em geral os poderes públicos municipais se compunham de 1) dos comícios 2) senado 3) Magistrados. À diferença das coloniae, que de fato ou por ficção derivavam da própria Roma, os municipes tinham ainda suas raizes em seu próprio passado longinqüo. Esta dimensão dupla (pertencer a Roma e pertencer a si mesmo, ao seu próprio pretérito) é única no mundo antigo. Só Roma a conheceu. Na Grécia ela foi ignorada. Roma antecipou a noção de um Estado não confundido com uma cidade, mas congregando multiplas cidades controladas pelo poder romano. A hegemonia de Roma administra um agregado de comunidades urbanas subordinadas, mas com vida própria e valores idem. Assim, existiram municipios em toda a Europa romana até a queda do Império.
Roma usava dois métodos para com as cidades italianas. O primeiro é a sua extinção pura e simples como entidades autônomas, sua anexação. O segundo era a federalização. O foedus que liga as urbes a Roma se diferencia em várias categorias. As mais favorecidas eram as cidades que eram tratadas em pé de igualdade e com Roma concluiram um foedus aequum (Nápoles, entre outras) e na Grécia Heracleia da qual Cicero menciona o foedus aequissimum, ou singulare. Aquelas coletividades guardam seus direitos, incluindo a cunhagem de moeda, as instituições, magistraturas, tribunais, etc. Quando instalados em Roma, os seus cidadãos podem pedir cidadania. Depois dessas, vem as que tiveram um foedus non aequuum. As cidades não guardam autonomia devido ao artigo da lei romana segundo o qual o povo romano conserva a majestade. (Cicero, Pro Balbo). E depois dessas, as cidades nas quais o pacto federativo era mais de clientela, protetorado, a maioria das coletividades entram nesse caso. Em todos os casos, no entanto, a federação é bastante falha, visto que se impunha a superioridade militar de Roma nos quesitos de ordem externa ou interna. (1) Essa marca do Estado romano está presente na ditadura e no império, e perdura até a queda, tanto no Ocidente quanto no Oriente.
A mesma ausência de “município”, na Grécia, ocorre para a ditadura. A palavra é ignorada em grego, salvo como tradução literal do termo romano. É preciso notar que desde a época mais recuada são bem conhecidas as formas de poder pessoal, uma das notas da ditadura. O termo “tirano”, não presente na Ilíada, enuncia um poder com as marcas de pessoalidade. “Ter muitos chefes nada vale; que um só seja o chefe, que um só seja o rei”. Como os gregos são conhecidos pelo paradoxo, na mesma Ilíada é dito que em situações críticas vale mais que sejam dois e não um só a assumir o comando. (2) Na Grécia arcaica (até o final do século VI AC) existiram chefes nomeados vitaliciamente ou por tempo limitado, tendo em vista resolver crises. Tais líderes eram chamado aisymnetas (comandantes) que dispunham de poderes excepcionais, espécies de tiranos eleitos e acusados de agir com arbítrio e injustiça. O nome de basileus era dado ao rei, o qual detinha maior ou menor força, de acordo com as cidades.
O tirano de início é apenas um basileus, o que possui amplos poderes, mas nem por isso era visto como usurpador ou bandido. A evolução deste sentido ao de péssimo governante é feita em pouco tempo. Os primeiros usos do título de tirano com conotação negativa (algo debatido até hoje, se mesmo negativa ou não) vem de Arquíloco, datado hoje como do século VII em vez do século VIII, num poema mal conservado (Fragmento 15, da edição de Lasserre-Bonnard, Ed. Les Belles Lettres). (3) Os séculos VI e VII são férteis em governos tirânicos e populares, contrários ao poder nobre. Por volta de 430, na peça Édipo Tirano, Sófocles não emprega ainda o termo no sentido totalmente pejorativo. Em Heródoto, na segunda metade do século V, temos a questão da tirania. O historiador relata um debate sobre o poder efetivado na corte persa. Com a morte de Cambyses, sete nobres discutem o regime a estabelecer. Com a vitória da monarquia, ela é entregue a Darius. Mas são discutidas a monarquia, a aristocracia e o regime popular, com seus pró e seus contra. (Heródoto, III, 80ss). () O adversário da monarquia diz que a pessoa nela investida não precisa prestar contas a ninguém e se torna próspera e orgulhosa, abusa do poder e ordena execuções sem julgamento, usa as propriedades dos governados segundo seu capricho, viola as leis e a moral. O poder absoluto leva à tirania, máxima injustiça. O regime adequado seria a democracia, na qual os integrantes política recebem tratamento isonômico. (4) Contra semelhante requisitório, o defensor do poder absoluto diz que se o titular é bom, tal governo é o mais adequado. Ele é mais eficaz porque nele o segredo de Estado tem mais garantias (o seu titular é um só). Solon recusa a tirania que lhe foi ofertada, a considera ausência da lei, injustiça. A tirania, no seu entender, é como uma praça forte que protege, mas aprisiona quem a comanda. Solon aceitou ser árbitro por tempo limitado. (5)
Em Esquilo a tirania se identifica parcialmente à barbárie dos persas vencidos em Salamina (Os Persas, 480) ou dos egipcios (As Suplicantes, 472). Prometeu encadeado é o campeão da humanidade por lutar contra Zeus, tirano que impõe sua vontade arbitrária. Em Sete contra Tebas, o rei é legítimo, mas ele, Eteócles, deseja guardar o poder por tempo maior do que o legal e não pretende ceder o comando ao seu irmão, conforme a alternância prevista em termos jurídicos. A imaginação teatral, ligada ao fato tirânico, se radicaliza com Eurípides (As Fenícias) o qual coloca na boca de Eteócles a confissão do ardor pelo poder exclusivo : “Subiria aos astros, o lugar onde eles se elevam ao céu, desceria à terra, se fosse capaz, para manter em minhas mãos o poder soberano, a maior divindade”. E adiante: “Se é preciso ser criminoso, que seja pelo poder soberano, o mais belo motivo dos crimes”. (As Fenícias, 504, 524). (6)
Se não existe ditadura na Grécia, é possível enunciar que a noção e a prática da tirania se aproxima daquele conceito. A questão do tempo de mandato, a substituição da realeza pela magistratura que não presta contas, como o rei, é imposta por um golpe de força ou astúcia, diminui a sua legitimidade. Um exemplo modelar da tirania ilegítima, desenhado por Platão na República, se tornou o grande paradigma da tirania até os nossos dias. Trata-se do anel de Giges, o pastor lídio. É bom recordar que a primeira notação sobre tirania, como foi enunciado acima, é de Arquíloco. E tal notação é referida a Gyges. “Um dia, durante violenta tempestade acompanhada de abalo sísmico (seismou') o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do local onde apascentava o seu rebanho. Cheio de assombro Gyges desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a fábula enumera, surgiu um cavalo de bronze, oco, perfurado com pequenas aberturas; tendo-se debruçado sobre uma, percebeu dentro um cadáver de estatura maior, parece, que a de um homem, e que trazia na mão um anel de ouro, do qual ele se apoderou (...). Ora à reunião habitual dos pastores que se realizava cada mês para informar o rei do estado de seus rebanhos, ele compareceu com o anel no dedo. Tendo tomado assento no meio dos outros, voltou por acaso o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente tornou-se invisível (ajfanh', de ajfanhv", não visto, escondido, invisível) aos seus vizinhos, que começaram a falar dele como se tivesse partido. Espantado ele (7) manejou de novo o anel com hesitação, voltou o engaste para fora e, assim fazendo, tornou a ficar visível. Dando-se conta do fato, repetiu a experiência para verificar se o anel possuía realmente semelhante poder, o mesmo prodígio reproduziu-se: virando o engaste para dentro, ficava invisível; para fora, visível. Desde que se certificou disso, agiu de modo a figurar entre os mensageiros que se dirigiam para junto do rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, tramou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.”. (8)
A história narrada no interior da República marca os lados da visibilidade e da invisibilidade do poder e da justiça. Na divisão dos campos opostos ocorre a maravilha, o espanto. Todos os elementos narrados pelo escritor Platão no personagem Giges, encontram-se na história dos golpes de Estado e das ditaduras, após o final da república romana e o nascimento do império. Até os nossos dias, os mais importantes pensadores políticos se aplicam a captar os sentidos da história de Giges, entre eles, o republicano Jean-Jacques Rousseau. (9) Entre a modernidade e os tempos antigos, o cristianismo apurou a noção de tirania.
As duas fontes éticas do Ocidente —judaica e grega— trazem o problema do tirano e do tiranicídio. No Antigo Testamento Moisés mata um egípcio e começa a libertação do povo hebreu. Aod aniquila o usurpador Eglon, rei de Moab, que domina os israelitas (Juízes, 3, 14-23). Joab destrói Absalão, que destrona Davi (Samuel, 2, 18, 14). Joab é morto por Salomão, em virtude do testamento de Davi (Reis, 1, 2). O tirano Joram, rei de Israel, foi morto por uma flecha de Jehu. Este último fez executar Ocosias, rei de Judá, com a rainha Jezebel, mãe de Joram (Reis, 2, 9). O Sumo Sacerdote Iaoiada ordena a morte de Atália, mãe de Ocosias (Reis, 2, 11). Judite mata Holofernes, general de Nabucodonosor, rei dos Assírios, para salvar o povo. (Judite, 12). (10)
Na experiência grega, além da história de Gyges, o tirano é chamado lobo sanguinário por Platão (11) que prevê a sua morte nas mãos dos adversários. Aristóteles define o tirano como pernicioso ao coletivo. (12) Cicero discute a tirania, e afirma que o tirano gera ódio e sempre acaba morto de maneira violenta. (13) O escritor discute o peso do tiranicídio, em relação aos valores éticos : “Com frequência as circunstâncias tornam o que se costuma considerar torpe, como não torpe. Existe crime maior do que matar um homem, ou um amigo? No entanto, seria mesmo um criminoso quem matou um tirano, mesmo sendo ele amigo? Tal não é a opinião do povo romano. Entre as belas ações, ele considera aquele ato como o mais belo” (14) Pode ser encontrada em Seneca uma atitude próxima. “Se a cura (do tirano) é desesperada, com um só gesto farei um ato benemérito para todos e de restituição, para ele. Para naturezas como a sua, deixar a vida é o único remédio, a melhor escolha é ir embora, quando não é mais possível voltar a si mesmo”. (15)
O Novo Testamento, por sua vez, segue a linha do Velho, proíbe o assassinato. E São Paulo é explícito no que se refere aos governantes. "Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores(ἐξουσίαις, potestatibus): porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor (φόβος) quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo também pagais tributos: porque são ministros de Deus, atendendo constantemente a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra" (Romanos, 13: 1-7).
O termo ἐξουσίαις, cuja tradução para o latim é potestatibus, tem o significado do sublime (Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit) o que gera medo (φόβος) pela sua própria magnitude e transcendência, que ultrapassam os limites dos homens finitos : poder, no sentido exato, só o divino (οὐ γὰρ ἔστιν ἐξουσία εἰ μὴ ὑπὸ θεοῦ; non est enim potestas nisi a Deo). Temos a reiteração da temática, já trazida no livro de Jó (16) da incomensurabilidade entre poder divino e humano, de onde nasce o símile do Leviatã. Tomás de Aquino fala, a propósito, do Leviatã como “excesso de grandeza”, o que vai além de todo poderio ou astúcia humanos. (17)
Lutero, para falar do medo trazido pela justiça divina, usa o termo Furcht (terror, pavor). A versão inglêsa do Rei Tiago traz claramente o vocábulo terror. A palavra latina é aparentemente mais branda: timor. Cicero afirma que o medo é política ruim, pois instaura a tirania. No caso de Paulo, o sublime divino é fonte do medo e as autoridades trazem o medo aos homens que optam pelo mal, nada podem contra os que agem bem.
Padres da Igreja, como Tertuliano e Lactâncio escrevem que embora o tirano seja detestável a sua punição é reservada a Deus, e apenas a Ele. O cristão deve morrer pela sua causa e não matar (Vincimus, cum occidimur, Apologeticum). Finalmente : "Orate (...) pro regibus et pro principibus et potestatibus, ut omnia tranquilla sint vobis!" (18) Mesma atitude na Cidade de Deus. Mas Agostinho introduz algumas concessões no tocante ao tiranicídio. Uma autoridade pública, face à maldade do culpado, pode matar. Não convêm aos particulares exercer tal decisão e ato. Se não é conveniente, não significa no entanto não ser possível ou justificável. Se Deus manda uma pessoa privada matar o péssimo dirigente, ela deve obedecer.
O grande nome das doutrinas eclesiásticas, quando se trata do tiranicídio, é João de Salisbury. O seu monumento sobre o problema é o Policraticus (1159). No livro 3, capítulo 15 daquele tratado, o autor se ocupa com o tirano por usurpação que tomou o poder por astúcia e violência. “Devemos viver de um modo com o amigo, de outro com o tirano. De qualquer modo, não convêm adular o amigo, mas é lícito acariciar (mulcere) (19) as orelhas do tirano. Pois é permitido lisonjear a quem é permitido matar. Não apenas é lícito matar o tirano como é eqüitativo e justo. Quem toma o gládio é digno de matar pelo gládio. Mas por ´tomar´ se entenda : quem o usurpa por sua própria temeridade ou recebe de seu senhor o poder de o utilizar. Quem recebe de Deus o poder conserva as leis, é servidor da justiça e do direito. Quem o usurpa rebaixa os direitos, submete as leis à sua vontade”. Não só o tirano usurpador pode ser morto, mas também o legítimo cujo exercício vai contra a lei e a justiça. O tirano “oprime o povo de modo violento (...) a lei é dom divino, forma de equidade e justiça, imagem da vontade divina, guardiã da salvação, fortaleza dos povos, regra das magistraturas, exclusão e termo dos vícios, pena contra a violência e toda injustiça (...) O príncipe combate pelas leis e pela liberdade do povo, o tirano acha que nada se faz se não se rejeita as leis e não se leva o povo à servidão. O principe é imagem da divindade mas o tirano figura a força contrária, a perversidade diabólica”.
No capítulo 20 do Policraticus, Salisbury narra os tiranicídios bíblicos. Integram sua lista os reis legítimos como Joram e Ocosias, bem como César e demais imperadores romanos. O governante é tirânico? Deve ser morto. Ao violar as leis divinas ele se torna culpado de lesa majestade divina. “Dos crimes de lesa majestade nenhum é mais grave do que o cometido contra o próprio corpo da justiça”. Retornamos ao início dessas considerações, com o preceito paulíneo da obediência à autoridade. A mais sublime dentre todas as autoridades é Deus. Ferir a lei de morte é tentar assassinar o divino. Não existe crime pior. (20)
Em Tomás de Aquino nota-se forte hesitação no tratamento do tiranicídio. No Segundo livro dos Comentários sobre as Sentenças de Pedro Lombardo (entre 1254 e 1256), os tiranos de usurpação podem ser mortos. O mesmo não é dito sobre os de exercício. Ninguém é obrigado a obedecê-los, e mesmo é preciso não acatar suas ordens em algumas ocasiões. Em geral, no entanto, deve-se obedecer o governante. O referido dever é “causado pela ordem de comissão, que tem uma virtude obrigatória, não apenas no plano temporal mas também no espiritual, em consciência como diz o Apóstolo (Romanos, 13), segundo o qual a comissão desce de Deus (...) logo segundo o que é de Deus, obedecer a tais prepostos é dever do cristão, mesmo que a comissão, ela mesma, não seja de Deus”.
Se o rei é um comissário divino, deve ser obedecido. (21) A idéia do comissariato será substituída na modernidade por símiles como o empregado por Blaise Pascal na Carta sobre a Condição dos Grandes. Os príncipes e dirigentes são como o náufrago que aparece nas praias de uma ilha distante. Ele se parece com o príncipe efetivo, mas não é ele. Assim, precisa agir como se fosse legítimo, mas sabe que a qualquer instante o soberano real pode surgir. (22) Segundo Aquino, o comissário pode abusar de sua missão de duas maneiras: fazer o contrário do que ela autoriza (exemplo, um pecado) ou obrigar os dirigidos à prática de algo alheio à sua comissão (exemplo, querer impostos indevidos). O governado pode obedecer, ou não. Se o tirano insiste os cristãos devem sofrer o martírio, mas nada é dito sobre matar o governante injusto.
Já no Regime dos Príncipes, escrito entre 1265 e 1266 (do qual com alguma certeza os livros primeiro e segundo são do filósofo, incluindo o capítulo quarto) a doutrina do tiranicídio é mais clara (ela é exposta no primeiro). Alí desaparece a distinção entre as tiranias (usurpação e exercício) e Aquino retoma Aristóteles : “Como o regime do rei é o melhor, o regime do tirano é o pior”. E logo após : “Um regime torna-se injusto se, ao desprezar o bem comum da multidão, busca o bem privado do governante. Por tal motivo, quanto mais um regime se afasta do bem comum, mais ele é injusto (...) Na tirania, se afasta mais do bem comum, pois nela se procura o bem de um só, logo o regime do tirano é o mais injusto”. (Capítulo 3). Com base em Aristóteles, mas também por recolher alguma lembrança do injusto platônico, Aquino diz que o tirano é como o lobo que não garante a segurança dos governados e persegue os bons cidadãos, favorece as quadrilhas reunidas para delinqüir, impede a amizade, propicia a discórdia. Ele em nada difere de uma fera. “Si (...) regimen iniustum per unum tantum fiat qui sua commoda ex regimine quaerat, non autem bonum multitudinis sibi subiectae, talis rector tyrannus vocatur, nomine a fortitudine derivato, quia scilicet per potentiam opprimit, non per iustitiam regit: unde et apud antiquos potentes quique tyranni vocabantur” .“ Se (...) o regime é exercido injustamente por um homem só e ao governar ele busca ganho para si mesmo e não o bem da comunidade a ele sujeita, tal dirigente é chamado tirano que significa ‘força’ porque ele oprime com poder, e não governa com justiça”. (23) Aquino, neste passo, cita Isidoro de Sevilha (Etymologiae 9:3, PL 82:344), cuja etimologia não é correta.
Tomás de Aquino possui dois pilares, em sua discussão teórica sobre a ordem pública. O primeiro é Dionísio, o Pseudo-Areopagita, o segundo é Isidoro de Sevilha. Aquino expõe a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político.() Essa doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus encontra- se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador : “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não apenas no ser, mas também no conhecimento”.() Há, neste sentido, uma via para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade se ilumina, quanto mais distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de pensamento social este imaginário metafísico.() É impossível quebrar a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa. () A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens sobre o poder divino.
Há um heliotropismo essencial no pensamento católico onde a hierarquia insere-se com perfeição. Embora cada ser tenha o seu lugar natural, os homens possuem o livre arbítrio (algo que trouxe lutas penosas para a Igreja, desde Agostinho até Jansenius e Pascal). Assim, retoma-se na Igreja a tese de Platão de que “o divino não é culpado” pelos nossos males. O mal não pode ser atribuído ao Absoluto. “Deus”, afirma Tomás de Aquino, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologia, 1 q. 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta o símile entre os últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa precisamente do excesso de luz”. Os homens não nasceram para a lamentável escuridão e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “como a suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto mais se une ao princípio”. Assim, “os bem aventurados vêem a essência divina” (Summa 1 q. 12 a 1).
Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda (a que trouxe maiores violências no debate cristão, sobretudo entre os jansenistas e calvinistas) é explicitada por Tomás de Aquino: “é indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência eterna.() A igualdade entre eles não é possível, visto que em cada um dos indivíduos humanos há uma relação especial com Deus mediata pela cooperação de cada um deles com a Graça divina, o que indica uma proximidade maior ou menor entre a consciência e Deus. () Para que possa existir visão divina, a luz deve ser percebida segundo graus, não de imediato. A doutrina sobre o poder político exige a tese dos graus de visibilidade contemplativa, o que prepara o óbice maior que se instala entre o pensamento católico e as modernas idéias democráticas sobre a igualdade, onde o divino transcendente é posto fora do trato político ou, como dizia Laplace a Napoleão Bonaparte quando este ao folhear o texto sobre a Mecânica Celeste, perguntou ao cientista sobre Deus: “Je n' ai pas eu besoin de cette hypothèse”.
O segundo pilar do pensamento político de Aquino, se deixarmos de lado os seus maiores apoios, Aristóteles e Platão, é Isidoro de Sevilha, sobretudo quando se trata da análise da lei e da tirania. O debate sobre a lei é feito a partir das Etimologias (2:10; 5:3, PL 82: 130 e 5:21, PL 82:203). () A lei é fundamentada na razão e composta não tendo em vista a vantagem privada mas o bem comum dos cidadãos. O alvo final da vida humana é a felicidade, ou beatitude, a lei deve satisfazer o bem dos indivíduos tendo em vista o bem comum, no Estado. A passagem fundamenta-se também em Aristóteles (Ética, V, 7: 8, 1151a 16) () e (Física 2: 9, 200a 22). ()
Qual deve ser o legislador ? O povo ou homens superiores? Para o debate, Aquino cita Isodoro, ainda nas Etimologias (5:10, PL 82:200) : “lei é um ordenamento do povo pelo qual algo é sancionado pelos de alto nascimento em conjunção com os comuns”. Todos possuem a lei em si mesmos e todos têm interesse na lei. Mas as pessoas privadas não podem compelir as demais à virtude, tal poder está presente na comunidade ou na pessoa cujo dever é aplicar punições e, portanto, a lei pertence a ela apenas. Ademais, a promulgação da lei é essencial na ordem pública? Sim, responde Aquino, porque os não presentes no ato da instauração legal têm obrigação de saber a lei. Quando a lei é promulgada por escrito, é como se ela tivesse sua promulgação refeita no passado, no presente e no futuro, de modo contínuo. É por tal motivo que Isidoro diz que “a lei deriva de ‘ler’(legendo) porque ela é escrita” (Etimologias 2: 10, PL 82:130). Se alguns homens são inclinados para este ou aquele modo de ser e desejam honras, riquezas, prazeres, como definir a lei da natureza, visto que Isidoro indica que “o direito natural (ius naturale) é comum a todas as nacões” ? (Etimologias 5:4, PL 82:199). Assim como a verdade é a mesma em todos os homens mas não é igualmente conhecida por todos, também a lei da natureza é idêntica para todos, mas é recebida e praticada de modos diversos.
Qual o alvo das leis? Segundo Isidoro, citado por Aquino, “as leis foram feitas para que a audácia humana pudesse ser colocada em limites pelo medo delas, para que a inocência fosse protegida no meio dos desordeiros, e que o pavor da punição restringisse os perversos de produzir danos” (Etimologias 5:20, PL: 82:202). Neste passo, Aquino cita com maior vigor Aristóteles, quando se trata do papel punitivo das leis. “Como o Filósofo diz na Retórica 1 ( 1:1, 1354a31), ‘é melhor que todas as coisas sejam reguladas por lei do que deixadas à decisão dos juízes’e isto por três razões. Primeira, porque é mais fácil encontrar poucos homens sábios capazes de encontrar leis sábias do que os muitos para julgar cada caso individual corretamente. Segundo porque os que estabelecem leis devotam muito tempo ao que faz a lei enquanto o juizo de cada caso singular deve ser dado logo que o caso ocorre; mas é mais fácil para o homem ver o que é direito tomando em consideração muitos exemplos, em vez de um só caso. Terceiro, porque os legisladores julgam termos em geral, com o futuro em mente, mas os juízes o fazem em relação ao presente, tratam com o que pode afetá-los pelo amor ou ódio ou ambição de algum tipo, e assim seu julgamento pode ser distorcido. Dado que a ‘lei animada’ dos juizes não se encontra em muitos homens, e porque ela pode ser distorcida, foi preciso, sempre que possível, que a lei determinasse como deveria ser o julgamento, e para muito poucas matérias se confiasse na decisão dos homens”. O direito positivo deve ser contrastado com o natural, como diz Isidoro (Etimologias, 5:4, PL 82:199).
Aquino se dirige ao próprio conceito de lei, enunciado por Isidoro, se perguntando se é apropriada descrição da lei inscrita nas Etimologias. Citação de Isidoro : “a lei deve ser franca, justa, possível, seguir a natureza e o costume da terra, capaz de ser aplicada em tempo e espaço determinados, necessária, útil, expressa com clareza, que ela não contenha alguma provisão temível pela sua obscuridade; seja composta não para vantagem privada, mas para o benefício dos cidadãos”(Etimologias, 5: 21, PL 82: 203). Aquino explica cada um dos termos expressos por Isidoro, inclusive a idéia de que o homem é útil para o homem, base da política. ()
O autor da Summa se dirige, então ao problema da tirania e dos outros regimes. A lei humana pode ser dividida segundo as formas de governo. Aquino cita Aristóteles na Política (3: 5, 1279a26) e divide os regimes em monarquia, aristocracia, oligarquia, democracia, e “também existe a tirania, inteiramente corrompida e à qual nenhum tipo de lei corresponde”. Tudo o que existe por força de um fim deve necessáriamente ser adaptado ao citado fim. Sendo o fim da lei o bem comum, “porque, como diz Isidoro, ‘a lei não deve ser composta para vantagem privada mas para o benefício comum dos cidadãos’( Etimologias, 2:10, 5: 21, PL 82: 131, 203), ela deve se adaptar ao bem comum. Se a lei é injusta, no entanto, “a ordem divinamente ordenada dos poderes não se aplica, e portanto um homem não é obrigado a obedecer a lei em tais casos, se pode resistir (resistere) , assim o fazendo sem escândalo ou alarma pior”.
Se possível, no entanto, é melhor tolerar o tirano. Caso os revoltados fracassem, ele pode se tornar ainda mais feroz. Mesmo se a tirania é insuportável não vale a pena o tiranicídio. O remédio aceito pelo doutor da Igreja é a revolta regulada por representantes legítimos do povo. “Parece que se deva proceder contra a selvageria dos tiranos, não pela presunção privada de alguns, mas por autoridade pública” como uma assembléia do povo ou como o Senado romano, que destituirá o tirano. Segundo a Suma Teológica é preciso obedecer as autoridades, quando ocorrem abusos que trazem rebeliões. Ao retomar Aristóteles e dizer que a “tirania é ordenada para o bem próprio do governante, com prejuízo da multidão” (IIa II ae, q. 42) ele condena a sedição como oposta à justiça e ao bem comum. Ora, o regime tirânico não é justo, pois não se ordena ao bem comum, mas ao proveito do dirigente. Logo, “a derrubada desse regime não tem o caráter de sedição”. () A sedição pode não ser pecado. E matar o tirano? Na questão 64, artigo 2 da Suma ao discutir se é lícito matar bandidos, ele afirma com apoio em Êxodo, 22 que “não suportarás que os bandidos vivam”. Assim, “se algum homem é perigoso para a comunidade e seu corruptor por causa de algum pecado, que seja morto elogiadamente e com vantagem, para que o bem comum seja conservado. Com efeito, pequena porção de fermento corrompe toda a massa”.
Uma pessoa privada pode matar o bandido? Responde o santo: “é licito matar um malfeitor, na medida em que o ato é ordenado para a salvação da comunidade; como pertence ao médico arrancar o membro apodrecido, quando foi-lhe confiada a saúde do corpo inteiro. O cuidado do bem comum e confiado aos notáveis com autoridade pública. E apenas a eles é confiado matar os malfeitores, não às pessoas privadas”. No final, chega-se à sugestão, não dita explicitamente pelo autor, de que as pessoas privadas podem matar o malfeitor e o tirano, desde que receba uma ordem divina, a missão, tal como ela se apresenta à sua consciência.
Bartolo da Sassoferrato (1314-1357?) professor de direito em Pisa (entre 1339-1350) se ocupa dos tiranos que assolam as cidades italianas, cujos regimes republicanos deslizam para o despotismo oligarquico ou individual. Hodie Italia est tota plena tyrannis, diz ele no De regiminis civitatis. () Bartolo foi dos primeiros a sistematizar o campo do direito público nas cidades, o que lhe permitiu uma vista sinoptica da ordem jurídica e política. Ao mesmo tempo, teve conhecimento direto dos problemas mais amplos da Europa, por ter sido embaixador de Perugia junto a Carlos 4º.
Bartolo, como Aquino, distingue duas formas de tirania. A primeira, por defectu tituli, por problemas de origem na legitimidade. A segunda, tem a indicação de Ex parte exercitii, o desempenho no cargo. O pensador usa os sinais fornecidos por Plutarco para o reconhecimento do tirano. Este último assassina os melhores homens da cidade e chega a matar seus parentes mais próximos, impede os estudos e os sábios, proíbe reuniões particulares, semeia espiões entre a cidadania, empobrece os contribuintes para que eles fiquem ocupados com dívidas, guerreia o países estrangeiros, é mantido por um grupo de mercenários, adere a um partido político e inviabiliza os demais. (De Tyrannia, capitulo 8º).
Segundo Bartolo, o tirano pode ser responsabilizado pelos ordenamentos legais do Império, passível de ser punido com penas previstas no direito romano. Quem divide a cidade, por exemplo, pode ser castigado com a Lex Julia Majestatis () e assim por diante. Se o imperador não pune o tirano, os magistrados da cidade podem processá-lo e chegar à sua condenação por exílio ou morte. Mas o escritor não autoriza as pessoas privadas a cometer o tiranicídio.
No século 14 o Concílio de Constança foi encarregado de várias tarefas espinhosas, entre elas, a de resolver o cisma papal e o problema da sede pontifícia em Avinhão, analisar as doutrinas de João Wyclif, Jan Hus e sectários. O Concilio condenou o assassinato do tirano devido ao caso do Duque de Orleans (23/11/1407). O confesso mandante do crime, João Sem Medo, queria se desembaraçar do concorrente no Conselho de Estado. Defendido pelo causídico João Pequeno em 08/03/1408, seu pleito se baseia nos seguintes pontos : é lícito matar o tirano, e louvável. O Duque de Orleans era um tirano, amigo do diabo e de feiticeiros, a diaba Venus o presenteou com um talismã para se fazer amar por ele, etc. () Além de tudo o defunto era desleal, traidor, inimigo do povo. Assim, foi lícito matar o tirano. O assassino foi absolvido, os honorários de João Pequeno dobrados.
Quando o novo duque de Orleans entra em Paris e João Sem Medo precisa fugir, o chanceler Gerson de Notre Dame denuncia as teses de João Pequeno. Em 30/11/ 1413 uma espécie de concilio jurídico e teológico extraiu da defesa feita por João Pequeno nove proposições erradas. Finalmente, o tribunal condenou a sua apologia do tiranicídio, em nome do arcebispo de Paris e do Inquisidor da Fé. João Pequeno apela ao papa João 23º. Este submeteu o apelo ao Concilio de Constança. Assim, o processo sobre o tiranicídio adquire estatuto próximo ao da heresia de Hus. O Concilio condena as primeiras teses de Pequeno, selecionadas por Gerson, em especial a que enunciava ser lícito matar o tirano sem esperar sentença ou mandato judicial.
Roland Mousnier resume do seguinte modo as teses jurídicas e religiosas sobre o tiranicídio : () “Nenhum particular pode, por seu movimento próprio e sem juízo prévio por magistrado competente matar o tirano de exercício ou o de usurpação. Mas Deus sempre pode, ao seu arbítrio, confiar a um homem privado a missão de executar o tirano e por tal mandato o escolhido por Deus tem o dever de cumprir sem que exista julgamento e sem por isso se transformar em assassino. Contra os tiranos de usurpação a revolta é permitida sem que se possa qualificar os atos como sedição. Mas quanto ao tirano de exercício apenas os magistrados ou depositários legítimos da autoridade pública, príncipes, senhores, governos, representantes dos povos consultados, podem se rebelar, recusar obediência, pegar em armas, deter o governante, o julgar e depor, exilar, condenar à morte quando necessário. Contra o usurpador, que gera a guerra civil, todo cidadão pode se levantar numa guerra justa”. ()
Na Renascença os tiranicidas têm melhor imprensa. () Maquiavel (), Erasmo, com seu lamento : O Brutorum genus jam olim extinctum.() As advertências contra a tirania encontram-se espalhadas pelos textos erasmianos. Por exemplo, no tratado sobre a Educação do Príncipe Cristão. Após descrever a pintura do bom governante o autor se refere à “terrível fera, repulsiva besta, formada por um dragão, lobo, leão, serpente, urso, e monstros semelhantes; com seiscentos olhos espalhados sobre seu corpo, dentes por toda parte, temível em todos os seus ângulos, com anzóis em todas as suas unhas; nunca satisfeita a sua fome, nutrido por entranhas de seres humanos e pelo sangue dos homens; nunca adormecida, sempre ameaçadora para a vida e os bens dos cidadãos; perigosa para todos, especialmente para os bons; um tipo de maldição fatal para o mundo inteiro, sobre ela, todos os interessados pelo bem estar político tem sentimentos de execração e de ódio. Tal fera não pode ser limitada devido à sua monstruosidade e não pode ser derrubada devido ao desastre que tal ato traria para a cidade, porque sua malícia se fortalece com armas e riqueza. Esta é a pintura do tirano, nada pior pode ser descrito. Monstros desse genero foram Cláudio e Calígula. Os mitos nos poetas também mostram Busiris, Penteu, Midas, cujos nomes hoje são objeto de ódio para toda a raça humana”. ()
Lutero, adversário do tomismo em todos os assuntos, () interdita o tiranicídio, sobretudo se praticado por um particular. Calvino, na Instituição Cristã (tanto na de 1541 quanto em 1560) () define: como todo poder vem de Deus é preciso obedecer a autoridade civil, mesmo tirânica. O pensador não distingue entre tirania por usurpação e por exercício. “Conhecemos por suas palavras a grande obediência exigida por Nosso Senhor para que este tirano perverso e cruel (Nabucodonosor) fosse honrado, não por outra razão, mas porque ele possuía o reino. Aquela posse apenas mostrava que ele tinha sido posto no trono por ordem de Deus e por tal ordem, elevado à majestade real, que não é lícito violar”. Calvino cita o livro de Jó (28) e relembra Davi que recusa atentar contra Saul, tirano mas ungido pelo Senhor. O cristão, diante de um tirano, deve examinar sua própria consciência, para ver os pecados pelos quais Deus assim o castiga. Se o principe deseja impor algo contrário à lei divina, no entanto, é preciso resistir até o martírio. “São Pedro nos ensina que é ´preciso mais obedecer a Deus do que aos homens´, mesmo com o risco de morte”. As pessoas privadas não podem se levantar, salvo se recebem missão especial de Deus, contra o tirano. “Algumas vezes Ele suscita manifestamente alguns de seus servidores e os arma com o seu mandamento, para punir uma dominação injusta e livrar da calamidade o povo iniquamente afligido.” O assassino, mesmo que não tenha consciência de alguma tarefa religiosa e possua outros alvos pessoais, pode servir de instrumento divino.
Chegamos ao calvinismo político que afasta todas as dúvidas quando se trata do reino francês, dividido entre papistas e huguenotes, nomes insultuosos que sempre aparecem nas guerras civis ou religiosas. Em 1573 na luta religiosa que estraçalhou a França surge o libelo O direito dos magistrados sobre seus súditos. () Pouco antes, em 1572, ocorrera a noite de São Bartolomeu. Em 1584 sobe ao trono um protestante, o Bourbon Henrique de Navarra, com o título de Henrique 4º. O Direito dos magistrados, apresenta a situação da desobediência quando esta passa de passiva a ativa, quando o poder contradiz os mandamentos divinos. O metron da ordem política só pode ser o divino, jamais humano, porque “nenhuma vontade a não ser a divina é perpétua e imutável, regra de toda justiça”. O tom platônico desse enunciado mostra que ele pode ser incluído na linha de Agostinho e não na vertente tomista.
Mas o escrito dá um passo a mais e sanciona as doutrinas sobre o tiranicídio. Ele autoriza o particular à execução do governante tirânico e inimigo das ordens divinas, caso os magistrados deixem de cumprir seu dever. Há um contrato entre povo e soberano. Como o Estado está acima do soberano a soberania não lhe cabe totalmente. Ele depende dos magistrados comuns que não “dependem propriamente do soberano, mas da soberania” a quem o rei presta um juramento de fidelidade. “É evidente que existe uma obrigação mútua entre o rei e os funcionários (officiers) de um reino, segundo a qual o seu governo não é posto nas mãos reais, mas apenas o soberano grau deste governo, como também os funcionários (officiers) tem, cada um, parte segundo o seu grau”.() O rei é um magistrado, como os demais, apenas o seu posto está acima dos outros. Os magistrados inferiores, quando o superior tomba em tirania, têm o dever de salvaguardar as leis. “Eles são obrigados (mesmo com uso de armas, se possível) de se levantar contra uma tirania manifesta, para a salvação dos que são postos sob sua guarda, até uma comum deliberação dos Estados”. Como afirma Roland Mousnier, isto vai muito além de Calvino.
Se há contrato, este se baseia no direito natural e divino, e não pode ser quebrado pelas partes. O tirano rompe o contrato, o que lhe retira a garantia no governo. O povo, portador da soberania, merece sempre a resposta certa ao quesito da responsabilidade do governante face ao contrato fundamental. Se rompe o contrato, o príncipe torna-se tirano e pode ser destituído ou morto.
Outro documento relevante dos monarcômacos franceses é o livro Vindiciae contra tyrannos, surgido em 1581 de maneira anônima. Ele foi atribuído a Teodoro de Beza, François Hotman, Buchanan, Hubert Languet. Sua importância foi enorme, tanto na França quanto na Europa. Mas não vai muito além do que aparece no Direito dos Magistrados. Ele avança, no entanto, no campo do contrato. Da Biblia é extraída a noção de um duplo contrato. Em primeiro, o contrato entre povo e rei, Deus garante este acordo, pois o povo é o propriedade divina. Depois, um segundo contrato entre rei e povo, para que o último obedeça bem se for bem dirigido. Daí nascem os direitos populares para exigir prestação de contas do rei, lhe resistir, depor. Depois, o livro inova no que se relaciona ao direito de resistência. Se o povo aprova o tirano que ignora a lei e a desrespeita, uma cidade apenas, um só magistrado, um só par do reino tem o direito de se levantar contra a tirania. A verdade não é quantitativa, um só pode ter razão contra muitos, estar no legítimo direito contra muitos, estar com a verdade contra muitos, e ser o único a defender a liberdade e a fé, contra muitos. Em plano ordinário, no entanto, não cabe ao particular exercer a vingança, a menos que Deus ordene sua missão.
João Althusius, em 1603, na Politica methodice digesta segue o plano geral da Vindiciae contra tyrannos. Temos nesse ponto um elemento estratégico de ordem jurídica, a suposta ou efetiva personalidade soberana do povo, com a idéia do contrato pelo qual o mesmo povo entrega o seu poder originário ao governante. Para a famosa transferência de poder, no entanto, o povo deveria possuir uma “subjetividade” comum. Se tal asserção for verdadeira, o povo jamais transfere totalmente seu direito ao dirigente, ele guarda para si a maiestas. Mesmo os defensores do absolutismo guardam a noção de que existe um contrato a ser cumprido pelo povo. Se o povo é cobrado pelo contrato, é porque ele teria alguma personalidade original. A personalidade do povo só poderia ser coletiva, o que traz problemas para a própria noção de persona capaz de decisões e de responsabilidade. O costume, trazido do direito romano, de chamar o povo de universitas, communitas, corpus, para explicar a personalidade popular como uma unidade incorporada, foi assumida pelos monarcômacos, como na Vindiciae contra tyrannos e nos textos de Althusius.
Althusius não pode aceitar as teses dos escritores católicos, como aliás nenhum de seus pares protestantes, de uma personalidade coletiva superior e anterior, ontológica e lógicamente, aos indivíduos. Tal é o ponto grave dos monarcômacos. Como vimos, embora neguem às pessoas privadas o direito de executar o tirano, quase sempre chegam ao indivíduo ou grupo que, por ordem expressa de Deus, podem justiçar o péssimo governante. Além disso, como também vimos, o indivíduo, em casos excepcionais, tem maior acesso ao verdadeiro do que a massa. Se a lógica aqui presente for levada ao máximo (e nas guerras ou revoluções do tempo ocorreu tal fato) os direitos coletivos são os direitos dos indivíduos somados. Althusius pensa numa conexão social, numa “parceria” dos indivíduos, que gera o Estado. Temos a noção de uma consociatio, corpus symbioticum. De modo artificioso retorna o peso do coletivo sobre os átomos sociais, a autoridade da comunhão política sobre os seus integrantes.
Importa insistir sobre a visão da soberania popular em autores protestantes como Althusius, que no mesmo ato se liga ao campo do federalismo. Dos indivíduos aos Estado e deste às federações, existem graus de autonomia e dignidade, sempre com o instrumento da consociatio. A sua política pode ser dita uma teoria rigorosa de muitas associações. Todas as instâncias sociais, no entender do escritor, surgem de associações. Dentre elas, são indicadas cinco species consociationis : a família, a de camaradagem (Genossenschaft), a comunidade local (Gemeinde), a província e o Estado. Cada uma das superiores resulta das inferiores e são elas, não os indivíduos diretamente, que entram no contrato que gera as mais elevadas. Elas possuem um direito que vai além dos indivíduos, direitos que não podem ser violados tanto pelas associações superiores, quanto pelos próprios grupos inferiores ou individualidades. Se tal é o ponto, é possível aceitar que um grupo ou indivíduo, sem licença das respectivas associações (inferiores ou superiores) decrete que tal instância é tirânica e mate os seus titulares? () Se uma instância associada, ou grupo ou indivíduo no seu interior, abusa de suas prerrogativas, nota-se que a qualificação de “tirania” lhe cabe. Mas o indivíduo privado ou grupo que se arroga a executar uma justiça não escrita, e matar quem imagina (ou de fato é) tirânico, não é também algo contra o direito e tirânico?
No capítulo 38 da Politica Althusius analisa os abusos do poder estatal, a tirania e os meios para afastar semelhantes males. Como defensor das associações, ele sublinha a soberania popular como algo inalienável e reforça o veto contra toda e qualquer tentativa de subtraí-la aos seus legítimo proprietários. Tirano, para ele, em sentido rigoroso, o governante legítimo que viola o direito e trai seu dever. Assim, retoma a distinção já mencionada entre tyrannus absque titulo e tyrannus quoad exercitium. Só que para ele o pretenso tyrannus quoad exercitium é apenas e simplesmente o inimigo público. E aí temos a concessão de Althusius às doutrinas anteriores, protestantes e católicas, sobre o tiranicídio: qualquer particular tem o direito de executar a sentença contra o tirano. (Cf. Politica, § 27).
Quem é o verdadeiro tirano? O que “violando tanto a palavra quanto o juramento, começa a abalar as bases e afrouxar os laços do corpo associado da comunidade. O tirano pode ser um monarca ou poliarca que, em decorrência da avareza, soberba ou perfídia, extingue ou destrói os bens máximos da comunidade, quais sejam, sua paz, virtude, ordem, lei e nobreza”. () Com tais critério, Althusius fixa o jus resistentiae et exauctorationis, contra o tirano. Tal direito resulta de doze princípios, extraídos da essência do contrato, do ofício e do mandato, do conceito de soberania popular, do direito natural e da palavra divina (§§ 28-43), da história civil e religiosa (§§44-45). O referido direito é atribuído ao povo apenas, coletivamente, e em seu nome, aos Eforos. Os privados cidadãos têm direito apenas à resistência passiva e, caso exista ameaça direta contra suas vidas, bens, liberdades, o direito de legítima defesa concedido pelo direito natural (§§ 65.68). () Os Eforos, coletivamente, têm a prerrogativa (caso verifiquem um comportamento tirânico) de advertir o governante pacificamente. Caso ele não se emende, eles podem cassar o seu mandato com violência ou mesmo condenar a morte. (§§ 53-64). Em caso de evidente tirania, as associações podem romper o contrato e se retirar das entidades federadas (§§ 42-52). ()
O ponto crucial do problema inteiro gira ao redor do estatuto da indivíduo no campo coletivo. Quais os limites do primeiro e do segundo? Quem é fonte dos direitos e da ação política? Quando a tirania do Todo suscita a resistência legítima ? Todas essas questões, suscitadas pelos monarcômacos protestantes, são refletidas de maneira inversa nos monarcômacos do catolicismo. O ponto mais grave, no meu entender, reside na tese de que não raro os átomos sociais e políticos, os indivíduos, podem estar na posse do direito efetivo, quando a maioria se deixa controlar por tiranias mentirosas e anti- jurídicas. Basta recordar os totalitarismos do século 20 : quem tinha razão e estava na verdade, as massas animalizadas pela propaganda nazista, estalinista, fascista, ou os poucos cidadãos que aceitaram ir para a morte, sem disto precisar por eram “arianos” ou porque simplesmente poderiam calar e cooperar com o Estado?
Para os monarcômacos católicos tirano é todo governante que não aceita os ditames da Igreja no campo da soberania, da ética, da ordem pública. Se abrirmos os textos dos monarcômacos do catolicismo, veremos que a grande maioria fazem epikéia do 5 mandamento, “não matarás”. Se é legítimo matar o invasor de sua pátria, um bandido que penetra sua casa, é permitido matar o tirano de usurpação , pois o que ele faz contra a república é uma guerra injusta e fora da lei. Assim, todo cidadão, parte da autoridade coletiva, pode executar o governante tirânico.
Manuel de Sá, jesuíta, nos Aphorismi confessiorum (1593) aprovado pela Faculdade de Teologia de Paris em 1609, diz que o governante tirânico de “uma senhoria justamente adquirida não pode ser dela despojado, a não ser por um julgamento público, sentença pronunciada. Daí, cada um pode ser o executor. Ele também pode ser deposto pelo povo, mesmo se este último jurou obediência perpétua caso, advertido, ele não se corrija. Mas todo membro do povo pode matar quem ocupa tiranicamente o poder, se não há outro remédio, pois ele é o inimigo público (publicus hostis)”. João Mariana, no De rege et regis institutione (1598) pergunta se é lícito matar o tirano. Sua resposta é uma longa discussão escolástica pelo sim e pelo não, ressaltando o sim em caso de atentado à religião.
“Não obstante o Padre Mariana tenha escrito muitos livros, o primeiro a ter um conteúdo libertário foi De rege et regis institutione (Sobre o rei e a instituição real), publicado em 1598, no qual ele fazia sua famosa defesa do tiranicídio. De acordo com Mariana, qualquer cidadão pode justificadamente matar um rei que crie impostos sem o consentimento das pessoas, confisque a propriedade dos indivíduos e a desperdice, ou impeça a reunião de um parlamento democrático. As doutrinas contidas neste livro foram aparentemente usadas para justificar o assassinato dos reis tiranos franceses Henrique III e Henrique IV, e o livro foi queimado em Paris pelo carrasco como resultado de um decreto publicado pelo Parlamento de Paris, em 4 de julho de 1610.
Na Espanha, apesar de as autoridades nunca terem sido entusiastas dele, o livro foi respeitado. De fato, tudo o que Mariana fez foi pegar a idéia de que a lei natural é moralmente superior ao poderio do estado e levá-la à sua conclusão lógica. Essa idéia tinha previamente sido desenvolvida em detalhes pelo grande fundador do direito internacional, o dominicano Francisco de Vitoria (1485-1546), que foi quem começou a tradição escolástica espanhola de denunciar a conquista e particularmente a escravização dos índios pelos espanhóis no Novo Mundo. (…) Mariana descreve um tirano da seguinte maneira: ‘Ele confisca a propriedade dos indivíduos e a desperdiça, impelido que está pelos vícios, indignos de um rei, da luxúria, avareza, crueldade e fraude. . . . Tiranos, na verdade, tentam prejudicar e arruinar a todos, mas eles dirigem seus ataques especialmente contra os ricos e os homens justos de todo o reinado. Eles consideram o bom mais suspeito do que o mal; e a virtude que lhes falta é a mais temível para eles . . . . Eles expulsam os homens de bem da comunidade sob o princípio de que o que quer que seja exaltado no reino deve ser escondido . . . . Eles exaurem todo o resto - seja através da fabricação de controvérsias para que haja brigas intensas entre os cidadãos, seja através da extração diária de tributos, seja através da criação de guerras atrás de guerras - para que eles não possam se unir contra o tirano. Eles fazem grandes construções às custas e ao sofrimento dos cidadãos. Assim nasceram as pirâmides do Egito. . . . O tirano necessariamente teme que aqueles a quem ele aterroriza e mantém como escravos irão tentar derrubá-lo do poder. . . . Por isso, ele proíbe os cidadãos de se congregarem, de se encontrarem em assembléias e discutirem o conjunto da comunidade, tirando deles - através do uso de alguma polícia secreta - a oportunidade de se expressar livremente, de tal maneira que a eles não é permitido nem reclamar livremente. (Jesus Huerta de Soto : “Juan de Mariana : A influência dos escolásticos espanhóis” in Instituto Ludwig von Mises Brasil : http://www.mises.org.br/Articles.aspx?type=0)
Outro monarcômaco relevante é Georg Buchanan (1506-1582). Em 1549 o autor foi preso pela Inquisição de Portugal, pelo seu ensino considerado herético na Universidade de Coimbra. Após abjurar sua pretensa heresia, ele é solto e retorna para a França. O De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579), põe os fundamento da responsabilização (accountability) dos governantes face aos governados e da lei e desenvolve a doutrina da soberania popular, o que exige a tese da resistência legal aos tirano. Ele foi peça central na queda de Maria, rainha da Escócia (1567) e se tornou tutor de Tiago 6º da Escócia, futuro Tiago 1º da Inglaterra). Buchanan, pode-se dizer, foi dos primeiros a usar a retórica na tarefa pouco nobre de aniquilar os inimigos políticos. Foi o que ele fez com Maria, a quem acusou de assassina, adúltera, tirana prostituta. no libelo intitulado Detectio Mariae Reginae Scotorum (1571) () e desenvolvido mais amplamente na história da Escócia por ele publicada : Rerum Scoticarum Historia (1582).
No De Jure Regni apud Scotos, aparece o elemento causador do tiranicídio : a opressão do povo e sua revolta. () As fontes de Buchanan encontram-se em Erasmo, Aristóteles, Cícero. O núcleo do diálogo é a diferença entre monarquia e tirania, com a tese da superioridade do povo face aos dois tipos de poder. Para tal tarefa, o autor assume a famosa narrativa das origens, encontrada em Platão, nos estoicos e usada em grande quantidade no século 18, em especial por Rousseau. Ninguém pode dizer que tal narrativa pretende ser efetivamente histórica. Ela é uma idéia diretora para explicar, com algum fundamento racional, o sentido da vida humana em coletividade. Os homens, diz o autor, viviam de modo selvagem e bruto, isolados em cavernas. O sentimento da utilidade e o instinto social os aproximou. O instinto social, como em Cícero, é dado por Deus e com ele torna-se possível construir a civitas segundo as normas do bom e do justo. Quem mais perto chega do justo e do bom é imagem divina entre os seus iguais (Plane Deo similimum). Ele será o chefe, o guia, o médico que conserva a integridade física e a saúde da reunião humana. Justiça, portanto, é guardar a saúde do corpo social, assegurar a prosperidade das suas partes e a coesão voluntária do todo. O rei aparece com tal múnus. Mas a simples eleição do rei nada garante em termos de justiça. Ela é um sinal de excelência, não a própria excelência : “natura, non suffragiis regem esse” . A eleição não gera um rei, nem um médico competentes. Mas como o diploma confere ao médico o seu direito, a eleição confere ao líder a licença para governar. Diploma ou eleição constituem formas de reconhecimento, não o saber ou o poder reais. Para evitar abusos, mesmo dos que são prudentes ao serem eleitos (ou diplomados), existe a lei, freio dos desejos de quem governa (Legem ei velut collegam aut potius moderatricem libidinum adjiciemus). As leis, diz o autor, “foram criadas com tal fim pelos povos e os reis são constrangidos a governar não segundo seu arbítrio mas segundo o direito que o povo tinha estabelecido para eles”. Mesmo um rei bom não pode dispensar a lei. Buchanan pensa numa colaboração dos poderes, do povo, magistrados e rei, não os procedimentos cortesãos e nem o tumulto dos comícios. No seu entender, os deputados deliberam o texto de uma lei com os conselheiros do governo, depois submetem sua decisão preliminar (προβουλευµα) à aprovação do povo. A lei é mais poderosa do que o rei, o povo é mais poderoso do que a lei (Est enim velut parens, certe auctor legis ut qui eam, ubi visum est, concedere aut abrogere potest). O contrato entre povo e governante não retira do primeiro sua majestade, pelo contrário.
Nesse ponto surge a distinção entre rei e tirano. O tirano segundo o título pode até ser suportado, se o governo segue a lei e a justiça. Mas o de exercício, que viola a lei, devem ser “declarados inimigos públicos e considerados como sátiros, macacos e ursos, fúrias ou Kakodemônios”. Quando o governante viola a legalidade, rompe o contrato que estabeleceu com o povo. Assim, “o povo, de quem nossos reis ganham os seus direitos, é superior aos reis, e o conjunto dos cidadãos tem sobre eles o mesmo poder que eles têm sobre um de seus membros”. Nada vai contra a deposição de um tirano, mesmo que ele seja disfarçado. Buchanan analisa a Carta aos Romanos de maneira inusitada : São Paula falaria de um soberano legítimo e não de um tirano a ser obedecido. A carta a Tito fala em obedecer o que é bom e à Timóteo pede que se reze pelos reis e magistrados. Mas o que impede matar os reis péssimos e ao mesmo tempo por eles orar? O apóstolo falava de reis pagãos, que não tinha conhecimento da lei divina. Os reis cristãos ficam sem desculpa quando agem como tiranos. ()
O retrato acima, do povo e do rei, no entanto, precisa ser melhor precisado nos textos de Buchanan. Nem sempre o rei é o tirano por ele execrado (falando-se em termos históricos, na Escócia da qual ele faz a teoria) e pouco tem de “popular” o “povo” por ele evocado. Trata-se na verdade da nobreza sediciosa e que exigia privilégios, auto-nomeada “povo”. No entanto, sob tais nomes e com tal lógica, as idéias de Buchanan se espalharam pela Europa e abriram vias para a defesa da soberania popular, contra o arbítrio dos reis. o De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579) () no qual defende a responsabilização dos governantes e a soberania popular. O texto mostra que o assassinato pode ser justificado como ato virtuoso. A radicalidade com a qual Tiago 1º defende o direito divino dos reis, com muita probabilidade é devida à virulência das teses de Buchanan. Aluno de Buchanan, Tiago apreciou as lições de grego, de latim, de humanidades adquiridas com o mestre. Mas renegou o quanto pode a tese da soberania popular e do tiranicídio, especialmente nos livrinhos The True Law of Free Monarchies (1598) e Basilikon Doron. () Os textos de Buchanan foram importantes para toda a história política da Inglaterra, sobretudo na revolução do século 17 e do período dominado por Cromwell.
O texto mais célebre da modernidade, ao se tratar dos monarcômacos, intitula-se Killing no Murder. () Ele se dirige contra Oliver Cromwell, o Lord Protector da Inglaterra ou mero ditador no entendimento de muitos. O regime do protetorado aparentemente se instalou em 1653 sem comoções graves. Mas as duas supressões do Parlamento anteriores (a de abril e dezembro de 1653) mostram grave crise política. A Constituição imposta (The Instrument of Government) mostrava tudo, menos reverência para o princípio da representação do poder. O regime instalado era mais presidencial do que parlamentar. Sob a rubrica de “uma só pessoa e um só parlamento”, o autoritarismo aparecia sem muitos cosméticos. A prática de Cromwell face ao Parlamento se reduzia a visitas esporádicas, nas quais o governante falava longamente, sempre no costume dos ditadores que adoram alugar orelhas de parlamentares imaginados impotentes. Os Levellers tinham perdido sua força e seus projetos de mando constitucional tinham se atenuado ao máximo. Como sempre ocorre em regimes autoritários de lavra cristã, Cromwell também acreditou num contrato (Covenant) entre Deus e o povo inglês, no qual ele, o governante, seria o intermediário sacrossanto. Entre as proclamações demagógicas e o próprio Cromwell, no entanto, a modéstia carateriza os seus atos e falas. Para o povo, ele seria um quase Moisés. Para si mesmo, não passaria de um guarda de propriedade (Constable), para um povo rude e indisciplinado. Ditadores costumem parecer modestos...
Modestos, mas a sua tarefa consiste “apenas” em negar ou trair os ideais da revolução que os levam ao poder. No caso de Cromwell, tratava-se de recusar as “bravatas” da luta contra a censura, do exército politizado e sem hierarquias nobres, do nivelamento político democrático, reforma agrária, respeito ao misticismo religioso (Quakers), justiça contra o rei e magistrados não responsáveis (accountability). Em suma: a ditadura foi efetuada para acabar com as exigências de mudanças na ordem pública.
Entre os antigos Levellers (os niveladores) vários se indignam com o “realismo” do ditador e de seus amigos. Um deles era o jurista Wildman, preso em 1654 e solto no ano seguinte. Seu amigo Edward Sexby, soldado revolucionário e agitador, servira como espião e organizador de rebeliões na França, a serviço da Inglaterra. Na mesma operação, ele apresenta aos rebeldes franceses um “agreement” que seria cópia do programa dos niveladores. O que suscita a cólera de Cromwell, naturalmente. A partir daí, com Wildman, passa liderar planos contra o ditador. Do estrangeiro, ele começa a campanha para abater “o usurpador”. As tratativas com o rei destronado, no exílio francês, não foram adiante, porque Sexby insiste nos preceitos democráticos. O rei, como previsível, nada aceita que possa lessening the power of the crown and devolving an absurd power to the people. Cromwell, no Parlamento em 1656 denuncia Sexby num de seus longos discursos como a wretched creature, an apostate from religion and all honesty.
Os ocupantes das cadeiras parlamentares, beneficiados materialmente pela Revolução, não aceitaram pregações como as de Sexby. Eles na verdade queriam uma legitimidade nova para Cromwell, o que garantiria suas propriedades e a situação política de “segurança”. Não apenas de satisfeitos se compunha o clima político. Muitos setores não aceitavam o controle do ditador. Assim, Sexby imagina mover os defensores da realeza contra o governante e assim captar todas as insatisfações levantadas em seu protetorado. E surge o Killing no Murder em 1657. Preso, Sexby com muita probabilidade foi torturado e confessou, mas sem deixar suas convicções.
O primeiro arrazoado do texto gira ao redor da questão clássica: Cromwell é tirano ? Como sempre, Aristóteles e Cícero são fonte analítica. Mas a fonte maior, no passo, encontra-se em Maquiavel : “Tiranos efetivam seus fins muito mais por fraude do que pela força. Nem virtude nem a força (diz Maquiavel no Príncipe, cap. 9) são necessárias para aquele alvo, tanto quanto una Astutia fortunata, uma astúcia com sorte: a qual, diz ele (Principe, 2 capitulo 13) sem a força foi sempre considerada suficiente, mas nunca a força sem ela. E num outro lugar (Capítulo 18) ele diz que o caminho é Aggirare li cervelli de gli huomini con Astutia, etc.” Daí, a indicação de que Sua Alteza, o protetor, usa os artifícios maquiavélicos para conseguir seus alvos. ()
Além disso, é marca dos tiranos abaixar os bons. Eles, como diz Aristóteles, “purgam” as assembléias em sentido negativo (a fonte mais antiga disso é Platão, na fenomenologia do tirano feita na República, livro 8), e nelas só deixam quem não possua inteligência (Wit) interesse ou coragem para se opor aos seus desígnios (Aristóteles, Política, 5, cap. 11). Eles não suportam assembléias e colocam em toda parte espias e delatores e não saem do palácio sem guarda de corpo. Eles declaram guerras para divertir o povo e mante-lo ocupado. Eles mantêm aduladores. E coisas detestáveis, eles exigem que seus subordinados as cometam. Eles fingem cuidar do povo. Mas vendem as coisas santas, na religião e em outros domínios. Eles fingem receber inspiração divina. Eles pretendem, assim, amar a Deus e fingem que oráculos divinos conduzem sua ação. Todas essas marcas são encontráveis, diz Sexby, em Cromwell. ()
A segunda série de razões gira ao redor de outra questão clássica: é legal matar um tirano? Os juízos variam, afirma Sexby. Alguns acham que os tiranos são abortos, para a cura dos quais apenas a nossa paciência é eficaz. Outros acham que eles devem ser questionados pela suprema lei da salvação popular. Eles são responsáveis (answerable) diante dos povos, por quebrarem a fé pública. Ninguém, no entanto, “em boas condições de pensamento”, torna a pessoa privada juízes nos casos de tirania. Mas o próprio tirano é um caso de vida particular, não pública. Se o governante não assegura a felicidade e a segurança públicas, ele não é mais diretor da ordem pública, mas age nela como privado. Para ser legítimo, o governante deve ser parte da Civitatis, porque toda parte se subordina ao todo ao mandar ou obedecer. O tirano nunca se subordina. Só existe civitas quando o coletivo é como se fosse só homem. Sexby cita Sófocles em latim : Non est civitas quae unius est viri. Como o tirano não é parte da Comonwealth “mas se coloca acima da lei, não existe razão para que ele seja protegido pelas leis, pois não as reconhece. Deve ser considerado uma fera, nada mais. E seguem-se exegeses bíblicas e fontes antigas para validar a tese da tirania de Cromwell.
Terceira série de arrazoados: após mostrar o que é um tirano e indicar suas marcas, vem a questão de saber se é vantajoso para o coletivo a sua destituição. E Buchanan cita muitas autoridades sobre o assunto. Dos trechos recolhidos, o mais cortante é o de Maquiavel : quem apoia a tirania, deve matar Brutus. Um tirano, diz Platão, deve afastar toda pessoa virtuosa. E se com o tirano não é possível viver em paz, felicidade, segurança, etc., é saudável e vantajoso acabar com ele.
Os monarcômacos, dos quais dei apenas alguns exemplos, colocam o direito de resistência no centro de todo o seu sistema político. () Mas devido à substituição da soberania principesca ao povo, o seu problema passou para o campo mais amplo, da transgressão dos limites do Estado. Todos os direitos que eles atribuem ao povo contra e acima do tirano seriam consequências, não limites da soberania. O que se deve pensar de um poder sem limites, inclusive e sobretudo se tratamos de um soberano coletivo? Não irei analisar aqui as teses de Hobbes e da modernidade. Importa dizer que o impulso para definir limites aos soberanos principescos ajudou e muito na edificação das democracias ocidentais, como a inglêsa, a norte-americana e a francesa. Com a Revolução de 1917 na Rússia, encerra-se a eficácia da doutrina com o Estado totalitário. Doravante, no mundo, os satélites da URSS agiram como se assumissem o principio da resistência à tirania, mas logo que atingiram o poder, impuseram tiranias ainda piores do que as derrubadas por eles. O nazi-fascismo levantou contra seu programa de horrores a resistência de alemães, franceses, italianos, gregos. Mas logo que a Segunda Guerra foi vencida, o único foco de resistência encontrou-se na luta contra os países colonialistas. E logo após muitos movimentos de libertação, no poder, instauraram tiranias sangrentas que até hoje matam milhares e milhares de pessoas humanas. Nas consciências terroristas de hoje, há uma tintura das doutrinas sobre a resistência à tirania. Mas na verdade trata-se de tiranos que usurpam o título de resistentes, e também exercem a tirania de modo exacerbado.
A origem do nome “dictator” é obscura. Segundo Cicero (de Republica i, 40, 63) ele significa o que diz, dita. (dictator ab eo appellatur quia dicitur ). A derivação dictare, correta em termos etimológicos, é difícil de ser determinada históricamente. Em Roma o ditador era chamado magister populi e não ditador, segundo os livros sagrados (Cic. de Rep. i. 4. 0, 63; de Leg. iii. 3, 9; de Fin. iii. 22, 75). Nos inícios da república o governo era confiado aos dois consules, para que a cidadania fosse protegida contra o poder excessivo de um só, à semelhança do poder real. Mas logo surgiram situações de crise, nas quais o mais avisado seria entregar o poder a um só homem, com poderes absolutos e contra os quais não poderia existir apelo. Em 501 AC, nove anos depois da expulsão dos Tarquínios foi instituída a ditadura. São discutidos os nomes dos primeiros ditadores. Parece que o ditador inaugural foi T. Larcius, outras fontes indicam M. Valerius. Segundo Mommsen, Valerius foi o primeiro, mas é algo discutível. Tito Livio (Livy, História de Roma, I) afirma ter ocorrido uma guerra entre os Latinos constando nos Anais que um dos consules era suspeito de pertencer ao partido dos Tarquinios. Certas fontes afirmam que, dada a crise geral, a plebe curvado sob dívidas se recusou a servir no exército, o que levou à criação da ditadura para lhe impor os deveres. Tal explicação é falha do ponto de vista dos dados históricos. Mommsen afirma que a ditadura, na sua origem, integrava a constituição republicana, sendo o ditador olhado como collega maior dos consules. Tal opinião é discutida por autores mais recentes, como é o caso de Willems, Droit Romain, p. 267 ss).
Pela ordem legal originária, que regulava a escolha do ditador (lex de dictatore creando), ninguém seria elegível para o cargo se não tivesse antes sido consul (Liv. 2. 18). Mommsen recusa as indicações vagas de Livio sobre tal lei. (Liv. iv. 26, 48; vii. 24.) Quando era necessário um ditador o Senado passava um senatusconsultum segundo o qual um dos consules deveria nomear (dicere) um ditador , mas a nomeação pelos consules era sempre necessária. (Cf. A Dictionary of Greek and Roman Antiquities (1890) (eds. William Smith, LLD, William Wayte, G. E. Marindin)
A questão da justiça ou da injustiça de um regime une-se à pergunta sobre a justiça ou injustiça dos indivíduos e de sua consciência privada. Como seria possível assegurar a vida pública justa, com os crimes existentes na ordem coletiva? E como garantir o convívio de todos, se a consciência individual é invisível ? Quantas consciências deveriam estar corrompidas para que a crise se instalasse na república? E como resolver a crise, sem atentar contra o sacrário da consciência ? A história das ditaduras narra as aporias do que é visível e o do que é invisível. As ditaduras do século 20 sobretudo, para garantir a posse dos segredos estatais, praticaram a tortura como instrumento para arrancar as consciências da invisibilidade. Com tal procedimento, elas espalharam o medo, sem garantir a legitimidade. Veremos tal crônica com parcimônia e prudência, passo a passo. Não raro, voltaremos às sendas já percorridas, para bem marcar a passagem das formas jurídicas e políticas.
O poder em Roma, em especial nos tempos republicanos, gira ao redor das lutas entre a plebe e os boni viri, os nobres patrícios. Entre os cargos eletivos, os supremos eram os garantidos pelo consul (ou consules). Dois consules governam em conjunto, eram colegas. Com as mudanças institucionais trazidas pelo império, eles perderam o mando efetivo e se tornaram figuras simbólicas, reminiscências da era republicana. Nesta última forma política, surgida após a queda dos Tarquínio representados por Lucius Tarquinius Superbus, poderes do rei passaram aos consules, cada um deles chamado anteriormente praetor (ou seja, condutor) pois comandavam soldados. ()
As funções consulares são ligadas à paz (administrativas, legislativas, judiciárias) e à guerra, pois os consules exerciam os mais altos postos de comando. Dois consules eram eleitos a cada período de um ano. Eles eram escolhidos pela Comitia Centuriata. As comitia eram no direito público de Roma as assembléias solenes do povo, convocadas por magistrados competentes para estatuir sobre uma proposição (rogatio) legislativa ou judiciária ou para eleger magistrados. O povo soberano, na república, detinha o summum imperium, a maiestas. Tal prerrogativa se explicita com as leis Valeriae, as quais introduzem o apelo ao povo, ou provocatio. Durante a república, tal elemento político era o núcleo da constituição, e continuou como base do poder imperial, o cesarismo, quanto o supremo dirigente se afirma saído diretamente da vontade popular. A soberania era exercida nos comitia, divididos em cúrias, centúrias, tribos.
Sob o reinado de Servius Tullius (578 AC) surgem diferenças na Constituição romana. Quando o census é estabelecido, o rei Servius o teria dado como base da ordem política, financeira e militar do povo. Foi também a primeira vez que a plebe teria sido aceita nos comícios. A divisão da cidadania pelo censo, em classes e centúrias gera um novo tipo de assembléia popular, os comícios por centurias (comitia centuriata) . Estes eram organizados primitivamente como a nação em armas (exercitus, classis) distribuída por classes e por centúrias, como no combate, mas para assegurar a predominância dos ricos. O voto das centúrias formava a maioria a qual era constituída por cidadãos que no censo mostravam pelo menos 20, 000 as (aeris gravis) e, mais tarde, 100.000 as. Tal eram os cidadãos de primeira classe que contavam, além de 18 centúrias de cavaleiros tomados entre os mais ricos que tinham o census equester, 80 outras centúrias, partilhadas em um número igual de centúrias para os mais velhos (acima de 40 anos, os seniores) e os mais jovens (de 17 a 40 anos, juniores). A segunda classe cujo censo era de 1 500 as (aeris gravis, igual da 75 000 na moeda posterior) reunia vinte centúrias e o mesmo ocorria com a terceira classe, cujo censo ia até 10.000 as e para a quarta classe cujo censo era de 1000 as. A quinta e última classe, formada de cidadãos cuja fortuna ia até o 2000 as, reunia trinta centúrias. Em tal sistema, nota-se que a primeira classe sozinha fazia a maioria das centúrias.
Os comitia centuriata escolhiam o rei e os outros magistrados, decidiam sobre a guerra e a paz. Com a queda do rei, houve de início pouca modificação nos comícios, pois os consules guardaram as atribuições reais, que exerciam por um ano. Mas foi definida a lei Valerius Publicola sobre a provocatio ad populum em caso de abuso dos poderes pelos consules (provocatio) e sobre os limites das multas (mulcta) o que desenvolveu a jurisdição repressiva dos comícios por cúrias. Mais tarde, por influência dos tribunos os comitia plebis tomam lugar definitivo na Constituição com o nome de comitia tributa e só depois a lei Publilia de Volero (471 AC). Enfim, desde a lei das XII Tábuas os comícios por centúrias (maximus comitiatus) adquiriu a prerrogativa de julgar os crimes capitais (de capites civis). Os comícios por cúria perdem importância política e decaíram de fato com a lei Hortensia.
Passada a monarquia, o povo assume o sumo poder soberano. Quando o rei dividiu a massa popular em trinta tribos locais não havia a divisão legal entre patrícios e plebeus. Quando cai a monarquia se acirra a luta entre os dois polos da vida social e política, na busca da plebe pela igualdade política. No início, a reunião dos plebeus era confusa e irregular, na praça pública () em dias de mercado, época em que vinham para Roma os habitantes dos campos. São os primeiro concilia plebis. Quando ocorreu a primeira retirada dos plebeus de Roma (494 AC) a secessio, as reuniões tiveram caráter mais organizado, em assembléias de tribos, sob direção dos chefes (curatores). Os tribunos instituídos pelas leges sacrae conservaram o modelo (tribunus plebis). Os plebeus tiveram então, como se fossem separados da ordem estatal, seus direitos garantidos por um tratado de paz (leges sacratae) . Quando os patrícios violam o trato, eles são denunciados pelos tribunos em assembléias (concilia plebis). Várias leis garantem os direitos plebeus, inclusive uma que lhes dá o direito de provocatio diante das tribos, contra as decisões dos consules. A lei Cornelia de Sila (81 AC) retira das assembléias do povo a prerrogativa de legislar e só lhes deixa a escolha dos magistrados inferiores. Mas esta lei é derrogada por Pompeu.
Os consules eram escolhidos em Comitia centuriata com maioria aristocrática, como se viu acima. Eles aumentaram seu poder com a lex curiata de imperio. O termo consul pode ter origem em consulere (prover ou consultar) ou em cum salire, saltar ou caminhar junto. Eles eram dois, iguais em direito, e suas atribuições variaram segundo as épocas do Estado romano. O cargo era reservado aos nobres, no início. Só em 367 AC os plebeus chegaram até ele, quando a lex Licinia Sextia exige que pelo menos um consul a cada ano deveria ser plebeu. Um dos primeiros consules, Lucius Junius Brutus () era de família plebéia.
Detentores de poderes executivos e judiciários, os consules comandavam a guerra e a paz, além de aplicarem as penas capitais e outras menores. Mas em tempo de crise nomeavam um ditador por seis meses, seguindo a proposta do Senado. Enquanto governa o ditador, o imperium dos consules é congelado. O ditador era um magistrado da república. Ele estava acima do governo. A invenção da ditadura é devida à própria república. O seu operador era dito Magister Populi ou Praetor Maximus e Magister Peditum (Senhor da Infantaria) com poderes que os demais magistrados não podiam conseguir de maneira comum. O Senado, por um senatus consultum autorizava os consules a indicar um ditador, que era excepcional inclusive pelo fato de seu cargo não ser exercido colegiadamente e ser livre de prestação de contas. Ele não responde por seus atos de Estado após deixar o cargo. Sua função era administrar toda rei gerundae causa (pelos assuntos a serem efetuados) e para seditionis sedandae causa (para acabar com as sedições).
No começo do cargo, só poderia ser ditador quem tivesse exercido o consulado. Quando ocorria uma crise o Senado passava o referido senatus consultum que autoriza a nomeação do ditador. O primeiro ditador plebeu foi Gaius Marcius Rutilus (356 AC), nomeado pelo primeiro consul plebeu, Marcus Popillius Laenas. Excetuando Sila e Cesar, os demais ditadores tinham o período de tempo de cargo limitado. Mas em contrapartida, eles tinham maior independência do que os consules diante do Senado. Contra seus atos não existe apelo. Ele governa por decretos e pode mudar as leis que julga impeditivas de resolver a crise. Ele pode introduzir novas leis, sem que sejam ouvidas assembléias, mas não pode usar o tesouro público sem autorização do Senado.
Em 82 AC, Sila foi nomeado para a ditadura com poderes inéditos, os de dictator legibus faciendis et reipublicae constituendae. Esta missão era similar à da rei gerundae causa, salvo nos limites. Cesar retoma a ditadura rei gerundae causa em sua primeira vez no cargo, depois foi indicado dictator rei gerundae causa por um ano inteiro (46 AC) e depois por nove vezes consecutivas nomeado por um ano, foi ditador portanto por 10 anos. O Senado o fez dictator perpetuus (permanente). Com a morte de Cesar, seu colega de consulado, Marcus Antonius passou a lex Antonia que aboliu a ditadura.
Maquiavel, nos Discursos sobre a Segunda Década de Tito Livio (Livro I, Capítulo 34) elogia a ditadura romana. No seu entender a ditadura fez bem, não prejudicou aquele Estado. Ele critica os escritores que acusam aquele instrumento de poder como se ele gerasse tirania. Se não fosse tal cargo, dizem os que denunciam a ditadura nos tempos modernos, Cesar não teria podido instaurar o seu mando tirânico. Tal juízo, admoesta Maquiavel, não é algo bem pesado e se tornou uma crendice. Não pertence ao nome e ao cargo de ditador a culpa da tirania em Roma, mas a autoridade tomada aos cidadãos pelo tempo longo chamado império. Mesmo sem nome ou cargo, haveria uma queda tirânica: é a força que gera o nome, nunca o nome que gera a força. O ditador, quando obedecida a ordem pública (e sem usar autoridade própria) sempre fez o bem à cidade. O que prejudica a república são os magistrados que impõem a si mesmos, a autoridade conquistada por vias extraordinárias, não as que surgem por via ordinária. Esta ordem das coisas foi tão constante em Roma que, por muito tempo, não se viu um só ditador que não tenha feito um bem muito grande. E desse fato existem razões evidentíssimas, diz Maquiavel.
A primeira razão é que para um cidadão possa ofender e pilhar a autoridade extraordinária, é preciso que ele tenha muitas qualidades. Isto, numa república não corrompida, deixa de ocorrer, pois é necessário que ele seja riquíssimo e ter tantos aliados e partidários unidos em facção, o que não pode existir onde as leis são observadas. E quando existem facções tais homens são temidos de tal modo que jamais podem esperar reunir em seu favor os votos livres. Além disso, o ditador era nomeado por tempo limitado, e não era perpétuo, e apenas nomeado para obviar as dificuldades para as quais era encarregado. E sua autoridade se estendia em poder deliberar por si mesmo sobre os remédios de um perigo urgente , e tudo fazer sem consulta, e a todos punir sem apelação. Mas ele não podia fazer coisas que diminuíssem o Estado, como tolher a autoridade do Senado ou do Povo, desfazer as velhas ordens da cidade e fazer novas. Assim, passado o breve tempo da sua ditadura, e com a autoridade limitada que ele tinha e com o povo romano não corrompido, era impossível que ele ultrapassasse os seus limites e fizesse mal à cidade. E de fato podemos notar que ele nunca fez mal.
Em verdade, adianta Maquiavel, entre as ordens romanas, esta é uma que merece ser considerada e enumerada entre as que foram causas da grandeza daquele império. Sem tal ordem as cidades dificilmente sairiam dos acidentes extraordinários (accidenti istraordinari). Notemos desde já: para Maquiavel, extraordinário deve ser o perigo, a crise da cidade, não o poder. A ditadura, enquanto foi ordinária, comum, sem que seus limites tivessem sido quebrados, era um remédio eficaz para a saída das turbulências sociais e políticas. () Haveria algum vínculo entre semelhante idéia de ditadura, e o conceito de “exceção” ao modo de Carl Schmitt? É algo a ser investigado e discutido com vagar e prudência. Porque as ordens costumeiras da república têm um movimento lento (não podendo nenhum conselho ou magistrado, por si mesmo, fazer qualquer coisa, mas precisando em muitas coisas necessidade um do outro, e porque nesta ajuda mútua reunir as vontades gasta muito tempo) os seus remédios são perigosíssimos quando precisam remediar uma coisa para a qual não existe muito tempo. E no entanto as repúblicas devem ter entre suas ordens um modo semelhante. Notemos que o extraordinário do problema exige tempo rápido. Aqui, temos uma justificativa da ditadura pela celeridade das soluções que ela traz para as lutas intestinas ou para as guerras em perigo. O kayrós é um elemento essencial na justificativa maquiavélica da ditadura. O ditador age em tempo certo e, após sua ação, deixa o cargo em tempo certo. Trata-se de uma adequação dos ritmos longos da vida ordinária com o ritmos breves das crises. Sem esta harmonização cronológica, a ordem dos tempos se inverte, a crise se prolonga e torna impossível viver numa cidade onde só vigoram exceções, sem regras. Viver sem regras numa cidade só pode resultar em tirania, de um lado, ou em dissolução do corpo cívico pela guerra permanente.
A república de Veneza, diz ainda Maquiavel, cuja excelência é reconhecida entre as repúblicas modernas, reservou autoridade para poucos cidadãos que, em necessidades urgentes, sem maiores consultas, deliberam em acordo mútuo. Pois quando numa república falta este meio, é preciso ou dominar as ordens, arruinando-as ou, para não as arruinar, rompê-las. E numa república não poderia jamais ocorrer algo que com modos extraordinários se tivesse de governar. Voltamos à questão do que é extraordinário na ordem republicana. A ditadura não é perene, ela é suscitada por causas extraordinárias. Se ela impõe ao Estado a sua essência, ou seja, a de ser extraordinária, nenhuma Constituição subsiste, porque a Constituição é justamente a regra comum, ordinária que permite a garantia dos direitos de todos e de cada um. Mesmo que a ditadura perene fizesse bem, ela faria mal com o péssimo exemplo de suspensão do império da lei maior. Se as leis são desobedecidas com a desculpa de fazer o bem, logo elas serão desobedecidas para fazer o mal. Uma república jamais pode ser perfeita se nela as leis não prevejam tudo, e o remédio não esteja pronto, além do meio de o empregar.
As repúblicas em cujas crises não existe o refúgio do ditador ou de alguma autoridade similar, sempre tombam, nos graves acidentes, em ruínas. E os romanos previram este remédio e o modo de o empregar. Sendo a nomeação do ditador causa de alguma vergonha para os consules, pois eles, chefes da cidade, deveriam obedecer como os demais, e pressupondo que isto fizesse nascer o desprezo entre os cidadãos, quiseram que a autoridade para escolher o ditador estivesse nos consules, pois pensavam que, se um acidente ocorresse em Roma, seria preciso tal régio poder, eles o nomeariam voluntariamente, por si mesmos, o que lhes doeria menos. Porque as feridas e todos os outros males que o homem faz a si mesmo, voluntariamente e por escolha, doem menos depois de longo tempo, do que os causados por outros Ainda que nos últimos tempos os romanos tenham usado, em troca do ditador, conceder tal autoridade aos consules, com estas palavras : Videat Consul, ne Respublica quid detrimenti capiat (Vigie o consul para que a a república não seja prejudicada).
Existiram por volta de 76 ditaduras entre 501e 202 AC. Segundo Mommsen, trata-se, naquela magistratura, de uma ressurreição temporária e excepcional de realeza em toda sua força. Ela entra no jogo regular das instituições de Estado, embora seja uma suspensão temporária, mas profunda, do direito comum. Ela é um instrumento da salus populi, uma das marcas significativas, no período absolutista europeu do século 17 da raison d’ État. Os magistrados que julgam necessária a ditadura não podem assumi-la pessoalmente. O ditador deve ser nomeado pelos consules, ou por um deles, sem eleição popular. O povo entra pela primeira vez na nomeação de um ditador, pelo que parece, entre 217 e 202, durante a guerra púnica, para a indicação de Q. Fabius Maximus e de seu Mestre de cavalaria M. Minucius Rufus. Em 211 por ato do Senado o povo recebe a permissão para eleger diretamente o ditador (mas apenas para presidir os comícios). Houve reação contrária do consul, pois o fato negava sua prerrogativa. pela primeira vez na Ele é único no cargo, pois sua indicação visa impor a unidade no exército e na urbe e nomeia um auxiliar, o Mestre da Cavalaria. A ditadura não suprime as demais magistraturas, as suspende e todas se colocam ao seu dispor. Seus atos e decisões não se submetem à provocatio, uma espécie de habeas corpus a que o cidadão tem direito em tempos normais. Um elemento que serviu para trazer uma imagem negativa da ditadura, nos seus tempos, aventa um comentador, é o seu caráter pessoal e não colegial. Isso anuncia a era de um “homem providencial” vitorioso, com função quase monárquica, o que se aproxima das ditaduras de Sila e de César. ()
Sila retoma o nome de ditadura no ano 82 AC, depois de 120 anos de esquecimento. Na ocasião, a Itália é arrasada por duas guerras que penetram uma na outra, a guerra contra os aliados de Roma, que ao desesperar de adquirir direito de cidade, se levantam em armas. E uma guerra civil, inaugurada em 88 por Sila que recusou perder um comando militar e seguiu contra Roma com tropas e depois de um massacre e uma tentativa de restauração da lei, seguiu para a Grécia e para a Ásia para combater Mitrídates, inimigo mortal de Roma. Esta viagem permite a posse do poder ao grupo inimigo de Sila, dirigida por Marius e Cinna. Sila retorna vitorioso e começa os massacres em Roma, o terror dá-lhe o poder único. O dirigente organiza a eliminação física dos adversários (as proscrições) e arranca do público todo grupo oposto a ele. Sila dirige, mas sem legitimidade legal.
É então transfigurada a ditadura, que deveria ser provisória e daria a Sila a missão de “redigir leis e dar outra constituição ao Estado”, o que relembra os decemviri do século 5, a que aludiremos mais adiante, a propósito do juízo positivo de Maquiavel sobre a ditadura. A lei Valeria cobriu, pois, retroativamente, os atos de Sila efetuados antes de 82. A lei não colocou fim às proscrições as quais, no dizer de Cicero, “era uma pena aflitiva imposta nominalmente a cidadãos, sem julgamento”. Sila guarda o poder de executar quem ele desejasse, sem preocupações jurídicas. O que trouxe de novo a ditadura de Sila, se comparada às antigas formas ditatoriais? Em primeiro lugar, que ela permite ao seu titular um poder “constituinte” ilimitado, o que era desconhecido anteriormente no cargo. () Segundo Mommsen a ditadura de Sila difere das anteriores pela duração no tempo e pela competência ilimitada. Mas ele exerceu o cargo um ano apenas, ou na verdade dezoito meses. Ele a deixou para exercer o consulado (em 80 AC). O regime político trazido pelas leis ordenadas por Sila não apresentam traços da monarquia. Trata-se de um regime oligarquico, que tende a açambarcar o poder do povo, em especial diminuindo os poderes dos tribunos. Os senadores tiveram sua importância aumentada. Sila consegue atenuar as lutas entre facções de senadores e diminui o poder do povo.
Qual seria a grande novidade da ditadura exercida por Sila? Ela resulta de uma luta entre facções civis e militares, sobretudo dessas últimas. Ocorreu então, pela primeira vez, a tomada do poder de fato por militares, no meio de guerras, a contra os aliados de Roma e entre chefes de soldados. Um general vitorioso toma o poder e o exército se transforma em instrumento para a conquista do mando político. O exército se define como uma espécie de “partido do ditador”, Sila. Este assume sozinho todos os poderes, antes mantidos antes e após a ditadura. E a ditadura se tornou, a partir daí, sinônimo de terror contra os adversários internos. A partir dela, todos os que chegam ao mando acenam com o terror contra os renitentes. Todos esses traços surgem nas ditaduras modernas, como veremos adiante.
A ditadura sob Cesar retoma o paradigma de Sila. Depois da morte deste último as cisões militares e civis continuam, sempre mais graves. Cesar era um dentre três ou quatro indivíduos com chances de atingir o poder. () Cesar, no consulado, exerce uma atividade política excepcional, o que lhe obteve amizades e uma espécie de partido. No mesmo passo, ele legisla em diversos domínios tendo em vista conquistar a opinião pública.
A situação política do tempo era bastante clara, com o domínio de partidos armados nas mãos de Crassus e de Pompeu. Estes dispunham de soldados em número considerável, finanças independentes do tesouro público, territórios nas províncias que fragmentam o Estado. Eles também controlam, por meio de seus partidários, o poder civil que se atomizou, tornando-se impotente. A guerra civil se alastra para todo o império, com alguns homens na liderança dos partidos, e massas de soldados ao seu serviço.
A estratégia política de Cesar, além de reforçar o número de seus clientes, receita conhecida por todos os que lutavam entre sí naquele momento, será de jogar sobre seus adversários a culpa pela guerra, e também a suspeita de retomar os procedimentos odiosos de Sila. Pompeu não soube evitar tal armadilha. Cesar apresenta a si mesmo como o contrário de Sila, acentuando com propaganda competente a própria clemência, contra o rigor violento do antigo magistrado. Ele será o adversário das proscrições na opinião pública. Seu mando, no entanto, continua a ser pessoal, como em Sila. Sem o uso do terror, comum no período de Sila, Cesar precisa de uma forma jurídica que mando que lhe permita o poder soberano. Esta forma jurídica só poderia ser nova, não repetir as do passado.
Cesar, no entanto, usa novamente a casca da ditadura, a velha fórmula de salvação do povo. Mas agora o cargo trazia prerrogativas inéditas. O obstáculo maior para a consecução do que permitiria a magistratura residia em Pompeu. Por isso, logo após a conquista da Itália e da sua primeira entrada em Roma, Cesar se contenta com o imperium proconsular. Só em 49 AC ele é feito ditador por um pretor, nomeação confirmada pelo povo. Depois disso e do sítio de Marselha, que exerceu por 11 dias a ditadura em Roma. No entretempo, conseguiu ser eleito consul, em 48.
As guerras civis continuam até 46, com o destino geral indeciso, sobretudo o de Cesar, o qual tinha a Itália nas mãos. Só depois de Farsala, Cesar é nomeado novamente ditador, por um ano, enquanto ainda é consul. Em abril de 46 é nomeado ditador novamente, agora por dez anos, nomeação renovável a cada novo ano. Em 44, aceita o título de ditador vitalício. Tais ditaduras, como a de Sila, tinham seu lado constituinte.
É possível perguntar a causa da insistência de Cesar na ditadura, quando outros cargos eram disponíveis para a sua ambição. Uma hipótese é que a ditadura, com seus poderes amplos, seria uma espécie de guarda chuva para esconder os planos de monarquia, que o político com muita probabilidade almejava. A ditadura vitalícia daria a Cesar o tempo de ordenar o Estado para aquele alvo. Nesse projeto pode-se delinear o que, na história política até hoje, indica-se com o nome de cesarismo. Trata-se de um poder militar, obtido graças à um exército leal ao seu líder. Como Alexandre, Cesar vence o mundo; como Sila, vence os inimigos internos. Ele cria para si uma clientela militar. Tal poder também se fundamenta nas amizades do líder, tomadas em setores sociais e econômicos mais amplos do que o antigo círculo dos aristocratas ou mesmo dos plebeus romanos. Os amigos de Cesar tomam conta dos cargos e do Senado, dão-lhe confortável maioria de apoio. O mais original, no entanto, é o caráter plebiscitário do mando cesarista. Não apenas a busca de popularidade, mas a busca programada da plebe urbana, seja pela prática do evergetismo (a distribuição de alimentos e de jogos, etc), seja pela exaltação das fileiras que o apoiam.
Se a ditadura é considerada positivamente por Maquiavel, ele não expressa o mesmo juízo acerca de algumas instituições romanas, assumidas em tempos de crise. É o caso do decemvirato. Dez cidadãos foram escolhidos pelo povo para fazer leis. Mas com o tempo, pensa nosso autor, eles se tornaram tirânicos, destruindo a liberdade geral. Isto mostra que nem sempre a autoridade não conseguida pela força é favorável ao bem coletivo. Torna-se preciso considerar então a maneira de conceder autoridade e o tempo pelo qual ela é dada. Quando se confia uma autoridade sem limites por longo tempo (um ano ou mais) ela sempre será perigosa, mesmo produzindo bons efeitos. Porque maus efeitos também podem dela sobrevir. Ela depende das boas ou más qualidades a quem se confiou o destino da cidadania.
Comparando-se a autoridade dos decemviri à dos ditadores, a dos primeiros é mais extensa. A nomeação ditatorial não anula a dos tribunos nem a dos consules, nem o Senado ou qualquer outra autoridade. Se podia afastar um dirigente de seu cargo, ele não conseguia destruir o Senado inteiro e fazer leis sozinho. Os dirigentes serviam como guardas do ditador, impedindo seu desvio de rota. O contrário se passou com os decemvires, que anularam os consules e tribunos, tiveram o direito de legislar e as prerrogativas anteriores do povo. No segundo ano de seu mando, excitados pela ambição de Apius, abusaram de seu poder.
Assim, enunciar que uma autoridade concedida pela escolha livre de um povo nunca foi nociva às repúblicas, supõe-se que o povo nunca se determina a conferí-la sem convenientes precauções ou por um tempo longo. Quando, por erro ou cegueira, o povo a concede imprudentemente como o fizeram os romanos nesta ocasião, sempre acontecerá o que se passou. É preciso deixar as argumentações maquiavélicas de lado, por enquanto, e nos perguntar sobre a significação dos decemviri. () Para tal fim, torna-se necessário discutir a situação social, econômica e política de Roma na época.
O patriciado detinha a hegemonia do poder político. As magistraturas, os postos no Senado, empregos e sacerdócios, todos eram ocupados pela nobreza. Os segredos do Estado estavam em suas mãos. () Eles decidiam os assuntos na grande assembléia do povo. E possuem seguidores em grande número. Cabe-lhes verificar ou vetar decisões populares. O exercício desses poderes leva o patriciado à superbia.
A atitude dos nobres diante dos plebeus é sentida pelos últimos, expressa pela palavra superbia. A formação deste vocábulo é próxima à de probus, cuja origem é muito antiga na lingua. () Com ela, os pobres julgavam os optimates arrogantes. Segundo Haffter, citado por Hellegouarc’h, o termo descreve a atitude dos ricos que olham de cima, em suas liteiras, os pedestres . A plebe se queixa de maneira constante da superbia dos patres. Segundo Salustio, trata-se de um defeito comum a todos os nobres. Catilina alega a soberba dos magistrados como uma causa de sua conjuração. A soberba, na mente dos republicanos, era uma característica da monarquia. O último rei tinha como apelido, justamente, o Soberbo. Plauto une superbus e basilicus (Plauto, Pseud., 458-461). Seneca cita Calígula como soberbo, quando ao conceder a vida ao senador Pompeius Poenus deu-lhe a sandália para ser beijada (Benef., II, 13,1).
Com a expulsão dos reis, para garantir seus poderes, os nobres tentaram atrair os plebeus com alguns benefícios, sobretudo econômicos. Os direitos de duana são abaixados e quando os cereais escasseiam, grandes compras são feitas pelo Estado. O sal é monopolizado para garantir preço baixo ao povo. A grande festa popular é aumentada em um dia. Enfim, tudo o que ficou conhecido na história como a política do panis et circensis. () Entre as medidas, a questão das penas pecuniárias aplicadas aos pobres. Os magistrados não poderiam aplicar no mesmo dia a multa de duas ovelhas ou trinta bois sem lhe possibilitar o apelo (provocatio).
Com a república, reformas foram realizadas, para dar novo sentido político e administrativo ao Estado, depois da queda dos reis. O primeiro a ser mudado foi o sistema financeiro. A realeza não favorecia demasiado os capitais poderosos. Ela, pelo contrário, tinha incentivado ao máximo a criação de propriedades rurais. A nova nobreza republicana busca destruir as classes médias, em especial a pequena e média propriedades fundiárias. Na jovem república, o alvo é aumentar o poder dos grandes proprietários e dos capitalistas. No mesmo passo, esta política só pode levar ao crescimento do proletariado presos à gleba. () A diminuição das tarifas alfandegárias, embora popular, tinha como objetivo o interesse do grande comércio. Mas a administração indireta das finanças ajudou ainda mais o grande capital. A compra oficial de grãos e de sal, entre outras, aumentam a importância dos intermediários. E gradativamente o Estado deixa a particulares suas receitas indiretas, todas as suas despesas, todas as suas operações mais complexas, para os integrantes desse campo intermediário (Mommsen usa o termo Mittelmoenner, que o tradutor francês verte por middle-men, em inglês). Este últimos, por uma soma, dada ou recebida, administração as finanças por sua própria conta. Isto abre as portas aos grandes capitalistas. O próprio Estado queria segurança de seus investimentos e dava a prerrogativa de comandar os cofres aos grandes proprietários, excluindo todos os demais.
Logo, aqueles capitalistas se tornaram os grandes operadores dos recursos estatais e grandes fornecedores do Estado, o que aumenta seus lucros com segurança. Com tal privilégio, logo tomam lugar entre os poderosos com a figura de seus “servidores” quando, na verdade, serviam a si mesmo do setor público. Comentário de Mommsen: “O edifício de sua plutocracia chocante e estéril tem analogia com a dos modernos especuladores da Bolsa”.
Esse modelo financeiro é mais duro ainda na gestão das terras públicas, nele ocorrendo a supressão das classes médias. Na monarquia o uso das terras públicas era privilégio ligado ao direito de cidadania. Quando um plebeu tinha acesso a elas, tratava-se de derrogação de uma lei formal. Não existia praticamente o uso fixo dos fundos públicos, como se fossem propriedades. Cabia ao arbítrio do rei distribuir o uso daquelas terras. Com a república, o uso das referidas terras passou a ser reservado apenas aos cidadãos “do melhor direito” ( optimo jure civis), ao patrício. O senado tolera o uso por plebeus ricos, ou que apoiam os nobres. Mas os pequenos proprietários e trabalhadores comuns são excluídos liminarmente. Antes, os pequenos rebanhos pagavam somas diminutas para uso das pastagens (a scriptura), mas os questores nobres as negligenciaram, embora fornecessem bons recursos aos cofres oficiais. Antes, as conquistas territoriais permitiam ceder ao cidadão pobre porções de terra. As assinalações (o nome destas cessões) passam a ser concebidas como ocupações, nem propriedade cedida nem aluguel por tempo fixo, permitem ao primeiro ocupante o seu uso, mas mantêm a terra nas mãos do Estado (note-se, dirigido pelos patrícios) que pode, ao seu arbítrio, expulsar o usuário. O mesmo usuário é obrigado a pagar ao poder constituido um quinto dos frutos em óleo e vinho. Trata-se, diz Mommsen, da aplicação pública do precarium.
Essas inovações republicanas tendem a destruir a pequena e média propriedades, o que coincide com ao aumento dos impostos, para preencher o vazio de entradas como a scriptura, mencionada acima. Com isso, o campo deixou de ser um caminho para o proletariado urbano, à semelhança, ainda afirma Mommsen, do que ocorre no século 19, nas “imigrações regulares organizadas em grande escala”. O problema social se agrava, porque a clientela é afastada das grandes propriedades devido ao uso de escravos. O pequeno produtor é expulso das terras, e torna-se o servidor ou escravo do seu credor, ou então, sob o peso dos impostos e das dívidas, é obrigado a manter suas terras à meia com o rico. Os capitalistas têm o campo aberto para as especulações e se jogam ao campo como grandes proprietários, ou usam os endividados para servir como gerentes de suas possessões. Para evitar o descalabro das dívidas e dos riscos sociais que tal procedimento trazia, o legislador antigo editara leis contra o empenho hipotecário. Mas a prática desmentiu a lei, com o empréstimo pessoal jogando os trabalhadores na dívida. Tudo isso gera a miséria e o desespero, o sal das revoltas intestinas e das reivindicações populares contra os arrogantes nobres e ricos.
A separação da sociedade, agora, passa a ser entre ricos e pobres, e não mais tanto entre nobres e plebeus. Surgem plebeus ricos e poderosos. O Senado passa a contar com quase metade de plebeus. Como o mesmo Senado açambarca a alta administração financeira, excluindo outras magistraturas patrícias, os ricos (plebeus e nobres) enriquecem ainda mais, caindo o peso do pagamento sobre os populares que não são eleitos para o Senado. Dentre os “homens comuns” enriquecidos, os mais habilidosos e competentes, logo passam para o lado dos opressores e deixam o dos oprimidos.
Mas a arrogância da riqueza e do poder não pode ignorar os limites sociais do arbítrio. Os nobres poderiam manter sua força política, caso protegessem as classes médias, ou então se dessem igualdade de direitos aos plebeus ricos, permitindo-lhe o acesso ao patriciado com o cargo de senador. Mas a casta nobre não abriu mão dos seus privilégios, o que acirra o ressentimento social e político. A primeira crise ocorre em 510 AC e a revolução social em 494 AC. Os pobres premidos pelos credores, perdem a paciência. Em 495 AC seria preciso um recrutamento em massa para a guerra, os chamados se recusam a partir. O consul Publius Servilius suspende provisoriamente a lei de processo por dívidas, libera os encarcerados e impede as prisões por aquele motivo. Os camponeses vão para a guerra e deram a vitória a Roma. Quando voltam, tudo era como antes da guerra, prisões, etc. O segundo consul, Apius Claudius não abre mão das leis de crédito. Em vão os soldados reclamam com Publius Servilius, que não consegue protegê-los. A dupla magistratura mostra que serve para enganar o povo: um consul promete algo, outro nega.
A guerra recomeça no ano seguinte, a palavra do consul não foi mais ouvida. A fides estava abalada até à raiz, e a fides é um sustentáculo do poder em Roma, em todos os setores, do público ao privado, dado que sua base era primordialmente religiosa. () Foi preciso um ditador Manius Valerius e os camponeses se submeteram ao recrutamento por respeito à pessoa do magistrado. Quando Roma venceu, o ditador propôs ao Senado planos de reforma, em vão. Com isto, o exército acampado na periferia e debandou para a região de Crustumerium (monte redondo) entre o rio Tibre e o Anio e fez de conta que iria fundar uma cidade plebéia numa região das mais férteis do mundo romano. Esta é a secessão do povo que preocupou ao máximo os arrogantes ricos e nobres. O ditador negociou uma reconciliação e houve o retorno do povo e obteve do mesmo povo o título de Maximus como sobrenome. Esta secessão deu origem ao cargo de tribuno do povo.
Com providências provisórias que atenuavam a sorte dos devedores, o ditador publica uma lei importante e a fez jurar individualmente por todos o integrantes da cidade, como garantia aos secessionistas. A lei criava, diante dos consules, dois tribunos plebeus, eleitos pelas curias. Seu poder acabava fora da cidade pois alí só tinham império os consules ou ditadores. Eles tinham direito de anular por sua oposição pessoal ou interposta todo prejuízo causado a um cidadão pelos magistrados e sua competência era ilimitada em termos de justiça criminal. Em caso de apelo, iam diante da assembléia popular para defender sua causa. Logo esta prerrogativa evolui para a de propor plebiscitos. Eles podiam, assim, deter o movimento administrativo e de juízos, também podiam permitir que recrutas não servissem ao exército, impediam a prisão de devedores, etc. Seu título de protetor do povo o proibia de sair da cidade uma só noite. Sua porta deveria ficar aberta dia e noite. Eles poderiam mandar prender por contumácia até mesmo os consules, quando os cidadãos recusavam obedecer a sua função de juiz. Eles eram assistidos por dois edis populares, e tinham ao seu lado dez juízes (judices decemviri) cuja competência ainda não se conseguiu atribuir. Este cargo muda fundamentalmente o caráter jurídico das magistraturas, pois elas eram, sobretudo nos níveis mais elevados, irresponsáveis. Com os tribunos se estabelece algum controle sobre os magistrados. Este remédio causa, por sua vez, um mal: tornam-se quase irreconhecíveis as competências dos cargos, tanto administrativos quanto judiciários. A concorrência das atribuições consulares e tribunícias joga todos os cidadãos (corpos e bens) nos braços das assembléias partidárias.
Quando um tribuno nega algo, ele paralisa as vontades de seus colegas e, quando acusa, cada um deles pode vetar a sua acusação. Tudo isso enfraquece o Estado. Como, por sua vez, a própria ordem jurídica era feita em favor dos patrícios e ricos plebeus, os tribunos podiam apenas remediar uma ordem sem justiça. A guerra civil continua sob a forma das lutas dos partidos, de um lado os nobres e ricos com os consules e, de outro, os pobres com os tribunos. Os ataques mútuos entre facções e famílias, entre líderes e magistrados chegou às vias de fato. Muita gente deixa Roma em busca de melhores ares. Nesse clima de luta de todos contra todos, sobressai a figura de Coriolano.
Como em todas as representações sobre Roma na modernidade, somos arrebatados pela narrativa dos fatos relativos a Coriolano lidos na peça de Shakespeare. O poeta usou muito o relato de Plutarco sobre Coriolano, nas Vidas Paralelas. () Coriolano se chamava Caius Marcius e recebeu o apelido por ter conquistado a cidade de Coriola dos Volsques. Em 491 AC ele perdeu a candidatura ao consulado nos comícios da centurias, ele teria proposto acabar com a venda de grãos dos armazéns estatais, caso a plebe não renunciasse à instituição dos tribunos do povo. Acusado pelos tribunos ele deixa a cidade, pois a pena seria a morte. E volta, unido aos Volsques que vendera, para atacar Roma. Os romanos pedem que sua mãe vá até ele e o repreenda. Comovido, trai agora os aliados Volsques e morre.
Segundo Mommsen, mesmo que a história não seja verdadeira, ela mostra uma situação social e política efetiva, uma história de fanatismo das famílias nobres e ricas de Roma, sempre opostas às concessões de direitos em relação à plebe. Exceções existiram, como a tentativa de Spurius Cassius de gerar uma lei agrária que diminuísse a potência dos ricos. Sua lei previa a medição das terras públicas e sua locação em proveito do tesouro e a partilha do resto aos mais necessidades. A nobreza se levantou contra ele, seguida dos plebeus ricos. Todas essas realidades fazem do Estado uma fragmentação facciosa, em lutas intestinas que impediam qualquer estabilidade política.
A peça Coriolano de Shakespeare é raramente levada ao público. Trata-se de um trabalho que desencoraja tanto os defensores das ordens estabelecidas quanto os seus adversários. Ela é uma crônica histórica que o autor transformou em drama. As cenas que ela evidencia trazem um herói que não é herói, e que em toda a sua atividade está cercado de gente. Nas 29 cenas, 25 se passam com a presença de multidões. A massa, como é o comum, conta com indivíduos sem nome, chamados apenas pela sua função coletiva: primeiro cidadão, segundo cidadão, primeiro senador, segundo senador, primeiro guarda, segundo guarda, primeiro conjurado, segundo conjurado...() Cada pessoa emerge da massa e nela mergulha a seguir. A tragédia tem a massa como pano de fundo.
O herói viola a lei moral, trai sua pátria e depois se arrepende. A situação de Coriolano recorda a de Polinice em Antígona. Creonte tirano decreta que o jovem filho de Édipo não merece a sepultura por ter se levantado contra a sua cidade. Segundo o comentário de Hegel, “Nesta proibição ocorre uma legitimação essencial, a preocupação (Sorgen) pelo bem da cidade inteira. Mas Antígona é animada por uma potência igualmente ética, o amor sagrado pelo irmão, que ela não pode deixar insepulto como pasto das aves. Não cumprir o dever de sepultura seria contra a piedade familiar, ela desobedece a proibição de Creonte. As colisões podem ser introduzidas do modo mais variado; mas a necessidade da reação (Notwendigkeit der Reaktion) deve ser ocasionada não por algo bizarro ou repulsivo, mas por algo que é em si mesmo racional e legítimo”. () Quando ocorre a colisão entre os indivíduos elevados e o universal, surge a tragédia.
Coriolano é elevado, nobre, e se volta contra a cidade que tinha salvado anteriormente. Até aí, a situação trágica é similar entre Polinice e Coriolano. Mas a situação da família é diferente. Em Sófocles a irmã do suposto traidor desobedece a lei do governante em nome dos valores religiosos tradicionais. Em Shakespeare, a irmã e a mãe de Coriolano exigem que ele não vença a cidade de Roma. O universal aparece como algo único, superior aos laços familiares. Estes últimos são usados pelo Senado para prender Coriolano ao coletivo pátrio, numa espécie de astúcia do mando político. Tal aspecto da ética romana é captado por Hegel nas Lições sobre a Estética: “Devemos distinguir muito bem a areth e a virtus romana. Os romanos tinham a sua cidade, as suas instituições jurídicas e a personalidade devia abdicar face ao Estado como fim universal. Ser abstratamente apenas um romano, representar na própria enérgica subjetividade apenas o Estado romano, a pátria e a dignidade da virtude romana. Os heróis são, no entanto, indivíduos que, partindo da autonomia do seu caráter e de seu arbítrio (Willkür) acolhem em si mesmos e realizam o todo de uma ação e nos quais aparece a disposição individual quando fazem o que é justo e ético. Mas esta unidade imediata de substancial e individualidade de inclinações, impulsos, querer é implícita na virtude grega, de modo que a individualidade é para si mesma a lei, sem ser submetida à uma lei por si subsistente, para um juízo e um tribunal” () Seja o que for, em termos de nexo lógico entre indivíduos e Estado, o caso de Coriolano foi definido da maneira pela qual Mommsen o indica, ou seja, no quadro da lutas das classes romanas.
A história de Coriolano se passa logo após a queda dos reis, na gênese mesma da república. Tito Lívio dele fala brevemente e Plutarco com maior extensão nas Vidas Paralelas, texto traduzido para o inglês em 1679, fonte de Shakespeare. Vale a pena, para recordar as análises de Mommsen, partir do escrito de Plutarco. “Ocorreu que o Senado, sustentando os ricos, entrou em grande dissensão com o povo miúdo que se sentia duramente tratado e oprimido pelos usurários que lhe havia emprestado algum dinheiro, porque os que tinham algo de que viver em privados pelos credores que faziam tolher o pouco que possuíam por não pagar as usuras e depois, consequentemente , decretar e vender pelo melhor preço para serem pagos; e os que nada tinham perdiam seus próprios corpos e suas pessoas eram presas em servidão (...) O Senado era surdo mostrando não se recordar das promessas que lhes havia feito, mas os deixava levar como escravos pelos credores e aceitava que eles fossem despojados de todos os seus bens. Assim, eles começaram a se amotinar abertamente, e produzir sedições ruins e perigosas na cidade”. O trecho é retirado da tradução francesa de Amyot, veja-se a tradução abaixo, em inglês. ()
Nesse clima, Coriolano se candidata ao cargo de consul, mas sendo nobre é odiado pelos plebeus, cuja situação conhecemos. Ele se opõe à venda mais barata de grãos, exige que para isto os plebeus abram mão dos tribunos do povo. Ele perde a eleição consular, como era de se prever. Processado pelos tribunos, ele é banido perpetuamente. Ele quer se vingar e vai aos Volscos, inimigos que vencera, e se coloca ao seu lado contra Roma. Esta é a primeira face moral da peça: a republicana. O líder que despreza o povo, acaba por trair sua terra e se transforma em inimigo. Comenta Kott: “o general ambicioso que aspira ao poder ditatorial é um perigo de morte para a república”. Mas existe um outro lado: ao expulsar Coriolano, o povo ficou sem líder valente para o defender. O povo implora perdão a Coriolano, até envia sua mãe e mulher para comove-lo. Lição anti-republicana: sem líderes, a república não se sustenta. Dois epílogos do drama. O primeiro, Coriolano é festejado pela massa, que erige um templo à sua mãe e mulher e o herói volta para os Volscos onde vive tranqüilo até a morte. Outro epílogo, o de Plutarco: ele é morto pelos Volscos, por traição.
Duas lições, uma republicana e outra anti- republicana. Nesta última, o povo é apenas a massa, uma força cega e destruidor, como um incêndio ou inundação. Na massa, apenas Coriolano é uma pessoa singular. Os outros, como sublinha Shakespeare, são anônimos que exercem uma função coletiva. Este é um ponto importante. No Renascimento e na Idade Média, a atenção dos reis e dos escritores se voltam mais para as tragédias dos grandes homens nobres. Aqui, em Coriolano, o “personagem” principal não é ele, mas a república dos anônimos que o devora. Shakespeare inverte o valor da república, tal como Maquiavel a enxergava e louvava. É como se Shakespeare visse o Estado romano com as lentes de Guicciardini, que citei acima. A tragédia não é mais do rei dividido (como Ricardo 2) mas a da cidade dividida em plebe e patrícios. É a luta das classes. Assim, não se tem mais o sentido demoníaco que encontramos em Ricardo 3 ou em Macbeth. Temos em Coriolano, em sentido estrito, ironia e tragédia. ()
E nesse contexto que surgem os decemviri, tão fortemente criticados por Maquiavel. Os inimigos da plebe entram com um projeto de escrever leis que, supostamente, garantiriam os mais pobres e humildes. Se tal coisa fosse aceita, os tribunos da plebe seriam desde então inúteis. O tribuno Gaius Terentilius Arsa propõe uma comissão de cinco cidadãos (quinqueviri) para reunir num corpo do direito civil as leis que os consules seriam obrigados a seguir no futuro. Dez anos após, e sob debates e boicotes de todo tipo, passa o projeto de lei. Continuam as lutas pela terra. O plebiscito dito Iciliano (para garantir as prerrogativas do povo) ordena que as terras do Aventino (antes ligadas ao culto) sejam distribuídas em parcelas aos mais pobres.
Em 451 AC se nomeia uma embaixada para ir até à Grécia, com o fim de estudar e trazer para Roma as leis de Solon e demais legisladores gregos. Com o retorno da embaixada, dez nobres foram nomeados decemviri para o ano de 451 AC. com a missão de redigir as leis romanas. Eles assumiram autoridade suprema em lugar dos consules (decemviri consulari imperio legibus scribundis) e o tribunato foi suspenso e com ele, o recurso. A única obrigação dos decemviri era a de não atacar a liberdade do povo. Em 451 os decemviri terminam seu projeto e o apresentam ao povo que nele votou e ordenou que as leis fossem escritas em doze tabletes de bronze, no Fórum diante da tribuna dos discursos. As leis não traziam muitas novidades. Em termos financeiros, atenuava a sorte dos devedores, estabelecendo uma taxa de 10 por cento no lucro do capital, com ameaças aos usurários, etc. O apelo à assembléia centuriata é autorizado, o que se explica pela abolição dos tribunos da plebe . O principal era a obrigação definida aos consules de aplicar a lei escrita.
Terminado seu trabalho, os decemviri precisariam se afastar. Mas com o pretexto de fazer uma lei adicional prorrogaram seu tempo. Uma explicação aventada por Mommsen, é que os nobres temiam que a restauração do consulado trouxesse de novo os tribunos da plebe. No começo o povo se submeteu, mas os atos dos decemviri, quase todos odiosos, o levantou. Entre muitos, ocorreu o assassinato de Lucius Siccius Dentatus (herói de guerra) com a suspeita dos decemviri serem os mandantes. Num processo contra a filha do centurião Lucius Virginius, noiva do ex-tribuno do povo Lucius Icilius, a sentença pronunciada por Appius, um decemvir, foi iníqua. Reivindicada como escrava por um adversário, Appius a condena e a retira de sua família, lhe extraindo os direitos e a liberdade. O pai, na busca de poupar a sua honra, lhe enfia um punhal no peito em pleno Fórum. Enquanto o povo contempla horrorizado a cena, Appius manda prender e conduzir até ele o pai e o noivo, por desobedecer as suas ordens. Protegidos pela massa enfurecidas, Virginius e Icilius escapam e aparecem em reuniões públicas para narrar o ato tirânico de Appius. Eles contam e fazem lembrar a falta do tribuno plebeu. Os exércitos deixam seus comandantes e marcham para Roma, atravessam a cidade militarmente e seguem para o Monte Sagrado e nomeiam novamente os tribunos. Com a obstinação dos decemviri, que não deixam o poder, os soldados entram em Roma tendo à frente os tribunos.Os decemviri abdicam com a ameaça da guerra civil dentro de Roma e são processados. Appius Claudius e Spurius Oppius suicidam na cadeia, os oito restantes são exilados e seus bens sofrem confisco. O tribunato do povo é restabelecido.
Falamos de Maquiavel e de seu juízo favorável à ditadura e negativo diante dos decemviri. Um outro autor que deve ser examinado é Montesquieu, pois seus textos seguem a mesma linhagem escritural que vem de Tito Livio, passa por Maquiavel e termina nas democracias do século 18 e dezenove, chegando aos nossos dias. O debate de Maquiavel nos Discorsi gira ao redor da questão popular, a saber se as reivindicações da plebe trouxeram apenas anarquia ou liberdade regulada pelas leis em Roma. () Montesquieu, nas Considerações sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e seu declínio, escreveu com os Discorsi como referência. () “Enquanto Roma conquistava o universo, havia em suas muralhas, uma guerra escondida; eram fogos como os de um vulcão que soltam logo que certa matéria vem aumentar a fermentação. Depois que os reis foram expulsos, o governo se tornara aristocrático: as famílias patrícias obtinham sozinhas todas as magistraturas, todas as dignidades, e por conseguinte todas as honras militares e civis (...) Como a autoridade real tinha passado inteiramente para as mãos dos consules, o povo sentiu que esta liberdade, a qual queriam que ele amasse, ele não a tinha”. Pouco a pouco, dada a hegemonia dos ricos, a distinção maior do Estado romano era entre ricos e pobres. A riqueza ase tornou o meio de acesso ao poder. Havia, no entanto, um balanceamento entre agitação política e leis. Tumultos populares agitam governos livres, pois “guerreiros tão orgulhosos, tão audaciosos, tão terríveis no estrangeiro, não poderiam ser moderados em casa”. (p. 119)
Quem recusa, como Guicciardini e os inimigos da plebe, o poder das leis e do povo, aposta no despotismo, como ele impera na Ásia. A paz sob regimes despóticos não significa unidade, mas prisão de corpos mortos, “enterrados uns ao lado dos outros”. As repúblicas livres precisam de harmonia entre opostos, “como as dissonâncias na música cooperam produzindo acordo geral”. () Esta passagem pela música não surpreende os leitores de Platão e de Aristóteles, para ficar apenas nos dois filósofos basilares do mundo ocidental. ()
Na trilha de Maquiavel, Montesquieu usa Tito Lívio para escrever o capítulo VIIIo intitulado “Das divisões que sempre existiram na cidade”. Mas prefere como base analítica Dionisio de Halicarnasso e Políbio. Autores levantam a hipótese de que a famosa separação entre os três poderes veio a Montesquieu de Maquiavel, com a idéia da luta popular pelas suas prerrogativas, em especial o tribunato, e os integrantes do Senado. ()
Um elemento que une Maquiavel e Montesquieu na análise da política romana antiga é o medo. Vejamos a passagem na qual o Florentino justifica as acusações na república e invectiva as calúnias. O poder de acusar é um dos mais úteis na ordem coletiva, afiança Maquiavel nos Discorsi (). Esta instituição tem as seguintes vantagens : em primeiro lugar ela impede, pelo medo da acusação, que os cidadão atentem contra o Estado. Ou então, ela faz com que eles sejam punidos de imediato, sempre que cometem crimes semelhantes.(Il primo è che i cittadini, per paura di non essere accusati, non tentano cose contro allo stato; e tentandole, sono, incontinente e sanza rispetto, oppressi.). Note-se que o medo, aqui, resulta de uma ação contra todos e cada um (sanza rispetto). Todos temem as punições eminentes se por acaso cometem crimes contra o Estado. Tal medo salutar é a base da república. O segundo, adianta o autor, ela oferece uma saída normal aos ódios que, por uma razão ou outra, fermentam na cidade contra um ou outro. Se tais ódios não encontram saída normal, elas recorrem à violência, ruína das repúblicas. (L' altro è che si dà onde sfogare a quegli omori che crescono nelle cittadi, in qualunque modo, contro a qualunque cittadino: e quando questi omori non hanno onde sfogarsi ordinariamente, ricorrono a' modi straordinari, che fanno rovinare tutta una republica. ) Aqui é preciso notar que, no espaço em que escrevemos “ódios”, Maquiavel chama “humor”. Trata-se de antiquíssima doutrina que liga medicina e política, pelo menos desde Alcmeon de Crotona. () Aqui temos a idéia de que o corpo republicano, à semelhança do corpo biológico, precisa descobrir com rapidez os “humores” que o desagregam. O meio para manter a mistura política é o medo institucional da acusação incontinenti seguida da punição. O tempo aqui é um elemento primordial. Caso não sejam identificados em hora certa, os humores tendem a se alastrar pela república e se não forem punidos, desaparece depois de certo tempo a condição para manter o todo reunido. Surgem as sedições de todos contra todos, algo muito aproximado ao estado de guerra de todos contra todos. Voltaremos a este ponto.
Maquiavel relaciona a obediência de todos diante das leis e das autoridades ao medo religioso, base dos vínculos políticos. Assim, “[Numa] trovando un popolo ferocissimo, e volendolo ridurre nelle obedienze civili con le arti della pace, si volse alla religione come cosa al tutto necessaria a volere mantenere una civiltà, e la constituí in modo che per piú secoli non fu mai tanto timore di Dio quanto in quella republica.” () O medo não é apenas de todos em relação ao divino, mas também se manifesta nos elos setores e setores sociais. “Li ordini che ritirarono la Republica romana verso il suo principio, furono i Tribuni della plebe, i Censori e tutte l'altre leggi che venivano contro all'ambizione ed alla insolenzia degli uomini. I quali ordini hanno bisogno di essere fatti vivi dalla virtù d'uno cittadino, il quale animosamente concorra ad esequirli contro alla potenza di quegli che gli trapassano. Delle quali esecuzioni ... furono notabili la morte de' figliuoli di Bruto, la morte de' dieci cittadini [etc.].... Le quali cose perché erano eccessive e notabili, qualunque volta ne nasceva una, facevano gli uomini ritirare verso il segno: e quando le cominciarono ad essere piú rare cominciarono anche a dare piú spazio agli uomini di corrompersi e farsi con maggiore pericolo e piú tumulto. Perché dall'una all'altra di simili esecuzioni non vorrebbe passare il piú dieci anni: perché passato questo tempo, gli uomini cominciano a variare con i costumi e trapassare le leggi; e se non nasce cosa per la quale si riduca loro a memoria la pena, e rinnuovisi negli animi loro la paura, concorrono tosto tanti delinquenti che non si possono piú punire sanza pericolo.” (Discorsi, 3.1). ()
Assim, Maquiavel segue do medo diante do divino, para o medo diante da potência efetiva das leis, contra os arrogantes e ambiciosos. Este últimos, ao desobedecer a lei, devem ser conduzidos ao respeito com o auxílio de punições físicas, a morte como ápice das penas. Com o tempo, no entanto, a desobiediência torna-se ampla, o que diminiu o medo. No caso, fica bem claro que Maquiavel pensa nos nobres, sendo instrumentos de sua punição os tribunos da plebe, os censores, etc. ()
Spinoza, leitor atento de Maquiavel, trata o medo de tal maneira que fica muito clara a sua função no mando político. A partir do conceito de flutuação da alma, ele enuncia no Tratado Teológico-Político: “Se os homens fossem capazes de governar toda a conduta de sua vida por um objetivo regrado, se a fortuna lhes fosse sempre favorável, sua alma estaria livre de toda superstição. Mas como eles estão sempre postos num estado incômodo que não lhes pemite tomar nenhuma resolução razoável, como eles flutuam quase sempre miseravelemente entre a esperança e o medo, por bens incertos que não sabem desejar com medida, seu pensamento abre-se sempre à mais extrema credulidade. Ele oscila na incerteza. O menor impulso o joga em mil direções diversas, e as agitações da esperança e do medo aumentam mais a sua inconstancia. De resto, observemos os homens em outros encontros, nós os veremos confiantes no futuro e cheios de jactância e orgulho”. ()
Deixemos Spinoza temporariamente, com a fluctuatio da alma, nos extremos da alegria e da tristeza, no clima de plena dúvida. Passemos a um autor contemporâneo, Elias Canetti. Nas primeiras linhas de seu monumento filosófico sobre a política, Massa e Poder, lemos que “não existe nada que o homem mais tema do que ser tocado pelo desconhecido”. Assim, de noite, ou em locais escuros, o terror diante de um contato inesperado pode converter-se em pânico. O corpo, como em Spinoza, é o grande ator e paciente neste jogo do medo. Nem as roupas, diz Canetti, protegem, nem as casas. O medo do ladrão não se liga apenas às suas intenções de assalto, mas a um temor de ser tocado num ataque vindo das trevas. O medo de sermos tocados em nosso corpo permanece quando estamos em “sociedade”, na rua, nos resturantes, etc. Só agimos de outro modo, sem medo, quando a pessoa nos agrada.
Só quando imerso na massa, o homem pode escapar do temor do contato. O medo se transforma em segurança. A massa precisa ser densa, o corpo, nela, se estreita contra outro corpo. Densa também a alma, quando não mais interessa saber “quem nos aperta”. Na massa, todos são iguais, formando um só corpo. A inversão do medo de ser tocado faz parte da massa. Nela, se propaga um alivio enorme. Esta alegria faz com que o momento feliz da descarga seja quando cada um deixa de ser ele mesmo e se integra na massa.
O medo não é uma paixão desapercebida ao longo da história política e da filosofia. Certos analistas recentes imaginam que o tema é quase exclusivo de Hobbes. Ele foi tratado, no entanto, em demasia pelos poetas, escritores, politicos, etc. Como diz um analista de hoje, “Todo mundo, de Tucídides até Maquiavel, escreveu sobre o medo e a análise de Hobbes não é tão original quanto ele deixa pensar. Mas ele também não exagerou na dose. Apesar de suas dívidas para com os pensadores clássicos e contemporâneos como o holandês Hugo Grócio, Hobbes deu ao medo um lugar especial. Eqnaunto Tucídides e Maquievel identificaram o medo como uma motivação política, só Hobbes voluntáriamente afirmou que ‘a origem das grandes e duradouras sociedades consiste não na boa vontade que os homens teriam uns para os outrso, mas no seu medo mútuo.’” ()
Se observarmos outros pensadores políticos, temos uma visão diversa do medo. Para Spinoza, é pelo desejo de evitar um mal maior que tememos um outro, menor. (Ética, 3, 39). “A consternação”, por exemplo, diz-se “daquele ser humano cujo desejo de evitar um mal e, assim, é reduzido pelo espanto do mal de que tem medo. Consternação seria um modo de pusilaminidade. Mas ela nasce de um duplo medo e pode ser definida mais comodamente como o medo que contem de tal jeito um homem ferido de estupor ou flutuante, que ele não pode afastar o mal de si. Digo ferido de estupor, enquanto concebemos seu desejo de afastar o mal como reduzido pelo espanto. Digo flutuante, enquanto concebemos este desejo como reduzido pelo medo. Medo de um outro mal que também o atormenta. Donde vem que ele não saiba qual dos dois contornar”. ()
Retomo Elias Canetti e o exemplo da massa em estado de medo (o que é a condição mesma de sua gênese). Um incêndio na sala fechada: o fogo é perigoso e constitui o mais antigo símbolo de massa. A percepção do perigo leva a limites nunca suspeitados entre os espectadores. Diante da morte comum, surge o medo de todos. O fogo produz a massa de homens igualizados pelo medo. Num recinto sem saída, a massa deve desintegrar-se do modo mais violento possível. As portas permitem a passagem de poucas pessoas de cada vez. Entre as filas de cadeiras, só pode passar uma pessoa, separada de seu visinho. A distância até a porta é diferente para cada um. Todo o corpo, de todos, é limitado. O grito “fogo” é respondido pela impossibilidade de um movimento comum. A porta passa a ser a moldura de uma imagem que logo domina cada um dos presentes em fuga. A massa é forçada a se desintegrar violentamente. Cada um empurra, golpeia, pisoteia a todos, e vice-versa. Desaparecem as diferenças de sexo, idade, condição física. Na massa, todos são iguais no pânico.
O que é o medo pânico? A dissolução da massa dentro da massa. O indivíduo flutua entre dois pontos. De um lado, ele quer sair da massa. Mas como ainda está nela, precisa lutar contra ela, pois deixar-se levar significa morrer com a massa. O que percebe o indivíduo sobre si mesmo a não ser que, naquele transe, ele recebe golpes e golpeia ? E quantos mais golpes der ou receber, mais sentir-se-á ele mesmo, preso nos seus limites. A massa é o fogo em movimento, ela é ignea. O fogo é massa hostil. Como evitar o pânico? Prolongando-se o estado original do medo unitário da massa. Isto pode ser provocado, por exemplo, numa igreja que esteja ameaçada. Numa situação de medo comunitário, reza-se a um Deus comum a todos, em cujas mãos está o poder de extinguir o fogo por meio de um milagre. Vejamos alguns aspectos do pânico, a partir do mito de Pan.
Sócrates refere-se a Pan como o filho de Hermes com dupla natureza. Eco tentou escapar dele, mas Pan causou tal medo entre os pastores que estavam perto dela, que a destruiram, cortando-a, só deixando a sua voz. Panikon significa 'medo de Pan'. Na peça Medéia, Euripides diz que uma velha supôs que o medo de Pan, ou de outros deuses, dela se apoderou. Os Romanos associavam Pan com o deus Faunus (o que favorece). Sua mulher era Fauna – cultuada pela mulheres como a “Boa deusa”. Os filhos de Fauna e Faunus, eram os Fatui, espiritos dos campos e florestas, que poderiam fornecer profecias ou pesadelos, nos sonhos. Pan é associado e não raro absorvido nos cultos a Dionysus deus da fertilidade, vegetação, vinho, que também assumiu os caracteres dos Silenos, e Bacchus, e talvez das Menades, o lado mais selvagem das ninfas. Iacchos era o lado mistico de Dionysus. Nas Bacantes se desencadeia a fúria de Dionísios, o deus despedaçado e que dilacera. Um aspecto desta divindade, analisado por Maria Daraki, é a circulação. “Dionísios não é o deus que ´sofre´ mas que circula. Suas partidas e chegadas inscrevem-se num percurso circular que estabelece a junção entre o mundo dos mortos e o dos vivos.
É importante o final do enunciado acima, em Maria Daraki: “O dionisismo é o campo de uma lógica circular que maneja perfeitamente a ´oposição binária´ mas (...) em vez de opor os termos antagônicos (...) os liga, assegura sua união em circuitos repetitivos que se reagrupam num sistema rigoroso” (Dionysos). Circulação, sobretudo das desgraças. O deus louco, embriagado, age através dos cidadãos, por pessoas instrumentalizadas. Lembra Walter Otto: quando Dionísio chegou em Argos, e os habitantes não quiseram adorá-lo, ele jogou as mulheres no delírio, e elas devoraram a carne de seus próprios filhos. (´A Tenebrosa Demência´, in Dionysos).
Nas Bacantes, as mênades precipitam-se sobre um rebanho de bois, matam os animais poderosos, e lhes arrancam os membros. Orestes e Pylades, que se apossaram de Hermione, são comparados às bacantes carregando um animalzinho. O verbo nebrizein finaliza Walter Otto, ´é usado para descrever o despedaçamento de jovens cabritos pelas mênades”. A folia dionisíaca, que se efetiva na música, na dança e no vinho, mostra-se como “união de opostos (...) de espantosa violência´, diz o mesmo autor. De qualquer modo, a loucura da peça mostra a distância infinita entre “o nada do espírito humano e a exigência total, inelutável, afirmação terrível do divino” (H. Jeanmaire,Dionysos). Ela indica permanente dissolução.
O comentário de René Girard sobre as Bacantes traz o problema da instauração societária. O linchamento, internamente, cumpre o que a guerra realiza nas relações entre os povos. Furor origináriamente homicida, a embriaguez dionisíaca, sacrifício que funda a comunhão, faz do coletivo o grande sacerdote, e das partes, vítimas potenciais permanentes. “A metamorfose dos pacíficos cidadãos em bestas feras é demasiado atroz e passageira para que a comunidade aceite nela se reconhecer, para que ela acolha como seu o estranho e terrível rosto que, aliás, só foi visto de relance” (A violência e o Sagrado)”.
A Fenomenologia do Espírito apresenta a vida humana sob a imagem das bacantes. Cito Hegel : “o aparecer é o movimento de parto e morte que, ele mesmo, não nasce nem morre, mas é em si, constituindo o efetivo movimento vital da verdade. O verdadeiro é transe, delírio báquico, no qual todo membro está embriagado; e como ele dissolve em si, imediatamente, cada um do deus integrantes que dele procura escapar, ele é também o repouso simples e transparente”.
A lembrança das Bacantes é essencial no trecho. A frase mestra, nele, concentra-se na palavra “dissolução” (Auflösung). O delirio desmembra, pulveriza, despedaça cada membro que procura fugir do círculo. O Todo, neste momento, nutre os indivíduos, mas deles também se alimenta. E a dissolução da morte ou do sacrificio, seja ele religioso, seja ele guerreiro, é o destino dos humanos. David Hansen (The greek way of war) mostra as astúcias empregadas pelos generais gregos para obrigar os homens a não fugir das batalhas. Um deles, era colocar pai e filhos em filerias imediatamente sucessivas. Assim, fugir da morte seria enviar para ela o ente querido.No batalhão sagrado de Tebas, composto por homosexuais, o amor de um pelo outro levou à morte de todos.
Soldados gregos cultuaram Pan, com ele se identificavam, oferecendo-lhe sacrifícios para que ele os ajudasse, transferindo o pânico para os seus inimigos. Temos, nesta pequena inspeção sobre o deus Pan, elementos para pensar o medo. A experiência medrosa trazida pelo nome de Pan, no ocidente, liga-se muito ao relato de Plutarco sobre a morte do deus : "Uma vez, em viagem pela Itália, um mestre embarcou num navio. Já vinha a tarde quando (…) o vento parou e o navio deteu-se perto de Paxi. Muitos estavam acordados, e muitos ainda não tinham libado seu vinho servido após o jantar. De repente, da ilha de Paxi ouviu-se a voz de alguém chamando fortemente por Thamus, e todos ficaram espantados. Thamus era um piloto egipcio, não conhecido pelo seu nome por muitos que estavam a bordo. Ele foi chamado duas vezes, sem resposta, mas na terceira ele respondeu. E o que chamava, erguendo sua voz, disse, “quando voce passar por Palodes, grite fortemente que o Grande Pan morreu”. Ouvindo isto, todos ficaram estupefatos e raciocinavam entre si se era melhor esquecer a ordem ou a recusar.Nestas circunstâncias, Thamus decidiu que se houvesse uma brisa, ele velejaria quieto, mas sem vento, e num mar calmo, ele proclamaria ou que ouviu. Em Palodes não havia bem vento nem ondas, Thamus gritou olhando a terra: “O grande Pan morreu”. Quando a última palavra deixara os seus lábios, subiu da ilha um grito de dor não de uma pessoa, mas de muitas, misturadas com exclamações de desespero. (De defectu oraculorum, 419b-e)
Numa sala em fogo, retomando Canetti, se ela for um teatro onde não existem numes, mas é secularizada, pois o grande Pan morreu, brota o pânico. Numa igreja, com um Deus comum, se reitera a crença no milagre. Num caso, temos o estupor, o medo duplo. No outro, a esperança supersticiosa. Cito Spinoza: “Os sentimentos de esperança e de medo não podem ser bons por eles mesmos”. (Ética, 4, proposição 47). “Não há medo ou esperança sem tristeza, pois o medo é uma tristeza, e não existe esperança sem medo. Logo, estas afecções não podem ser boas em si mesmas, mas apenas elas podem reduzir um excesso de alegria. O medo e a esperança indicam uma falta de conhecimento, impotência. Também a segurança, o desespero, o gáudio, o remorso são sinais de impotência interna. Embora a segurança e o gáudio sejam afecções da alegria, eles supõem uma tristeza antecedente, ou seja, a esperança e o medo. Quanto mais nos esforçamos por viver sob a razão, menos dependemos da esperança”.
Spinoza afirma que podemos nos liberar do medo, pois somos eternos. No livro 5, proposição 39, diz ele que “quem possui um corpo apto ao maior número de ações, tem a mente da qual a maior parte é eterna”. Quem possui um corpo capaz de muitas ações é menos dominado pelos sentimentos contrários à nossa natureza. Ele pode ordenar e encadear as afecções segundo uma ordem conforme ao intelecto e fazer com que todas as afecções sejam relacionadas com a idéia de Deus. Ele estará afetado em relação a Deus por um amor que ocupa a maior parte da mente, e por conseguinte, ele possui uma mente cuja maior parte é eterna. () “O medo não precisa de definição. Ele é uma emoção primitiva, por assim dizer, sub-política” ()
No quarto livro das Tusculanarum Disputationum Cicero elenca as paixões geradas pelo medo e mostra a via pela qual os homens podem escapar do terror. A sapiência reside em não permitir que o pânico domine as almas, em guardar a serenidade. O ideal estoico, assumido pelo grande romano, permanece como legado ético que nos permite afastar o fanatismo, inimigo da ordem democrática. Não é possível, lemos nos Pensamentos de Pascal, que a fé penetre no coração dos homens a poder de ameaças. A crença assim instituída não seria legítima “porque define-se apenas como terror; terrorem potius quam religionem”. Pascal cita Santo Agostinho sobre a fragilidade das formas políticas assim estabelecidas : “Nisi terrerentur et non docerentur, improba quasi dominatio videretur” (“Do medo de que todos são conduzidos pelo terror, sem guia, o domínio parece tirânico”).
A paz da alma fornece juízos prudentes e responsáveis. Quem age segundo tais condições dificilmente obedece apenas à força física. Quando um grupo ou indivíduo pretende destruir a vida coletiva, o primeiro passo é expulsar a tranqüilidade anímica. O saber médico ocidental descreve os resultados do terror nas almas e nos corpos. Robert Burton () mostra que o pânico medroso “conduz freqüentemente os homens para a perda do juízo, lhes arranca os sentidos, o entendimento e tudo o mais, alguns por certo período, outros pela vida inteira, de modo que eles não conseguem se recuperar”. Burton refere-se às guerras vencidas na antigüidade com o uso do terror e salienta um fato relevante. O terror torna-se realmente eficaz quando invade todos os sentidos humanos, dos olhos à escuta, do tato ao paladar, chegando ao olfato. Quem sofre um atentado à bomba, dizem os relatos, sente-se como os marinheiros descritos por Plutarco. Depois do naufrágio eles sempre têm medo “e não temem apenas um acidente, mas todos os perigos”. Em tal sofrimento some a liberdade e a existência digna. O antigo ser livre torna-se escravo. ()
Salomão indica o lugar correto do terror quando é assegurado o respeito à vida : “Praticar a justiça é alegria para o justo, mas pavor para quem pratica a iniquidade” (Gaudium iusto est facere iudicium, et pavor operantibus iniquitatem) (Provérbios, 21, 15). Na tradução luterana, o mais sinistro do versículo é o termo Schrecken, terror. O bandido não se alegra com a lei porque ela permite aos honestos resistir ao medo. Mas ele sabe que seu ato é criminoso e teme ser capturado. Quanto mais teme, mais ele desafia as normas civilizadas. O uso da força e da inteligência para garantir a lei é imperativo político em favor da sociedade. Ao seguir Spinoza, afirma Alexandre Matheron : “quando o nosso esforço foi inteiramente bem sucedido, a esperança desembaraçada do medo transforma-se em segurança; quando ele fracassou por inteiro, o medo desprovido de esperança transforma-se em desespero”. ()
Não existe paz no Estado imposto pela força bruta. Todos os que apelam para o terror vivem em permanente vigília para o golpe de Estado. Quem recusa responder pelos seus atos na ordem civil, exige para os outros o permanente Estado de exceção. Uma faina tranqüila prova que a lei impera. No golpe, entretanto, os afazeres costumeiros são interrompidos para que reine a morte.
Permitam que eu cite um texto que publiquei há bom tempo sobre o terror. “O terrorista e o poderoso refletem mutuamente os seus instrumentos e liturgia de mando repressivo. Os três monopólios do Estado moderno para se exercitarem em democracia supõem o controle cidadão, múltiplas vontades e pensamentos reunidos de modo transparente e universal. Os três monopólios são exercidos pelo terrorista e por seu grupo banindo-se todos os demais entes humanos e qualquer debate ou transparência. O terrorista, sem receber votos faz-se poder legislativo e decreta leis que devem ser atendidas por toda e qualquer pessoa, mesmo que esta as desconheça. O terrorista, sem eleição, faz-se poder Executivo de modo ditatorial e arranca bens e recursos vários de qualquer indivíduo ou grupo. O terrorista, sem mando legítimo, faz-se Judiciário e só ele julga com Justiça plena o mundo e seus habitantes. Ele também exerce o poder de polícia, de espionagem, chegando a ser, ele também, o carrasco que ´verte sangue sem culpa´, atributo dos mais antigos governos. Entre terroristas, a pena de morte é norma, e contra ela não existe apelo nem recurso. Enfim, a opinião pública é manipulada pelo terrorista, sem que seja permitida a réplica e o direito de resposta. Ou o mundo aceita a verdade, que por definição é a dele, ou está imerso na mentira”. ()
É possível captar a eficácia do terror com a idéia de servidão voluntária. O tirano só consegue impor sua vontade letífera se o pavor domina a coletividade. Quando isso ocorre, um número crescente de indivíduos, imagina que só a colaboração com os bandidos salvaria a paz. No Discurso da Servidão Voluntária existem mostras desse estado de alma no qual a maioria dobra o seu querer aos desejos de alguns Trasímacos.
Outra experiência similar encontram-se nos trabalhos de Charles Betelheim. Refiro-me ao escrito intitulado “Comportamento em Situações Extremadas: coerção” () O autor analisa os antigos presos dos campos, submetidos ao terror da Gestapo. Eles não conseguem avaliar o que se passa no mundo externo que subsiste ao redor das terríveis fábricas onde se pratica o extermínio. Como indiquei acima, embotados os seus pobres sentidos, eles perdem pouco a pouco todas as portas que os uniam ao universo. Os novos prisioneiros encaram o campo como absurdo e o recusam por significar algo irreal. Para os antigos, o absurdo é a realidade. O tempo requerido para que um encarcerado ainda julgue o mundo exterior como real depende, diz Bettelheim, dos seus laços de família e camaradagem, de sua personalidade, dos antigos interesses e atitudes. Os sinais de uma grave mudança na alma surgem quando o preso busca melhores condições de trabalho no campo, em vez de tentar o contato com o mundo. Novos prisioneiros gastam o dinheiro que lhes resta para enviar cartas aos seus queridos. Os velhos utilizam o que possuem para conseguir serviços “leves” no campo.
No plano político, “se no mesmo dia notícias diziam que o presidente Roosevelt denunciara Hitler e a Alemanha, mas também surgiam rumores de que um novo oficial SS substituiria um outro, os novos prisioneiros discutiam a fala presidencial com fervor e davam pouca atenção aos rumores. Mas os velhos prisioneiros eram indiferentes ao discurso, devotando a sua conversa à mudança no campo anunciadas pelos boatos”. Bettelheim narra a série de horrores que marca a obediência ao dominador terrorista. É como se uma sedução maldita jogasse os prisioneiros, a cada instante mais fortemente, nos braços dos seus algozes, num erotismo demoníaco. A leitura de Bettelheim é instrutiva em nossos dias.
Sartre explica o que é um “colaborador”. () O indivíduo que se inclina diante da única realidade conhecida por ele (como os “velhos prisioneiros” de Bettelheim) calcula muito bem. Ele soma as fôrças que pode enxergar e considera impossível resistir aos nazistas. Logo, ele adere aos violentos, imagina alguma segurança para seu corpo e, se possível, para os seus familiares e amigos. Se for político, como no regime de Vichy, ele delira com a salvação da França a partir do colaboracionismo. O seu cálculo é incompleto, assevera Sartre. O colaborador tem como base o visível, mas não inclui na operação o que se esconde. Ele não soma a tenacidade do povo inglês, o poderio industrial norte-americano, as capacidades da URSS. Quando a guerra chega ao ponto nodal, a realidade inteira surge diante dos seus olhos covardes. Ele perdeu tudo. O seu cálculo é apenas a má fé que, cega de medo, perde a totalidade do que está em jogo. Erich Auerbach diz algo similar com a imagem do holofote, um recurso da propaganda. Esta, no palco da vida social, ilumina um canto do palco e deixa os demais na penumbra. As coisas iluminadas são verdadeiras mas não constituem toda a verdade porque “da verdade faz parte toda a verdade, assim como a correta ligação de suas partes”. O truque do holofote é fácil de ser descoberto, adianta Auerbach, “mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo”. ()
O paranóico sempre se percebe cercado pois "seu inimigo principal jamais se contentará com atacá-lo sozinho. Sempre procurará atiçar contra ele uma malta odiosa, soltando-a no momento exato. Os membros da malta a princípio se mantêm ocultos, podem estar por toda parte". Para o poderoso, todos conspiram contra ele. Seus inimigos são uma totalidade homogênea. Indivíduos, para os poderosos da história, se diluem em massas compactas. O poderoso desmascara os supostos indivíduos, reduzindo-os ao Inimigo. Só ele, inocente, pode sentenciar milhões à morte. Um exemplo relevante do terrorismo praticado pelos detentores do poder (cujo paradigma é Ricardo 3, na peça de Shakespeare) é citado em Massa e Poder : trata-se do imperador Domiciano. Segundo Canetti, aquele dirigente é o típico paranóico terrorista. O governante, certa noite, desejando atemorizar senadores e cavaleiros romanos, os convidou para um jantar. Decorou todo o ambiente de cor preta, da parede ao chão. Os leitos eram pretos, tendo ao lado lápides funerárias com o nome de cada um dos convivas. Uma dança horripilante foi executada por rapazes sem roupa e pintados de preto. Os alimentos servidos eram idênticos aos ofertados pelas almas dos mortos. Enquanto os presentes guardavam um silêncio de pavor, Domiciano parolava sobre mortes e massacres. A cena, descrita por Cassius Dios é tremenda, porque todos os detalhes intimidatórios foram utilizados na ocasião, alternando medo diante da morte prometida pelo governante e a esperança de fugir, pela sua graça, do aniquilamento final. Nesta alternância entre espera e desespero os senadores deixaram-se dominar de modo completo. Comentário de Canetti: “o terror incessante no qual ele manteve seus hóspedes fez com que eles emudecessem. Somente ele falava e falava de mortes e massacres”. Temos aí uma estrutura que sustenta a propaganda do governo terrorista, a censura por ele empregada, o medo espalhado entre os possíveis integrantes da oposição, tudo isto repete-se nos dias de hoje, potenciado ao máximo no cinema e na midia. O governo terrorista só consegue impor-se tendo um parceiro no ato de espalhar medo: ou diretamente a morte, ou o seu embaixador, o terrorista que ainda não chegou ao controle do Estado.
O paranóico no poder usa as palavras como um punho contra os seus inimigos. Quando luta para chegar ao mando, mimetiza nos seus atos e falas as formas repressivas do Estado moderno, sem a democracia. Paranóia é sentença que, na lingua helênica, significa “para além do pensamento, da razão”. Um paranóico, no poder ou em luta pelo poder, não é desprovido de razão, mas a possui em excesso, captando cada ato humano ou divino sob a lógica mais coerente, a que desconhece obstáculos naturais ou de moralidade. Nas suas deduções vai-se das premissas aos resultados, sem passar pelo mundo enquanto resistência. Para ele, não existem outras explicações, outras vontades, outros afetos ou desejos, e também outros pavores, salvo os seus.()
No Espírito das Leis Monstesquieu indica que o princípio dos Estados despóticos é o medo () O mutismo impera no mando despótico, dado que a palavra não consegue ser enunciada sem que nela se mostrem as falhas entre as restrições ao corpo. Quanto menos falar no Estado assim determinado, menos perigo para o cidadão (que não é propriamente cidadão) e para os grupos. “Como o princípio do governo despótico é o medo, o fim é a sua tranqüilidade; mas não se trata de uma paz, é o silêncio dessas cidades que o inimigo está prestes a ocupar. A força não estando no Estado, mas no exército que a fundou, seria preciso para defender o Estado, conservar este exército; mas ele é formidável para o príncipe. Como pois conciliar a segurança do Estado com a segurança da pessoa?”. Temos aí a base de todos os golpes de Estado com fundamento militar. Quando o governo não se sustenta na livre adesão dos dirigidos, mas no medo, ele usa o exército para submeter os mesmos dirigidos, mas a partir daí, o instrumentum regni passa a ser a real fonte do mando.()
Spinoza não se detem no abuso da força física, quando se trata de compreender a manutenção dos Estados despóticos. No seu entender, a superstição encontra-se na própria origem do medo, sustento dos regimes sem liberdade. Como diz um comentador, ao tentar refletir sobre o retorno das teocracias no mundo, a atitude de Spinoza seria mostrar “que duas condições corrompem necessáriamente (…) uma idéia falsa de Deus e um poder político religioso. Contra esses dois obstáculos, o spinozismo tem suas respostas: 1) reforcemos o poder político; o Estado não é o mal que alguns denunciam, con frequência ele é a barreira contra um mal ainda pior. 20 contra a idéia falsa de Deus, contra a superstição, só existe o remédio da filosofia. É o sono da política e da filosofia que prepara a cama para as ditaduras teocráticas.”()
João Colerus, na biografia de Spinoza (seja pensado o que se puder do seu conteúdo), cita um ataque insidioso ao filósofo que define o medo como causa de sua morte. O biógrafo mostra que tal situação era distante do pensador no instante de seu trespasse. Um outro comentador de Spinoza afirma que ele não se limita “aos conselhos de Maquiavel contra o tiranicídio e a tirania : mais profundamente, no interior desse conunto de problemas, ele elabora uma verdadeira filosofia do medo. Os soberanos devem ser temidos quando têm medo. Um povo que dá medo a quem o governa o conduz a comportamentos ferozes;e no sentido oposto, um tirano feroz tem tudo a temer não apenas do povo, mas também de quem dele se aproxima. O medo é um monstro que se reproduz e que, sendo potente, conduz a ter medo, dá medo.
Muitos exemplos, extraídos da historiografia da Roma imperial, conduzem Maquiavel e com ele Spinoza a iluminar o tema do medo, não na acepção afinal positiva que ele assume em Hobbes –no qual do medo da morte violenta sai a renúncia à guerra de todos contra todos, logo o contrato, a civilidade e o Estado– mas naquele medo todo negativo de quem (à diferença de Hobbes) aprecia sobretudo a liberdade e enxerga no medo o principal obstáculo para ela. Maquiavel é o clássico de referência que ensina (vemos no capítulo 19 do Príncipe) os perigos do príncipe amigo da rapina e do roubo “dos bens e mulheres de seus súditos”; Spinoza lhe responde ao evocar o funesto exemplo de Nero; para quem governa o Estado, não é menos impossível ao mesmo tempo se mostrar bêbado ou pelado em companhia de prostitutas, de agir como palhaço, violar ou desprezar publicamente as leis, quanto ser e não ser ao mesmo tempo; as matanças dos súditos, as espoliações, os sequestros das jovens e outras maldades assemelhadas transformam o medo em indignação e, () por conseguinte, o estado civil em estado de guerra (Tratado Político, 4, 4)
Um texto spinozano capital, quando se trata do medo diante da plebe (falamos do motivo maior da ditadura romana) amotinada, encontra-se no Tratado Político (Livro 7,§ 27). Spinoza se dirige sobretudo aos apologistas da razão de Estado, para os quais a plebe seria não apenas inapta para governar, como também seria fonte perpétua de dissolução do Estado e, portanto, de insegurança e medo. ()
A antiga imagem negativa do povo, ampliada desde a Grécia e Roma, se exaspera nos tempos modernos, absolutistas. É conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária. () Pouco se analisou o escrito do mesmo autor intitulado Mémoires de nos troubles sur l´ Édit de janvier 1562. () Devido às lutas religiosas na Guiana, a corte envia o magistrado aos locais para analisar e depois escrever um texto com sugestões jurídicas. Torna-se bem clara a cautela de La Boétie frente ao povo. Seria preciso impedir que o populacho tivesse ilusões de poder. Nas guerras religiosas que espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do rei” o pior é que “o povo se acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntariamente deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, que é o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular, tendo sabido que não é obrigado a obedecer ao príncipe natural no relativo à religião, faz péssimo uso dessa regra, a qual, por si mesma, não é má, e dela tira uma falsa consequência, a de que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas, e se atribui o juízo sobre o que é bom ou ruim. Ele chega afinal à idéia de que não existe outra lei senão a sua consciência, ou seja, na maior parte, a persuasão de seu espirito e suas fantasias (…) nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”. () E arremata: “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita em outrem. Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões que se enuncia”.
Gabriel Naudé fala do segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a se preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” quando a massa está inquieta. Na crise de legitimidade é preciso cautela contra o animal de muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. ()
Os teóricos da soberania popular não encontram audiência nas cortes e parlamentos aristocráticos. As noções de universitas, communitas ou corpus, o povo reunido em majestade, toda essa constelação conceitual sofre críticas desde os seus momentos iniciais. E os que defendem uma personalidade jurídica para o povo tomam cuidado para que a soberania popular não seja absorvida pelos representantes. ()
Spinoza, aparentemente, possui opinião similar à dos pensadores contrários ao sistema de soberania exercida pelo povo. Mas sua teoria é o antípoda daqueles defendidas pelos absolutistas da monarquia. “Porque os homens (…) são mais conduzidos pelo afeto do que pela razão, segue-se que a massa não é conduzida pela razão, mas fica de acordo devido a uma qualquer afeto comum e é arrastada, como se fosse uma única mente, pela esperança comum, ou pelo medo, ou pelo desejo de se vingar de um dano. Como também os homens temem a solidão porque nenhum deles na solidão têm força para se defender e buscar coisas necessárias à vida, resulta que os homens têm do estado civil um apetite natural e que nada se pode fazer para que este estado seja inteiramente dissolvido ” (Tratado Político, VI, § 1) ()
A certeza enunciada por Spinoza no Tratado Político, de que o vínculo dos homens é natural e, justo por isso, não pode ser dissolvido, se fundamenta no pensamento mais amplo do filósofo sobre a ordem cósmica. Deus ou Natureza, substância única, eterna, não sofre as vicissitudes cronológicas a que estão submetidos os que se movem nos modos, a matéria e o pensamento. Quanto mais os entes humanos dominam o pensamento e a matéria, mais percebem o divino (ou natureza) em si mesmos. Os Estados que asseguram tal percepção aproximam-se das noções adequadas sobre o único fundamento de todos os seres. Logo, eles são mais próximos dos que os Estados que se baseiam em noções inadequadas, da permanência e da estabilidade. Os seus nexos internos, estabelecidos entre indivíduos, não se dissolvem, mas tendem a se afirmar, na exata medida em que afirmam a liberdade de todos e de cada um dos que integram a ordem política.
Para captar esse passo com maior segurança, é estratégico seguir o que Spinoza afirma da conservação dos indivíduos, com fundamento no desejo. Este último é ipsa hominis essentia (Etica, IV, Proposição 18, demonstração). () Os entes humanos são movidos, Spinoza insiste na tese do Tratado Político citada acima, “mais pela opinião do que pela verdadeira razão” (homines opinione magis, quam vera ratione commoveantur). Para chegar à satisfação eficaz dos desejos, no entanto, é preciso não se prender à opinião mas atingir o conhecimento “tanto da potência de nossa natureza quanto a sua impotência, para que possamos determinar, quanto à regulação dos afetos, o que pode a razão e o que não pode”. ()
Esse conhecimento é necessário ao governante que age em nome do soberano, “único que determina o bem e o mal, o justo e o iníquo” (quid bonum, quid malum, quid aequum, quid iniquum). (TP, 1,§ 1). A summa potestas, outro nome do soberano, para persistir existindo, precisa observar leis e regras, caso oposto ela seria uma quimera (chimaera). Desse modo, tal poder pode pecar, ou ir contra a sua própria essência, quando seus operadores agem com desconhecimento da própria natureza do poder. “Peca, portanto, a civitas, quando ela age ou sofre atos que podem causar a sua ruína e dizemos que ela peca, nesse caso, do mesmo jeito que os médicos dizem que a natureza peca; podemos dizer que a civitas peca quando age em sentido contrário ao ditame (dictamen) da razão.” () A natureza de cada homem deve ser considerada, se o desejo é governar as suas ações e na mesma natureza existem lados fracos e fortes, essenciais e não essenciais. O poder absoluto usufruído pela summa potestas ou civitas, não pode ser arbitrário ao ponto de ignorar as leis que regem os entes humanos e a natureza mais ampla. “Quando afirmo que posso fazer desta mesa o que bem desejar, com certeza entendo que tal direito possa me levar a exigir que a mesa passe a comer ervas. O mesmo quando dizemos dizemos que os homens na ordem social não têm um estatuto de independência jurídica, mas dependem do Estado (Sic etiam, tametsi dicimus homines non sui, sed civitati iuris esse) não entendemos que eles percam a natureza humana e assumam uma outra, nem que o Estado tenha o direito de fazer com que os homens tenham asas ou, o que dá na mesma impossibilidade, que os homens honrem os que causam riso ou náusea. Dizemos que se um conjunto de circunstâncias é posto, resulta nos homens o respeito e medo (reverentia et metus) diante do Estado, sentimentos que, suprimidos, some o Estado de união. A civitas que é sui iuris deve guardar o medo e a reverência. Se um governante corre, embriagado e sem roupas pelas ruas em companhia de prostitutas, ele pode fazer o papel de histrião e despreze abertamente as leis que ele mesmo estabeleceu, é impossível que ele mantenha a majestade do poder, tão impossível quanto ser e não ser. Trucidar os súditos, espoliar, raptar virgens e fazer coisas assim, transforma o medo em indignação e, por conseguinte, transforma o estado civil em estado de hostilidade”.
Uma comentadora de Spinoza, Lucia Nocentini, () pergunta o que deve ocorrer para que os homens realizem a sua natureza na ordem coletiva. Nas palavras do filosofo, como um governo pode conseguir que os cidadãos “vivam na concórdia e na fiel observância das leis”. Segundo Nocentini, as condições exigidas são as seguintes: a) uma visão otimista das coisas, a melancolia gera apenas utopias; b) as paixões não devem ser reprimidas, mas racionalizadas, para que elas se tornem úteis ao bem comum; c) todos devem buscar a sua utilidade na utilidade comum; c) é preciso analisar os motivos das realidade natural, para melhorar as condições da vida individual e coletiva; d) a análise da natureza humana e das paixões são a base de uma política praticável; e) o que leva à análise da gestão do nexo entre instituições e povo; f) leis que não encontram consenso nas paixões humanas e o exercício despótico do poder tornam o povo desmotivado e passivo, o que degrada a sociedade; g) o direito dos cidadãos ao exercício da crítica não exclui a sua obediência às leis.
Spinoza e os pensadores de seu tempo dedicam-se à busca das condições enunciadas acima. Como diz Nocentini, trata-se de procurar “o espaço do consenso como lugar precípuo da política, o que permite a passagem das condições naturais à civil, com uma positiva articulação da diversidade, para que elas possam compor uma só mente e um só corpo e todos juntos desejem a utilidade comum” [Ética. IV 18 ss.].” () E assevera a autora que “O direito de um Estado bem constituido só pode ser conforme à razão; e isso na medida em que um corpo político estável busca o que é comumente útil para todos os homens, segundo os ditames da razão”.
Se tocamos na questão do corpo cívico, precisamos examinar a natureza desse corpo. Ele, como todo outro ente vivo é sujeito sem interrupção às ações de fatores de instabilidade internas e de causas externas que podem fortificar o conatus global, ou então enfraquecê- lo, o levando à ruína. No Tratado Político (capítulo 10) Spinoza fala de remédios para o corpo civil. Quando surgem sedições, não existe a certeza de que o coletivo será dissolvido. Mas existe a flutuação da alma de todos os integrantes da vida política. Assim, para chegar à estabilidade básica que permita vencer o medo, é preciso que o maior número dos cidadãos viva segundo a esperança, mesmo que a esperança não seja algo racional, mas afetivo e, portanto, sujeita ao seu oposto, o medo. Assim, é preciso que os cidadãos possam se aproximar o mais possível do Sumo Bem, só captado pela mente. Quando se atinge o saber, o medo é afastado, bem como a esperança. Os instrumentos intelectuais permitem gerar instrumentos e conceitos para vencer as adversidades individuais e coletivas.
Assim, lemos no Tratado da Reforma do Intelecto o seguinte : “Eu via que nenhuma das coisas que eram para mim causa ou objeto de medo, nada contêm em si que seja bom ou mau, a não ser na proporção do movimento que elas excitam na alma (…) resolvi buscar se existiria algum objeto que fosse de verdade, capaz de se comunicar e pelo qual a alma, renunciando a todo outro, pudesse ser afetada unicamente, um bem cuja descoberta e posse tivesse por fruto uma eternidade de alegria continua e soberana”. (Tratado da Reforma do Intelecto, prólogo). Os bens incertos são captados pela imaginação, o bem duradouro é conhecido pela razão. No mundo social e político, a maioria vive segundo as representações do imaginário, cuja certeza é quase nula. Daí o jogo, a flutuação da alma. Mas é possível deixar a incerteza e o jogo das paixões no seu lugar devido, a imaginação, com o fortalecimento do intelecto, da ciência, da política.
O direito natural, segundo Spinoza, não é interrompido artificialmente após o contrato que inaugura o Estado. Ele penetra o campo da civitas e nela se mantêm. O referido direito se fundamenta no desejo dos humanos de se conservar e não pode ser definido pela razão “mas por toda a vontade que os determina a agir e através do qual se esforçam por se conservar”. (TP, II, § 4). O elemento essencial do direito, assim entendido, reside na conservação de si : “ninguém pode negar que os homens, como os outros indivíduos, se esforça por conservar seu ser” (TP, II, § 7). Se cada indivíduo humano busca se conservar, e semelhante tarefa é a mais importante, se dois indivíduos se unem, o mesmo alvo continua e recebe maior ímpeto : Si duo simul conveniant et vires iungant, plus simul possunt, et consequenter plus iuris in naturam simul habent, quam uterque solus; et quo plures necessitudines sic iunxerint suas, eo omnes simul plus iuris habebunt (Se duas pessoas concordam entre si e unem as suas forças, terão mais poder conjuntamente e, por conseguinte, um direito superior sobre a natureza que cada uma delas não possui sozinha e, quanto mais numerosos forem os homens que tenham posto as suas forças em comum, mais direito terão eles todos). (TP, II, § 13).
Essa tese é retomada na Ética ( IV, proposição 35, escólio) : a base do Estado reside no fato de que os homens buscam ao mesmo tempo (simul) unir forças para se conservar. Quæ modo ostendimus, ipsa etiam experientia quotidie tot tamque luculentis testimoniis testatur ut omnibus fere in ore sit : hominem homini Deum esse. Fit tamen raro ut homines ex ductu rationis vivant sed cum iis ita comparatum est ut plerumque invidi atque invicem molesti sint. At nihilominus vitam solitariam vix transigere queunt ita ut plerisque illa definitio quod homo sit animal sociale (O que acabamos de mostrar é confirmado, no cotidiano, pela própria experiência, com tantas e tão claras demonstrações, que está na boca de quase todo mundo o dito de que o homem é um Deus para o homem. Entretanto, é raro que os homens vivam sob a conduta da razão. Em vez disso, o que ocorre é que eles são, em sua maioria, invejosos e mutuamente nocivos. Mas, apesar disso, dificilmente podem levar uma vida solitária, de maneira que, em sua maior parte, apreciam muito a definição segundo a qual o homem é um animal social”.
A esperança e o medo definem a obediência dos indivíduos ao Estado, o que traz ao último insegurança permanente, dado que aqueles afetos são, por definição, instáveis e flutuam de um ao outro. “Quem se deixa levar pelo medo e faz o bem para evitar o mal não se conduz pela razão”(Etica, IV, proposição 63). O ataque de Spinoza, nesta proposição (Escólio) aos supersticiosos é diretamente dirigido aos pressupostos do Estado que se fundamenta no medo da morte e na esperança da vida eterna. Se a vida eterna é o pagamento das boas ações, ela é uma paga indireta do bem. Ora, “pelo desejo que surge da razão buscamos diretamente o bem e evitamos o mal”. Se o Estado é movido pelo desejo racional, ele não depende de recursos indiretos, nos quais se apresentam os elementos da paixão e pouco os da racionalidade.
Os dois exemplo trazidos por Spinoza no terceiro escólio desta proposição 63, elucidam questões sociais e de Estado. O primeiro diz respeito à saúde corporal: o doente come por medo da morte, o sadio porque a nutrição lhe traz força e alegria. O segundo é relativa à justiça : o magistrado que condena a morte um réu, não por ódio ou ira, mas só por amor do bem público, conduz-se exclusivamente pela razão e garante, portanto, maior estabilidade na ordem coletiva. Um Estado dirigido pelo medo ou pela esperança e não pela razão, é instável quase sem remédio. Assim, quanto mais livres os homens, mais agem sob os ditames da razão e atenuam o medo e a esperança. Quanto mais indivíduos livres existam num Estado, mais este último será forte e duradouro.
Quem é livre e segue os ditames da razão não obedece por medo. Ele procura manter a si mesmo e aos demais livres, deseja viver de acordo com as leis do direito e da sociedade. Se alguém é livre e racional, é forte (não tem ódio, raiva, inveja, ira, desdém, arrogância). Quem assim age, ao contrário do supersticioso ou apaixonado que não enxergam a necessidade da natureza e vêem tudo como se fosse horrendo, injusto, desleal, percebe a sua força e a força coletiva e age para aumentá-las.
No Estado, a concórdia (como na ordem familiar e pessoal), portanto, a condição para aumentar a força coletiva, vem da razão. Quando a concórdia vem do medo, nela falta a confiança (sine fide). Num Estado adoecido pelo medo, não existe concórdia real. No mesmo Estado existe também a lisonja, concórdia adquirida com “o vício da servidão ou mediante a perfídia; com efeito, ninguém é mais suscetível de adulação do que os soberbos, que querem ser os primeiros, e no entanto estão longe de serem os primeiros”. (Etica, IV, Apêndice, capítulo 21).
Notas
1 Léon Homo: L’ Italie primitive et les débuts de l ‘imperialisme romain (Paris, Albin Michel, 1925), 272 ss.
2 Ilíada, II, 204- 205 e X, 224 : ouk agaQon polucoiranih eiß koiranoß estw, eiß basileuß... (II, 204-205);; “Dois que marcham juntos, um provê ao outro como seja melhor... (Iliade di Homero, Torino, Einaudi, 1950). Para toda a análise que segue, cf. Raymond Weil, ”De la tyrannie dans la pensée grecque”, in Duverger. M. : Dictatures et Légitimités (Paris, PUF, 1982), pp. 29 ss.
3 “Die älteste erhaltene Verwendungen des Tyrannis-Begriffes findet in den literarischen Zeugnisse der archaischen Zeit bei Archilocos von Paros , der die Mitte des 7. Jarhunderstes v.Chr. gelebt haben dürfte . Der Iambograph lässt in einem Vielzeiler einem Handwerker namens Charon sagen : [ou moi ta Gugew tou colucrusou melei,/oud eile pw me zeloß oud agaiomai/ Qewn erga, megalhß d ouk erew turannidoß/ apoproQen gar estin oftalmwn emwn”] “Não desejo a riqueza de Gyges, nem emulei ou me arrependi diante dos decretos divinos, nem desejei seguir os grandes tiranos, diante dos quais os meus olhos permanecem fechados” in Loretana de Libero, Die archaische Tyrannis (Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1995) p. 24. Cf. também Pedro Barceló: Basileia, Monarchia, Tyrannis, Untersuchungen zu Entwiclung und Beurteilungen von Alleinherrschaft im vorhellenistischen Griechenland (Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1993). Também: Parker V.. : “Tyrannos. The semantics of a political concept from Archilochus to Aristotle” Hermes ( Steiner Verlag, Stuttgart,) 1998, vol. 126, no 2, pp. 145-172.
4 ‘After the tumult quieted down, and five days passed, the rebels against the Magi held a council on the whole state of affairs, at which sentiments were uttered which to some Greeks seem incredible, but there is no doubt that they were spoken. Otanes was for turning the government over to the Persian people: “It seems to me,” he said, “that there can no longer be a single sovereign over us, for that is not pleasant or good. You saw the insolence of Cambyses, how far it went, and you had your share of the insolence of the Magus. How can monarchy be a fit thing, when the ruler can do what he wants with impunity? Give this power to the best man on earth, and it would stir him to unaccustomed thoughts. Insolence is created in him by the good things to hand, while from birth envy is rooted in man. Acquiring the two he possesses complete evil; for being satiated he does many reckless things, some from insolence, some from envy. And yet an absolute ruler ought to be free of envy, having all good things; but he becomes the opposite of this towards his citizens; he envies the best who thrive and live, and is pleased by the worst of his fellows; and he is the best confidant of slander. Of all men he is the most inconsistent; for if you admire him modestly he is angry that you do not give him excessive attention, but if one gives him excessive attention he is angry because one is a flatter. But I have yet worse to say of him than that; he upsets the ancestral ways and rapes women and kills indiscriminately. But the rule of the multitude has in the first place the loveliest name of all, equality, and does in the second place none of the things that a monarch does. It determines offices by lot, and holds power accountable, and conducts all deliberating publicly. Therefore I give my opinion that we make an end of monarchy and exalt the multitude, for all things are possible for the majority. Such was the judgment of Otanes: but Megabyzus urged that they resort to an oligarchy. “I agree,” said he, “with all that Otanes says against the rule of one; but when he tells you to give the power to the multitude, his judgment strays from the best. Nothing is more foolish and violent than a useless mob; for men fleeing the insolence of a tyrant to fall victim to the insolence of the unguided populace is by no means to be tolerated. Whatever the one does, he does with knowledge, but for the other knowledge is impossible; how can they have knowledge who have not learned or seen for themselves what is best, but always rush headlong and drive blindly onward, like a river in flood? Let those like democracy who wish ill to Persia; but let us choose a group of the best men and invest these with the power. For we ourselves shall be among them, and among the best men it is likely that there will be the best counsels. Such was the judgment of Megabyzus. Darius was the third to express his opinion. “It seems to me,” he said, “that Megabyzus speaks well concerning democracy but not concerning oligarchy. For if the three are proposed and all are at their best for the sake of argument, the best democracy and oligarchy and monarchy, I hold that monarchy is by far the most excellent. One could describe nothing better than the rule of the one best man; using the best judgment, he will govern the multitude with perfect wisdom, and best conceal plans made for the defeat of enemies. But in an oligarchy, the desire of many to do the state good service often produces bitter hate among them; for because each one wishes to be first and to make his opinions prevail, violent hate is the outcome, from which comes faction and from faction killing, and from killing it reverts to monarchy, and by this is shown how much better monarchy is. Then again, when the people rule it is impossible that wickedness will not occur; and when wickedness towards the state occurs, hatred does not result among the wicked, but strong alliances; for those that want to do the state harm conspire to do it together. This goes on until one of the people rises to stop such men. He therefore becomes the people's idol, and being their idol is made their monarch; and thus he also proves that monarchy is best. But (to conclude the whole matter in one word) tell me, where did freedom come from for us and who gave it, from the people or an oligarchy or a single ruler? I believe, therefore, that we who were liberated through one man should maintain such a government, and, besides this, that we should not alter our ancestral ways that are good; that would not be better.” Having to choose between these three options, four of the seven men preferred the last. Then Otanes, whose proposal to give the Persians equality was defeated, spoke thus among them all: “Fellow partisans, it is plain that one of us must be made king (whether by lot, or entrusted with the office by the choice of the Persians, or in some other way), but I shall not compete with you; I desire neither to rule nor to be ruled; but if I waive my claim to be king, I make this condition, that neither I nor any of my descendants shall be subject to any one of you.” [3] To these terms the six others agreed; Otanes took no part in the contest but stood aside; and to this day his house (and no other in Persia) remains free, and is ruled only so far as it is willing to be, so long as it does not transgress Persian law” (Herodotus, Perseus Project).
5 “But the rule of the multitude has in the first place the loveliest name of all, equality, and does in the second place none of the things that a monarch does. It determines offices by lot, and holds power accountable, and conducts all deliberating publicly. Therefore I give my opinion that we make an end of monarchy and exalt the multitude, for all things are possible for the majority." Cf. Loeb Classical Library, Herodotus, II, Books III-IV, translated by A.D. Godley, pp.107 ss.
6 Para uma análise antiga, mas cheia de informações sobre a tirania, cf. P. N. Ure : The Origin of Tyranny (Cambridge University Press, 1922).
7 Sigo as análises de Raymond Weil, citadas. “If we could all agree on what is "fair" and what is "wise" There would be nothing for men to argue and debate about. "Fairness" or "equality" are not things, they are simply words . Because we have a word for it, that does not prove a thing exists. I shall speak frankly, mother, and hold nothing back. I would climb the star-studded vault of heaven,Or descend to the black pit of hell, if I could do just this:Possess total power. Power to me' s a goddess, tall, and beautiful and out of reach. She's what I want, mother, and I can't bear To think of handing her on to someone else. I want to keep her for myself. I would not be a man, if I threw away The greater share to take the lesser. I should look a fool if this man got what he wanted By marching in with his army and laying waste my land.It would be a disgrace to Thebes to surrender to fear,And hand the sceptre that is mine to a terrorist to wield.He must not be allowed to influence Our conference by threats of violence:Words kill quarrels, not swords and blood.If he just wants to live here in Thebes - that's fine. But if he wants my power, there is no way I'll let my mistress go without a fight. When I can be master, why should I be his slave?Let's have the flames, let's have the clash of steel, Yoke up the horses, let chariots crowd the plain: I shall not give my royal power to him! Most men have many vices: I have one -I worship Power. Wrong in her defence I don't call wrong at all. Outra tradução inglesa: “If all were at one in their ideas of honor and wisdom, there would be no strife to make men disagree; but, as it is, fairness and equality have no existence in this world beyond the name; there is really no such thing. I will tell you this, mother, without any concealment: I would go to the rising of the stars and the sun, or beneath the earth, if I were able so to do, to win Tyranny, the greatest of the gods. Therefore, mother, I will not yield this blessing to another rather than keep it for myself; for it is cowardly to lose the greater and to win the less. Besides, I am ashamed to think that he should gain his object by coming with arms and ravaging the land; for this would be a disgrace to Thebes, if I should yield my scepter up to him for fear of Mycenaean might. He ought not to have attempted reconcilement by armed force, mother, for words accomplish everything that even the sword of an enemy might effect. Still, if on any other terms he cares to dwell here, he may; but that I shall never willingly let go. Shall I become his slave, when I can rule? Therefore come fire, come sword! Harness your horses, fill the plains with chariots, for I will not give up my tyranny to him. For if we must do wrong, to do so for tyranny is the fairest cause, but in all else piety should be our aim.”
8 Trata-se de um espanto diante da maravilha diametralmente oposto ao da natureza filosófica, tal como pensada por Platão no Teeteto: “Theodorus seems to be a pretty good guesser about your nature. For this feeling of wonder shows that you are a philosopher, since wonder is the only beginning of philosophy, and he who said that Iris was the child of Thaumas1 made a good genealogy. Hes. Theog. 750. Iris is the messenger of heaven, and Plato interprets the name of her father as "Wonder" e na República 5, 475c.
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10 Jean-Jacques Rousseau, Revêries du promeneur solitaire, VIème Revêrie : Si ma figure et mes traits étaient aussi parfaitement inconnus aux hommes que le sont mon caractère et mon naturel, je vivrais encore sans peine au milieu d'eux; leur société même pourrait me plaire tant que je leur serais parfaitement étranger. Livré sans contrainte à mes inclinations naturelles, je les aimerais encore s'ils ne s'occupaient jamais de moi. J'exercerais sur eux une bienveillance universelle et parfaitement désintéressée: mais sans former jamais d'attachement particulier, et sans porter le joug d'aucun devoir, je ferais envers eux librement et de moi-même, tout ce qu'ils ont tant de peine à faire incités par leur amour-propre et contraints par toutes leurs lois. Si j'étais resté libre, obscur, isolé, comme j'étais fait pour l'être, je n'aurais fait que du bien: car je n'ai dans le coeur le germe d'aucune passion nuisible. Si j'eusse été invisible et tout-puissant comme Dieu, j'aurais été bienfaisant et bon comme lui. C'est la force et la liberté qui font les excellents hommes. La faiblesse et l'esclavage n'ont fait jamais que des méchants. Si j'eusse été possesseur de l'anneau de Gygès, il m'eût tiré de la dépendance des hommes et les eût mis dans la mienne. Je me suis souvent demandé, dans mes châteaux en Espagne, quel usage j'aurais fait de cet anneau; car c'est bien là que la tentation d'abuser doit être près du pouvoir. Maître de contenter mes désirs, pouvant tout sans pouvoir être trompé par personne, qu'aurais-je pu désirer avec quelque suite? Une seule chose: c'eût été de voir tous les coeurs contents. L'aspect de la félicité publique eût pu seul toucher mon coeur d'un sentiment permanent, et l'ardent désir d'y concourir eût été ma plus constante passion. Toujours juste sans partialité et toujours bon sans faiblesse, je me serais également garanti des méfiances aveugles et des haines implacables; parce que, voyant les hommes tels qu'ils sont et lisant aisément au fond de leurs coeurs, j'en aurais peu trouvé d'assez aimables pour mériter toutes mes affections, peu d'assez odieux pour mériter toute ma haine, et que leur méchanceté même m'eût disposé à les plaindre par la connaissance certaine du mal qu'ils se font à eux-mêmes en voulant en faire à autrui. Peut-être aurais-je eu dans des moments de gaieté l'enfantillage d'opérer quelquefois des prodiges: mais parfaitement désintéressé pour moi-même et n'ayant pour loi que mes inclinations naturelles, sur quelques actes de justice sévère j'en aurais fait mille de clémence et d'équité. Ministre de la Providence et dispensateur de ses lois selon mon pouvoir, j'aurais fait des miracles plus sages et plus utiles que ceux de la légende dorée et du tombeau de saint Médard.Il n'y a qu'un seul point sur lequel la faculté de pénétrer partout invisible m'eût pu faire chercher des tentations auxquelles j'aurais mal résisté, et une fois entré dans ces voies d'égarement où n'eussé-je point été conduit par elles? Ce serait bien mal connaître la nature et moi-même que de me flatter que ces facilités ne m'auraient point séduit, ou que la raison m'aurait arrêté dans cette fatale pente. Sûr de moi sur tout autre article, j'étais perdu par celui-là seul. Celui que sa puissance met au-dessus de l'homme doit être au-dessus des faiblesses de l'humanité, sans quoi cet excès de force ne servira qu'à le mettre en effet au-dessous des autres et de ce qu'il eût été lui-même s'il fût resté leur égal.Tout bien considéré, je crois que je ferai mieux de jeter mon anneau magique avant qu'il m'ait fait faire quelque sottise. Si les hommes s'obstinent à me voir tout autre que je ne suis et que mon aspect irrite leur injustice, pour leur ôter cette vue il faut les fuir, mais non pas m'éclipser au milieu d'eux. C'est à eux de se cacher devant moi, de me dérober leurs manoeuvres, de fuir la lumière du jour, de s'enfoncer en terre comme des taupes. Pour moi qu'ils me voient s'ils peuvent, tant mieux, mais cela leur est impossible; ils ne verront jamais à ma place que le Jean-Jacques qu'ils se sont fait et qu'ils ont fait selon leur coeur, pour le haïr à leur aise. J'aurais donc tort de m'affecter de la façon dont ils me voient: je n'y dois prendre aucun intérêt véritable, car ce n'est pas moi qu'ils voient ainsi.Le résultat que je puis tirer de toutes ces réflexions est que je n'ai jamais été vraiment propre à la société civile où tout est gêne, obligation, devoir, et que mon naturel indépendant me rendit toujours incapable des assujettissements nécessaires à qui veut vivre avec les hommes. Tant que j'agis librement je suis bon et je ne fais que du bien; mais sitôt que je sens le joug, soit de la nécessité soit des hommes, je deviens rebelle ou plutôt rétif, alors je suis nul. Lorsqu'il faut faire le contraire de ma volonté, je ne le fais point, quoi qu'il arrive; je ne fais pas non plus ma volonté même, parce que je suis faible. Je m'abstiens d'agir: car toute ma faiblesse est pour l'action, toute ma force est négative, et tous mes péchés sont d'omission, rarement de commission. Je n'ai jamais cru que la liberté de l'homme consistât à faire ce qu'il veut, mais bien à ne jamais faire ce qu'il ne veut pas, et voilà celle que j'ai toujours réclamée, souvent conservée, et par qui j'ai été le plus en scandale à mes contemporains. Car pour eux, actifs, remuants, ambitieux, détestant la liberté dans les autres et n'en voulant point pour eux-mêmes, pourvu qu'ils fassent quelquefois leur volonté, ou plutôt qu'ils dominent celle d'autrui, ils se gênent toute leur vie à faire ce qui leur répugne et n'omettent rien de servile pour commander. Leur tort n'a donc pas été de m'écarter de la société comme un membre inutile, mais de m'en proscrire comme un membre pernicieux: car j'ai très peu fait de bien, je l'avoue, mais pour du mal, il n'en est entré dans ma volonté de ma vie, et je doute qu'il y ait aucun homme au monde qui en ait réellement moins fait que moi.” Gallica, coleção Bibliopolis http://www.bibliopolis.fr
11 Em toda a sequência, até aviso em contrário, as considerações redigidas aqui vêm do clássico livro de Roland Mousnier: L´ assassinat d´ Henry IV. Le problème du tyrannicide et l ´affermissement de la monarchie absolue (Paris, Gallimard, 1964). As fontes históricas são tratadas naquele escrito com mão de mestre, bem como a sua leitura no mundo europeu, em especial no século 17 francês. Ampliei a citação de fontes, não incluídas por Mousnier, para deixar mais evidente o problema do tiranicídio nos exercícios filosóficos.
12 “Não tem o povo o hábito invariável de pôr à sua testa um homem cujo poder ele nutre e torna maior? É de seu hábito, concordou. É portanto evidente que, onde quer que o tirano medre, é na raiz deste protetor e não alhures que ele se entronca. É absolutamente evidente. Mas onde começa a transformação do protetor em tirano ? Não é, evidentemente, quando se põe a fazer o que é relatado na fábula do templo de Zeus Liceu, na Arcádia? O que diz a fábula? indagou. Que aquele que provou entranhas humanas, cortadas em postas junto com as de outra vitimas, é inevitavelmente transmudado em lobo. Não ouviste contá-la ? Sim. Do mesmo modo, quando o chefe do povo, seguro da obediência absoluta da multidão, não sabe abster-se do sangue dos homens de sua própria tribo, mas, acusando-os injustamente, conforme o processo favorito dos de sua igualha, e arrastando-os perante os tribunais, se mancha de crimes mandando tirar-lhes a vida, quando, com lingua e boca ímpias, prova o sangue de sua raça, exila e mata acenando com a supressão das dívidas e uma nova partilha das terras, então, não deverá um tal homem necessariamente, e como que por uma lei do destino, perecer pela mão de seus inimigos, ou tornar-se tirano, e de homem transformar-se em lobo?” (A República, 8, 565 c - 566 a). Cito na tradução de J. Guinsburg (São Paulo, Perspectiva, 2006), pp. 332-333.
13 “A corrupção da realeza é a tirania. Ambas são governos monárquicos, mas diferem profundamente. O tirano visa apenas seu interesse pessoal e o rei se preocupa com o de seus dirigidos ...o tirano só busca o seu próprio bem. Sem dúvida, a tirania é o pior dentre os governos. Da monarquia se desliza para tirania, corrupção da monarquia, e um rei péssimo se transforma em tirano” (Etica a Nicômaco, 8, 10). A realeza se fundamenta no consentimento dos governados e na lei. A tirania é um desvio dessa prática. “A tirania é monarquia absoluta que, sem responsabilidade e só no interesse do tirano, governa homens que valem tanto ou mais do que ele, esta monarquia nunca se ocupa com os interesses particulares dos governados. Assim, ela existe apesar deles, pois não existe um só homem livre que suporte voluntariamente tal poder”. (Política, 6, 3 e 6, 2). Cf. Aristotle Politics Loeb Classical Library, Volume XXI, trad- Rackham, H. (Cambridge, Harvard University Press, 1990) pp. 324 e ss.
14 “Omnium autem rerum nec aptius est quicquam ad opes tuendas ac tenendas quam diligi nec alienius quam timeri. Praeclare enim Ennius 'Quem metuunt oderunt; quem quisque odit, perisse expetit'. Multorum autem odiis nullas opes posse obsistere, si antea fuit ignotum, nuper est cognitum. Nec vero huius tyranni solum, quem armis oppressa pertulit civitas ac paret cum maxime mortuo interitus declarat, quantum odium hominum valeat ad pestem, sed reliquorum similes exitus tyrannorum, quorum haud fere quisquam talem interitum effugit. Malus enim est custos diuturnitatis metus contraque benivolentia fidelis vel ad perpetuitatem. Sed iis, qui vi oppressos imperio coercent, sit sane adhibenda saevitia, ut eris in famulos, si aliter teneri non possunt; qui vero in libera civitate ita se instruunt, ut metuantur, iis nihil potest esse dementius. .” De officiis, II, 7, 23-26. Segue a tradução mais ampla do trecho, feita por Walter Miller : “Whom they fear they hate. And whom one hates, one hopes to see him dead." And we recently discovered, if it was not known before, that no amount of power can withstand the hatred of the many. The death of this tyrant whose yoke the state endured under the constraint of armed force and whom it still obeys more humbly than ever, though he is dead, illustrates the deadly effects of popular hatred; and the same lesson is taught by the similar fate of all other despots, of whom practically no one has ever escaped such a death. For fear is but a poor safeguard of lasting power; while affection, on the other hand, may be trusted to keep it safe for ever. But those who keep subjects in cheek by force would of course have to employ severity — masters, for example, toward their servants, when these cannot be held in control in any other way. But those who in a free state deliberately put themselves in a position to be feared are the maddest of the mad. For let the laws be never so much overborne by some one individual's power, let the spirit of freedom be never so intimidated, still sooner or later they assert themselves either through unvoiced public sentiment, or through secret ballots disposing of some high office of state. Freedom suppressed and again regained bites with keener fangs than freedom never endangered. Let us, then, embrace this policy, which appeals to every heart and is the strongest support not only of security but also of influence and power — namely, to banish fear and cleave to love. And thus we shall most easily secure success both in private and in public life. Furthermore, those who wish to be feared must inevitably be afraid of those whom they intimidate. What, for instance, shall we think of the elder Dionysius? With what tormenting fears he used to be racked! For through fear of the barber's razor he used to have his hair singed off with a glowing coal. In what state of mind do we fancy Alexander of Pherae lived? We read in history that he dearly loved his wife Thebe; and yet, whenever he went from the banquet hall to her in her chamber, he used to order a barbarian — one, too, tattooed like a Thracian, as the records state — to go before him with a drawn sword; and he used to send ahead some of his bodyguard to pry into the lady's caskets and to search and see whether some weapon were not concealed in her wardrobe. Unhappy man! To think a barbarian, a branded slave, more faithful than his own wife! Nor was he mistaken. For he was murdered by her own hand, because she suspected him of infidelity. And indeed no power is strong enough to be last ing, if it labours under the weight of fear. Witness Phalaris, whose cruelty is notorious beyond that of all others. He was slain, not treacherously (like that Alexander whom I named but now), not by a few conspirators (like that tyrant of ours), but the whole population of Agrigentum rose against him with one accord. Again, did not the Macedonians abandon Demetrius and march over as one man to Pyrrhus? And again, when the Spartans exercised their supremacy tyrannically, did not practically all the allies desert them and view their disaster at Leuctra, as idle spectators? I prefer in this connection to draw my illustrations from foreign history rather than from our own. Let me add, however, that as long as the empire of the Roman People maintained itself by acts of service, not of oppression, wars were waged in the interest of our allies or to safeguard our supremacy; the end of our wars was marked by acts of clemency or by only a necessary degree of severity; the senate was a haven of refuge for kings, tribes, 27 and nations; and the highest ambition of our magistrates and generals was to defend our provinces and (27) allies with justice and honour. And so our government could be called more accurately a protectorate of the world than a dominion” Cicero De officiis, trad, Walter Miller (New York, The Macmillan Co. 1948), pp. 168 e ss.
15 “Saepe enim tempore fit, ut quod turpe plerumque haberi soleat, inveniatur non esse turpe. Exempli causa ponatur aliquid, quod pateat latius. Quod potest maius scelus quam non modo hominem, sed etiam familiarem hominem occidere? Num igitur se adstrinxit scelere, si qui tyrannum occidit quamvis familiarem? Populo quidem Romano non videtur, qui ex omnibus praeclaris factis illud pulcherrimum existimat.” De officiis, III, 4, 19.
16 De beneficiis, 7, 19. Cautela, no entanto, com tais linhas. Elas não correspondem ao pensamento do estoico Seneca. Leia-se a meditação seguinte: “Esta é uma questão usual levantada sobre Marcos Brutus : deveria ele aceitar ter sua vida poupada pelo divino Júlio quando Brutus desejou matar César ? (…) Considero que se em outras ocasiões Brutus agiu como grande homem, errou neste caso particular e não agiu segundo os princípios estoicos”. De beneficiis, ed. C. Hosius (Lipsiae: Ed. Teubner, 1900). Para uma análise do trecho, cf. M. Piccolomini (South Illinois University Press, 1991), pp. 27 e ss. Para outro comentário do problema, cf. M. T. Griffin : Seneca, a philosopher in Politics (Oxford, Clarendon Press, 1992), pp. 189 e ss.
17 A apresentação de Jó, no livro, já traz a sua marca de temente a Deus. Ele é dito θεοσεβής, reverente e temente a Deus (a versão do rei Tiago traz o termo Fear, para medo), alguém que foge do mal. A encruzilhada diante do divino e do mal é a mesma apresentada por Paulo em Romanos.
18 “O diabo na Figura do Leviatã” capítulo do livro de Tomás de Aquino sobre o livro de Jó. Cf. Job, um homme pour notre temps. De Saint Thomas d´ Aquin, exposition littérale sur le livre de Job (Paris, Tequi, 1980).
19 Apologeticum, 31, 1. Acessado em Ad Fontes Academy [http://www.thelatinlibrary.com] no dia 30/03/2008, as 11h05 AM.
20 De mulceo, verbo transitivo que significa apalpar, afagar com as mãos, acariciar, ameigar.
21 Uso a excelente tradução de M. A. Ladero, M. Garcia, T. Zamarriego : Policraticus (Madrid, Editora Nacional, 1984). Para o pensamento de Salisbury, cf. Roberto Romano:“´Lembra-te de que és homem´. Governantes e Juízes no Policraticus de Jean Salisbury”. Revista Justiça e Democracia. Número 1, Primeiro Semestre de 1996. Páginas 153-161.
22 Não há espaço, aqui, para analisar os nexos entre a idéia de comissão, ou poder comissário, nas doutrinas jurídicas medievais, tanto laicas quanto religiosas. Mas é correto pensar que a idéia de Tomás de Aquino, neste passo, está inserida no plano mais amplo do direito ligado aos poderes. Uma tarefa fascinante e arriscada, dados os problemas óbvios trazidos pelo autor, é comparar a noção de autoridade delegada, comissária, em Tomás de Aquino da exposta por Carl Schmitt no cinzento livro A ditadura. Se possível, voltarei ao ponto.
23 Cf. Trois Discours sur la condition des grands, Premier Discours.
24 De regno ad regem Cypri, in Corpus Thomisticum : http://www.corpusthomisticum.org; Cf. também Scripta super libros sententiarum II, Dist. 44, quaest. 2 43 articulus 2: “ Utrum Christiani teneantur obedire potestatibus saecularibus, et maxime tyrannis”.
25 O que segue é citação de meu artigo “A Igualdade, considerações críticas”, publicado no Foglio Spinoziano (Itália). http://www.fogliospinoziano.it/ARTICOLI.htm Na mesma home page, cf. outro texto meu, “Democracia e Direito Natural”. Os dois escritos têm como alvo discutir o pensamento de Spinoza.
26 Tal certeza foi enunciada por Jacques Maritain em Distinguer pour unir, les degrés du savoir. Cf. Roberto Romano, “Maritain filósofo dos matizes” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara, 1987), pp. 141 e ss.
27 Estudo há bom tempo esta doutrina hierárquica. Considero os seus detalhes desde a minha tese de doutoramento sobre a Igreja e a política (Cf. R. Romano, Brasil: Igreja contra Estado, SP, Kayrós, 1979). Desde Lorenzo Valla, o estudo de Dionisio foi modificado, a partir do seu próprio nome. Com as análises filológicas de Valla, some a lenda que envolve a suposta presença de Dionisio no areópago, quando Paulo pregou aos gregos. Uso a edição dirigida por Maurice de Gandillac, Oeuvres complètes du Pseudo-Denys, l´ Aréopagite (Paris, Aubier, 1943), e também a edição magistral da Hierarquia Celeste (Cf. Roques, René, Heil, Günter, et Maurice Gandillac : Denys l ´Aréopagite, L´ Hierarchie céleste, Paris, Cerf, 1958). Para uma síntese do problema, cf. P. Tillich : A History of Christian Thought. From its Judaic and Hellenistic Origins to Existentialism (NY, Touchstone Book, 1967).
28 Ainda hoje um livro sugestivo é o escrito por Arthur O. Levejoy: The Great Chain of Being (Cambridge, Harvard University Press, 1936 e 1964). Para o assunto tratado neste ponto de minha exposição, cf. o capítulo III, “The chain of being and some internal conflicts in medieval thought”, pp. 67 e ss.
29 Um dos comentários mais belos sobre o assunto foi realizado por Erich Auerbach sobre a Divina Comédia. A unidade daquele poema que sintetiza o pensamento ético cristão, “descansa sobre o tema geral, sobre o status animarum post mortem; este deve ser, como sentença divina final, uma unidade perfeitamente ordenada, tanto como sistema teórico, quanto como realidade prática e, portanto, também como criação estética; deve representar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pura e atual do que o mundo terreno, ou algo que nele acontece, pois que o Além, ainda que inacabado até o Juízo Final, não apresenta, na medida em que o faz o mundo terreno, desenvolvimento, potencialidade e provisoriedade, mas é o ato completo do plano divino. A ordem unitária do Além, assim como Dante no-la apresenta, é tangível da maneira mais imediata como sistema moral, na repartição das almas nos três reinos e suas subdivisões: o sistema segue em tudo a ética aristotélico-tomista”. Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis. A representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, pp. 161-162.
30 Uma análise mais ampla desta problemática é feita por mim em trabalho já antigo : Cf. “Lux in Tenebris. Franciscanos e Dominicanos, utopia democrática”, in Lux in Tenebris. Meditações sobre Filosofia e Cultura. São Paulo, Unicamp Ed., 1987, pp. 31 e ss.
31 Scriptum super Sententiis II, Distinctio 44, questio 2, articulus 2 in Corpus thomisticum : http://www.corpusthomisticum.org/snp2044.html e também Summa theologiae IIa IIae 104: De obedientia.
32 Cf. Etica a Nicômaco V, vi. 9– vii. 3 e ss in Aristotle Loeb Classical Library, volume XIX, translated by H. Rackham p. 295 ss. “But we must not forget that the subject of our investigation is at once Justice in the absolute sense and Political Justice. Political Justice means justice as between free and (actually or proportionately) equal persons, living a common life for the purpose of satisfying their needs. Hence between people not free and equal political justice cannot exist, but only a sort of justice in a metaphorical sense. For justice can only exist between those whose mutual relations are regulated by law, and law exists among those between whom there is a possibility of injustice, for the administration of the law means the discrimination of what is just and what is unjust. Persons therefore between whom injustice can exist can act unjustly towards each other (although unjust action does not necessarily involve injustice): to act unjustly meaning to assign oneself too large a share of things generally good and too small a share of things generally evil. This is why we do not permit a man to rule, but the law, because a man rules in his own interest,and becomes a tyrant; but the function of a ruler is to be the guardian of justice, and if of justice, then of equality. A just ruler seems to make nothing out of his office; for he does not allot to himself a larger share of things generally good, unless it be proportionate to his merits; so that he labors for others, which accounts for the saying mentioned above,1 that 'Justice is the good of others.' Consequently some recompense has to be given him, in the shape of honor and dignity. It is those whom such rewards do not satisfy who make themselves tyrants.Cf. texto diverso no Site Perseus.
33 Física in Opere 3, trad. Antonio Russo (Bari, Laterza, 1973), p. 49.
34 Cf. B. Nicholas, An Introduction to Roman Law (Oxford, 1992) e sobretudo R. W. Dyson : Thomas Aquinas (Cambridge University Press, 2002) . Questia.
35 ...regimen tyrannicum non est justum: quia non ordinatur ad bonum commune, sed ad bonum privatum regentis, ut patet per Philosophum, in tertia Polit. et in VIII Ethic. et ideo perturbatio hujus regiminis non habet rationem seditionis.
36 Cf. R. W. Carlyle and A. J. Carlyle : A History of Medieval Political Theory in the West (William Blackwood & Sons Ltd, Edinburgh and London, 1936). “For to Bartolus tyranny is not only a corrupt form of government, but it is the worst of all corrupt governments. The government of a few, or of the multitude, is corrupt when they pursue their own advantage, but it is not so far removed from a government for the common good as that of the one man. 1 We may put it in concrete terms, the Italian oligarchy or democracy was not so really corrupt and evil a thing as the Italian tyranny. Bartolus adds that the corrupt oligarchy or democracy tends to develop into a tyranny, as they had seen in their own day, for " Italy is full of tyrants." 2 This treatment of tyranny by Bartolus is of importance, and we must consider it not only in the ' De Begimine Civitatis,' but also in another treatise, entitled ' De Tyranno.' We have just seen that Bartolus derives from Egidius Colonna and Aristotle the conception of the tyrant as one who governs for his own profit and not for the good of the community. In the treatise, ' De Tyranno,' he derives from S. Isidore, directly or indirectly, the description of the tyrant as that wicked king who exercises a cruel rule over his subjects ; [" Sicut enim rex, seu boni, quia ex eo quod plures sunt, ali- imperator Romanorum est Justus et quid sapit de natura communis boni. verus et universalis : ita si quis ilium Sed si unus est tyrannus otiam recedit locum vult injuste obtinere, appellatur a commuui bono. Praeterea, sicut proprie tyrannus."] from S. Gregory the Great he takes his description of the tyrant as one who governs the commonwealth but not lawfully (non jure), 4 and he applies this to the case of the King or Emperor of the Romans ; if any man seeks to obtain that place unjustly he is properly called a tyrant. 5 In another place Bartolus says : " The tyrant may be either manifest ' or ' veiled,' " but, what is more important, he may be a tyrant, " ex defectu tituli " or " ex parte exercitus." The distinction is important, though it was not new ; Aquinas had pointed it out in his commentary on the " Sentences." . When he comes to the question of tyranny " ex parte exercitus," he first says in general terms that the tyrant is he who does tyrannical things that is, things directed to his own advantage and not that of the community, and then cites from a work, which he attributes to Plutarch, ' De Regimine Principum,' an enumeration of such actions. What is the remedy against the tyrant. If he has a superior, it is for the superior to depose him ; but Bartolus interpolates the observation that there may be occasions when the emperor or Pope may maintain such tyrants in their position for some grave and sufficient reason. 4 In another work he seems clearly to indicate that the tyrant may rightfully be deposed,
and he cites a passage from Aquinas, to which we have often referred, that it is not sedition to resist the tyrant.”
37Ad Legem Juliam Majestatis no Digesto, 48 tit. 4 s1 : “crimen illud quod adversus Populum Romanum vel adversus securitatem ejus committitur”. Cf. William Smith e outros : Dictionnary of Greek and Roman Antiquities, verbete “Majestas”( New York, Harper & Brothers, 1847), pp. 609 ss : “A frase majestas publica no Digesto equivale à majestas populi Romani. No período republicano o termo majestas laesa ou minuta era mais comumente aplicado a casos como traição geral ou render o exército ao inimigo, excitar sedições, e geralmente pela péssima conduta administrativa, que lesava a majestas do Estado.” Cf. Lauterpacht, H.(Ed.) : International Law Reports, 8 in Annual Digest and Reports of Public International Laws Cases, 1935-1937, (Cambridge University Press, 1937), pp. 88 ss : “Os Pandecta que tratam com a Lex Julia Majestatis (Dig. 48, 4), na lei I deste título, que Ulpiano define como Majestatis crimen como segue: quod adversus populum Romanum vel adversus securitatem ejus committitur. Por securitatem, diz Godofredo, seguindo os primeiros comentadores, devemos entender a segurança e tranqüilidade do Estado (...) perduellio era um ramo do crimen majestatis que cobria toda ofensa contra a dignidade, autoridade ou poder do estado. E este elemento se liga a tal ponto, porque não pode existir crimen majestatis onde a autoridade em questão não tem majestas. Perduellio só pode ser cometido contra um dirigente que possui majestas”. Perduellio é o mau guerreiro, inimigo do país em geral. Quando a palavra hostis perdeu seu sentido primitivo de “estrangeiro” ele se tornou sinônimo de perduellio, mas esta última palavra designa o inimigo interior, hostis o externo. Sob o império, o crime de lesa majestade abarcou o de perduellio. (Dic. Saglio e Daremberg, verbete Perduellio). Uma correta tradução de texto essencial de Bartolo encontra-se na página da internet dedicada aos escritos medievais cujo título é Medieval Sourcebook. Alí, pode-se ler o livro de Bartolo designado, em inglês, Treatise on City Government, c. 1330. Com esta fonte é possível deduzir o que pensa Bartolo da tirania e da maneira mais eficaz de eliminá-la. Endereço da página : http://www.fordham.edu/halsall/sbook.html
38 As acusações de feitiçaria dirigidas aos adversários políticos são comuns na época. Ainda no Ricardo 3º de Shakespeare, o tirano acusa seus oponentes reais ou imaginários de feitiçaria contra ele. Em Macbeth o jogo cênico e do destino é regido por bruxas. A bibliografia sobre bruxas é imensa. Basta citar alguns textos e nomes significativos da pesquisa acadêmica, independentemente de suas posições teóricas ou ideológicas: MARWICK, M. (org.). Witchcraft and sorcery (Middlesex, Penguin Books, 1982) e também Trevor-Roper , H.R. : The european witch - craze of the sixteenth and seventeenth centuries (Hamondsworth, Penguin, 1990).
39 Reitero que as enunciações até este passo são extraídas de Mousnier. Apenas ampliei o tema com alguns comentários ou indicação de fontes.
40 Mousnier, op. cit. pp. 70-71.
41 A. Douarche : De tyrannicidio apud scriptores XVI saeculi (Tese de Letras, Paris, 1888); Lossen, Die Lehre vom Tyrannenmord.
42 Discorsi, 3, 6. “Delle congiure”. Texto ambiguo no qual ao mesmo tempo o autor descreve os motivos e as formas, nas tentativas de tiranicídio, mas alerta contra o seu perigoso para os sediciosos. “ Un'altra cagione ci è, e grandissima, che fa gli uomini congiurare contro al principe; la quale è il desiderio di liberare la patria, stata da quello occupata. Questa cagione mosse Bruto e Cassio contro a Cesare; questa ha mosso molti altri contro a' Falari, Dionisii, ed altri occupatori della patria loro. Né può, da questo omore, alcuno tiranno guardarsi, se non con diporre la tirannide. E perché non si truova alcuno che faccia questo, si truova pochi che non capitino male; donde nacque quel verso di Iuvenale :Ad generum cereris sine caede et vulnere pauci descendunt reges, et sicca morte tiranni (Satirae, 10, 112-113: ”A morada de Ceres (Plutão) são poucos os reis que descem sem feridas mortais, ou os tiranos por morte incruenta”. Cf. Niccolò Machiavelli Discorsi sopra la prima decada di Tito Livio, in Il Principe e Discorsi (Milano, Feltrinelli, 1973), pp. 390 ss.
43 Adagia, chiliadis primae, centuria secunda.
44 Uso a tradução de Lester K. Born : The Education of a Christian Prince (New York, Columbia University Press, 1936), pp. 162 ss. Erasmo encontra boa parte de sua inspiração no pequeno escrito de Plutarco, Ad principem ineruditum (Para um principe sem erudição).in Loeb Classical Library, Plutarch´ s Moralia, X, trad. H.N. Fowler, pp. 52 ss.
45 Ver Contra Henricum regem Angliae. trad. E. S. Buchanan (New York, Charles A. Swift, 1928).
46 Institution de la religion chrétienne, livro IV, cap. 20, “Du gouvernement civil”. Jean Daniel Benoît ed., (Paris, Vrin, 1957).
47 Du droit des magistrats sur leurs subiets. Traité tres necessaire en ce temps pour aduertir de leur deuoir, tant les Magistrats que les Subiets : publié par ceux de Magdebourg l ´an M.D.L & maintenant reueu & augmenté de plusieurs raisons & exemples. 1575. (Paris, Editions D´ Histoire Sociale, 1977). Fac similar.
48 O termo é dos mais difíceis de serem traduzidos para a nossa lingua. É possível encontrar em traduções de filmes, reportagens e mesmo em livros acadêmicos a palavra “oficial” para explicar a palavra inglêsa e francesa. A palavra “funcionário” seria a mais adequada, mas ela obnubila os matizes hierárquicos do termo, no Estado e na Igreja. No caso, o texto fala com clareza de funcionários de alta situação, não de subordinados. A magistratura maior é a do rei, mas ele pode ser pensado como “primeiro entre os iguais”. Max Weber é uma rica fonte teórica e histórica para o exame desse passo.
49 Cf. Gierke, Otto : Natural law and the theory of society 1500 to 1800 (Boston, Beacon Hill, Beacon Press, 1960), pp. 70 ss.
50 Uso aqui a tradução brasileira, infelizmente não integral :Joahnnes Althusius, Política (Rio, Topbooks, 2003), pp. 349 ss.
51 “...quando a força manifesta é utilizada pelo magistrado contra pessoas privadas, é permitido que elas defendam suas vidas pela resistência, pois, nesse caso, as leis que constituem os reis e o direito natural (jus naturale) armam essas pessoas contra o magistrado que usa a força contra a vida”. Ed. brasileira citada, p. 356.
52 Sigo literalmente o ainda hoje instigante exame de Althusius, feito por Otto Gierke, no clássico Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche, contributo alla storia della sistematica del diritto (Torino, Einaudi, 1974). O livro inteiro é útil para o estudo dos monarcômacos.
53 George Buchanan, De Maria Scotorum regina, totaque eius contra regem coniuratione, foedo cum Bothuelio adulterio, nefaria in maritum crudelitate & rabie, horrendo insuper & deterrimo eiusdem parricidio: plena, & tragica planè historia. [By George Buchanan] (Actio contra Mariam Scotorum reginam ... [By Thomas Wilson] - Literae reginae Scot. ad comitem Bothuelium scriptae). [London] : [publicado por John Day], [1571] e George Buchanan, Ane detectioun of the du*inges of Marie Quene of Scottes, touchand the murder of hir husband, and hir conspiracie, adulterie, and pretended mariage with the Erle of Bothwell. And ane defence of the trew lordis, mainteineris of the Kingis graces ctioun [sic] and authaoritie [sic]. Translated out of the latine quhilke was written by G.B. [i.e. George Buchanan]. [London] : [John Day], [1571].
54 As notas seguintes são extraídas do excelente trabalho, já antigo mas importante em nossos dias, de Paul Mesnard : L´ Essor de la Philosophie Politique au XVIe Siècle (Paris, Vrin, 1977), pp. 355 ss.
55 A tese de que o catolicismo político e jurídico ajudou poderosamente a formação moderna da ordem democrática é algo que merece reflexões. Como diz um comentador do assunto, “The first great influence of the church for democracy, which in general was spread over the three centuries after Christ, had been the teachings of the early Christians in the face of persecution. How antagonistic these teachings were to the Roman Empire may be gathered from a review of the systematic persecution of those who placed obedience to God before the law of Rome. Such persecution had resulted only in the quickened absorption of Christian principles throughout the Roman world, and it would be difficult to overvalue such spread of Christianity as the seed from which future democratic government was to grow. But even after the identification of the Church with the Empire, and the acquisition of temporal power by the Church itself, whereby it became in part responsible for the obedience of its members to the state, the Catholic Church made its second great contribution to the growth of democratic ideas, i.e., the political pholosophy of individual teachers who remained within the fold of the Church. The support which Iraeneus, Tertullian, Ambrose, Gratian, Chrysostom, Lactantius, and Isidore of Seville gave to the Stoic conception of natural law, the vigor with which Thomas Aquinas, Suarez, and Bellarmine defended the power of the people to depose a king, and the influence of Ivo of Chartres and his successors in rationalizing English civil law,--all these forces did service to the cause of democratic development which can hardly be calculated. Milton frequently refers to the church fathers as authorities for his republican principles. If, as Gooch and Borgeaud say, democracy is the child of the Reformation, not of the comparatively conservative reformers, she is the great grandchild of primitive Christianity, and the grandchild of the great Catholic political thinkers.” Don M. Wolfe : Milton in the Puritan Revolution(Thomas Nelson and Sons, 1941), p. 9.
56 George Buchanan, De iure regni apud Scotos, dialogus, authore Georgio Buchanano Scoto. [Edinburgh] : [Publicado por John Ross], 1579.
57 O Rei, segundo Tiago 1º é “ a manner or resemblance of Diuine power vpon earth," ele pode, à similitude divina "make and vnmake their subiects: they haue power of raising, and casting downe: of life, and of death .... They haue power to exalt low things, and abase high things, and make of their subiects like men at the Chesse: a pawne to take a Bishop or a Knight, and to cry vp, or downe any of their subiects, as they do their money. . . . For to Emperors, or Kings that are Monarches, their Subiects bodies & goods are due for their defence and maintenance. . . . Now a Father may dispose of his Inheritance to his children, at his pleasure: yea, euen disinherite the eldest vpon iust occasions, and preferre the youngest, according to his liking; make them beggars, or rich at his pleasure; restraine, or banish out of his presence, as h *ee findes them giue cause of offence, or restore them in fauour againe with the penitent sinner: So may the King deale with his Subiects." Speech in Parliament, 1609-10. Charles Howard McIlwain cita a passagem na sua Introdução às Obras de Tiago 1º, editadas eletrônicamente no Perseus Project. Cf. também The workes of the most high and mightie prince, Iames by the grace of God, King of Great Britaine, France and Ireland, Defender of the Faith, &c. Published by Iames [Montagu], Bishop of Winton, and Deane of His Maiesties Chappel Royall (London, Robert Barker and John Bill, 1616).
58 Cf. Wootton, D. (Ed.) : Divine right and Democracy, (Penguin, 1986) (com o texto do Killing No Murder); Coward, B. . Oliver Cromwell (Longman, 2000); Brailsford, H.N. : The Levellers and the English Revolution (Spokesman Books, 1976).
59 Theodore Calvin Pease: “Debate in the Council of the Army on the Agreement of the people” in The Leveller Movement: A Study in the History and Political Theory of the English Great Civil War (American Historical Association, 1916). p. 227 ss. Também W. Schenk : The Concern for Social Justice in the Puritan Revolution (Longmans, Green and Co., 1948), p. 72 ss.
60 Uso o texto original inglês publicado no livro de Olivier Lutaud: Des Révolutions d´ Angleterre à la Révolution Française. Le tyrannicide & Killing no Murder (Cromwell, Athalie, Bonaparte), (Haia, Martinus Nijhoff, 1973), pp. 374 ss. Há no mesmo volume, uma tradução francesa da época.
61 Otto Gierke : Giovanni Althusius...ed. cit. p. 234 ss.
62 Vem de praeire e significa o chefe que marcha à frente do exército. Primitivamente a palavra designa o consul e mesmo o ditador (praetor maximus). Cf. Dicionário Saglio, verbete Praetor, p. 628,
63 Cf. para a continuidade de choques semelhantes até os dias de hoje, no Estado democrático, o belo texto de Norberto Bobbio, “A Praça e o Palácio” in L’ Utopia capovolta.
64 Nome retomado por um autor de famoso manifesto contra a tirania, o livro Vindiciae contra tyrannos (1660) “The Vindiciae deals directly with the four great questions of the time. Are subjects bound to obey princes if they command that which is contrary to the law of God? Is it lawful to resist a prince who infringes the law of God, and ruins the Church, and, if so, who ought to resist him, by what means, and how far should resistance extend? Is it lawful to resist a prince who ruins the state, and, if so, to whom should the organisation of resistance, its means and limits, be confided? Are neighbouring princes bound by law to help the subjects of princes who afflict them either for the cause of religion or in the practice of tyranny? To the first question, the Vindiciae responds in the negative. It is clear from the authority of Scripture and the example of the martyrs that the commands of God merit obedience before any orders from an earthly prince. Nor is this situation altered by the fact that princes claim to rule by divine right. The earth is the possession of the Lord, and Kings reign only by his will; one must then obey them only to the degree that they obey the commands of their master. The King is a vassal like any other vassal; he is, therefore, bound by a contract. Should he break its terms, diffidatio ensues, as it would in any other case. The establishment of Kingship, in fact, clearly involves a double contract. There is a contract between God, on the one hand, and the King upon the other; there is a contract also between the King and the people. Clearly again, therefore, whatever binds the King binds the people also; and should the King fail in his duty, the people must not -forget its obligations. To obey its earthly master in preference to obedience from God is to invoke the punishment of heaven. For when men fail to obey the laws of God they are expelling him from his Kingdom. The King is instituted only to secure the better observance of those laws, and, when he fails, his sin ought not to involve popular acquiescence. That, indeed, is the true rebellion. It is as though men obeyed an officer rather than the express ordinance of the King himself. When subjects refuse to give their conscience into evil keeping, they obey the true source of right. For there are, as Cicero said, degrees of duty, of which the highest belongs to God, and the second only to one's country; just as in the civil law treason, though it be a heinous crime, is inferior in wickedness to wrongdoing. Nor do the Apostles write otherwise. It is one thing to refuse obedience to a command which infringes the will of God. Whether one ought to organise resistance to a prince who seeks to infringe it and attack the Church seems, at first sight, a more difficult and complex question. Harold J. Laski : Vindiciae contra Tyrannos, Historical Introduction, in http://www.constitution.org/vct/vind_laski.htm
65 A ditadura, segundo Mommsen, seria uma espécie de “poder de exceção, mais ou menos como hoje a supressão da justiça civil e a proclamação do estado de sítio” Le droit public (trad. francesa de P.-F. Girard, Paris, 1893), citado por Claude Nicolet “La dictature à Rome” in Dictatures et légitimité, Maurice Duverger Ed. (Paris, PUF, 1982), p. 69.
66 Claude Nicolet, op. cit. p. 74.
67 Tal aspecto é notável na ditadura brasileira de 1964, que analisaremos adiante. Por enquanto basta citar o Ato Institucional n. 1 : “À Nação : É indispensável fixar o conceito de movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sôbre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.
A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interêsse e a vontade de um grupo, mas o interêsse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do poder constituinte. Èsse se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do poder constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como poder constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o Govêrno anterior e tem a capacidade de constituir o nòvo Govêrno. Nela se contém a fôrça normativa, inerente ao poder constituinte. Ela edita norma jurídica sem que nisso seja limitada pela nova atividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Fôrças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o povo, em seu nome exercem o poder constituinte, de que o povo é único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos comandantes em chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao nôvo Govêrno a ser instituído os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de ser institucionalizada e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos podêres de que efetivamente dispõe. O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos comandos em chefe das três armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o Govêrno, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do nôvo Govêrno e atribuir-lhe os podêres ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do poder no exclusivo interêsse do País. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos podêres do Presidente da República, a fim de que êste possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do Govêrno como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos podêres de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus podêres, constantes do presente Ato Institucional. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe neste Ato Institucional, resultante do exercício do poder constituinte, inerente a tôdas as revoluções, a sua legitimação. Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um Govêrno capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o comando supremo da revolução, representada pelos comandantes em chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica...
68 Sigo sempre, nos passos desta análise, a explanação de Claude Nicolet, op. cit.
69 Para o decemvirato, ver Tito Lívio, História de Roma, III (texto bilingüe no site Perseus, Livy, History of Rome (ed. Rev. Canon Roberts).
70 “Só eles conhecem os segredos práticos da política interna”. Cf. Theodor Mommsen : “Le Tribunat du peuple aux décemvirs” in Histoire romaine, des commencements de Rome jusqu’aux guerres civiles, trad. francesa de C.A. Alexandre (Paris, Robert Laffont, 1985), Volume II, pp. 198 ss. Se dominam solitários os segredos da ordem interior, com evidência controlam os pontos secretos da externa.
71 Cf. Hellegouarc’h, J. : Le vocabulaire latin des relations et des partis politiques sous la république (Paris, Les Belles Lettres, 1972), pp. 439 ss.
72 “Pareva che fusse in Roma intra la Plebe ed il Senato, cacciati i Tarquini, una unione grandissima; e che i Nobili avessono diposto quella loro superbia, e fossero diventati d'animo popolare, e sopportabili da qualunque ancora che infimo. Stette nascoso questo inganno, né se ne vide la cagione, infino che i Tarquinii vissero; dei quali temendo la Nobilità, ed avendo paura che la Plebe male trattata non si accostasse loro, si portava umanamente con quella: ma, come prima ei furono morti i Tarquinii, e che ai Nobili fu la paura fuggita, cominciarono a sputare contro alla Plebe quel veleno che si avevano tenuto nel petto, ed in tutti i modi che potevano la offendevano.(...) Però mancati i Tarquinii, che con la paura di loro tenevano la Nobilità a freno, convenne pensare a uno nuovo ordine che facesse quel medesimo effetto che facevano i Tarquinii quando erano vivi. E però, dopo molte confusioni, romori e pericoli di scandoli, che nacquero intra la Plebe e la Nobilità, si venne, per sicurtà della Plebe, alla creazione de' Tribuni; e quelli ordinarono con tante preminenzie e tanta riputazione, che poterono essere sempre di poi mezzi intra la Plebe e il Senato, e ovviare alla insolenzia de' Nobili.” Maquiavel, Discorsi sopra la prima decada di Tito Livio, I, III.
73 Cf. Mommsen, op. cit. volume I, pp. 198 ss.
74 Cf. “Fides”in J. Hellegouarc’h op. cit. pp. 23-62.
75 Para uma edição fiável do texto, no entanto, cf. The Parallel Lives, The life of Coriolanus, volume 4 (Oxford, Loeb Classical Library, 1916), cujo paralelo grego é Alcibíades.
76 Todas as passagens sobre a peça de Shakespeare são tirados por mim do magnífico livro de Jan Kott, Shakespeare notre contemporain (Paris,Payot, 1978), pp. 149 ss.
77 Hegel, G.W.F. : “Vorlesungen uber die Asthetik, Die allgemeine Machte des Handels” in Werke in zwanzig Banden (F.A.M., Suhrkamp Verlag, 1977), volume I, pp. 286-287.
78 Hegel, op. cit. ed. cit. volume I, pp. 243 ss.
79 “Now he being grown to great credit and authority in Rome for his valiantness, it fortuned there grew sedition in the city, because the Senate did favour the rich against the people, who did complain of the sore oppression of usurers, of whom they borrowed money. For those that had little, were yet spoiled of that little they had by their creditors, for lack of ability to pay the usury: who offered their goods to be sold to them that would give most. And such as had nothing left, their bodies were laid hold on, and they were made their bondmen, notwithstanding all the wounds and cuts they shewed, which they had received in many battles, fighting for defence of their country and commonwealth: of the which, the last war they made was against the Sabines, wherein they fought upon the promise the rich men had made them, that from thenceforth they would intreat 1 them more gently, and also upon the word of Marcus Valerius chief of the Senate, who, by authority of the council, and in the behalf of the rich, said they should perform that they had promised. But after that they had faithfully served in this last battle of all, where they overcame their enemies, seeing they were never a whit the better, nor more gently intreated, and that the Senate would give no ear to them, but made as though they had forgotten the former promise, and suffered them to be made slaves and bondmen to their creditors, and besides, to be turned out of all that ever they had: they fell then even to flat rebellion and mutiny, and to stir up dangerous tumults within the city.” Plutarch, Coriolanus, Perseus Project.
80 Não posso continuar a seguir a bela análise de Kott, mas creio ser importante recordar a leitura que ele faz do personagem Menemius Agrippa e de sua fábula do estômago e dos demais membros, uma das figuras mais relevantes do ideário conservador. “Agrippa é o ideólogo dos patrícios, no sentido em que Marx, com perfeito desprezo, usa esta palavra. Agrippa é o tático e o filósofo do oportunismo”(op. cit. p. 157).
81 Francesco Guicciardini, contemporâneo de Maquiavel pensa, ao contrário do que afirmam os Discorsi, que os tribunos da plebe, por exemplo, em vez de serem instrumento de afirmação da liberdade sob a lei, era um meio de prevaricação da plebe, meio de licença e de anarquia. Cf. Francesco Guicciardini Antimachiavelli, a cura di Gian Franco Berardi (Roma, Riuniti, 1984), p. 43. O juízo de Guicciardini é claramente favorável à nobreza, ao contrário de Maquiavel. “Mas quando fosse preciso colocar numa cidade ou governo apenas de nobres ou da plebe, creio que seria sem erro fazê-lo com nobres; porque tendo mais prudência e mais qualidade, poder-se-á esperar se coloquem em posição mais racional (raggionevole) do que a plebe, pois esta é cheia de ignorância e confusão e de muitas qualidades péssimas, só podemos dela esperar que se precipite e faça cometa qualquer coisa”, op. cit. p. 46. E mais adiante: “...os governos populares apenas em toda parte duram pouco e além de infinitos tumultos e desordens, de que estiveram cheios enquanto duraram, pariram ou tiranias ou ruína da cidade”. (p. 78).
82 Cf. Considérations sur les causes de la grandeur des Romains, et de leur décadence, in Oeuvres complètes de Montesquieu, volume II (Bibliothèque de la Pléiade, Paris, Gallimard, 1951), pp. 69 ss. Políbio indica que a constituição de Roma, nos tempos da Segunda Guerra Púnica, seria ao mesmo tempo democrática, monárquica e parlamentar : “[6.11.11] I have already mentioned the three divisions of government in control of state affairs. Regarding their respective roles, everything was so equally and fittingly set out and administered, in all respects, that no one, not even any of the Romans themselves, could say for certain whether their system of government was aristocratic in its general nature, or democratic, or monarchical. And this uncertainty is only reasonable, for if we were to focus on the powers of the consuls it would appear to be altogether monarchical and kingly in nature. If, however, we were to focus on the powers of the Senate, it would appear to be a government under the control of an aristocracy. And yet if one were to look at the powers enjoyed by the People, it would seem plain that it was democratic in nature. As for the parts of government controlled by each element, they were at that time and (with a few exceptions) still are as follows: [6.12.1] The consuls, when in Rome prior to leading out their legions, are in charge of all public affairs. For all of the other public officials, with the exception of the tribunes, are below the consuls and subject to their authority, and it is the consuls who introduce ambassadors to the Senate. In addition to the powers just mentioned, the consuls introduce to the Senate urgent matters for its consideration and bring about the detailed implementation of its decrees. Moreover, it is the consuls' duty to consider all matters of public concern which are to be decided by the People: they summon the assemblies, introduce measures requiring a vote, and have authority over the execution of the decisions of the majority. Furthermore, they enjoy nearly autocratic powers as regards preparations for war and the general conduct of military affairs in the field. It is within their power to give whatever commands to the allies that they think right, to appoint military tribunes, to levy soldiers, and to choose those fit for military service. When in the field they also have authority to punish any of those under their command whom they wish. And they have the power to dispense whatever public funds they might propose, a quaestor being appointed to accompany them and carry out their orders in such matters. As a result, one might reasonably say, if one were to look at this section of the government, that the Roman constitution was a pure monarchy or kingship. ...[6.13.1] The Senate, first of all, has control of the treasury, for it has complete authority over all revenues and expenditures. For the quaestors are unable to disburse funds for any particular purpose without a decree from the Senate, the only exception being in the case of the consuls [see above]. The Senate is in charge of by far the most important and the greatest expenditure of public funds — that which the censors make every lustrum [i.e. every five years] for the repair and construction of public works: it is through the Senate that the funds are allocated to the censors. Similarly, whatever crimes committed in Italy require a public investigation — for example, treason, conspiracy, poisoning, assassination — these all fall under the jurisdiction of the Senate. In addition, if some private person or one of the communities in Italy requires legal settlement of a dispute or indeed the assessment of a penalty or aid or protection, all of these things lie in the Senate's care. And indeed, if it should be necessary to send an embassy to any people outside of Italy — either to effect a truce, or to call for aid, or to impose duties on them, or to accept their submission, or to declare war on them — the Senate makes provision for such things. In the same way, when embassies arrive in Rome, the Senate handles the question of how to deal with them and what reply is to be given them. Not one of the above matters is presented to the People for consideration. As a result, if one were in Rome when the consuls were not present, the constitution would appear altogether aristocratic in nature. This, indeed, is the firm conviction of many of the Greeks and likewise of many eastern kings, on account of the Senate's authority in nearly all dealings that these foreign peoples have with Rome.[6.14.1] After this who would not reasonably enquire as to just what sort of role is left in the Roman state for the People, and just what that role is, seeing that the authority of the Senate extends over the various jurisdictions that I have detailed — and over the greatest of all, that being revenues and expenditures — while the consuls in turn have absolute authority concerning preparations for war and operations in the field? But in fact there is a role left for the People as well, and a most weighty one. For the People alone amid the organs of state have jurisdiction over the conferring of rewards and punishments, these representing the sole bonds by which kingdoms and states and, in short, all human society are held together. ... The People often pass judgment, then, even where a financial penalty is concerned, whenever the punishment for a crime involves a substantial penalty, and especially when the accused have held high office. And the People alone pass judgment in capital cases. ... It is the People who grant offices to the deserving, the most noble prize for virtue in a state. They also have authority over the ratifying of laws and — the greatest of their powers — they deliberate and pass judgment concerning war and peace. Also, as for the various military alliances, truces, and other treaties, they approve the particulars of these, rendering them valid or rejecting them. The result is that, with a view to these powers, one might reasonably say that the People have the greatest role in the state, and that the constitution is democratic in nature.[6.15.1] I have now indicated how the various functions of the state are divided among the different parts of the government. Now I will indicate how each can counteract the others, should it so wish, or work in harmony with them. Whenever the consul sets out with his forces, invested with the aforementioned powers, he appears to have absolute authority as regards the mission at hand, yet he requires the cooperation of both the People and the Senate, and without them he lacks sufficient power to bring his operation to a successful conclusion. For it is clear that supplies must always be sent to accompany his armies, but neither food nor clothing nor pay for the soldiers can be allocated without a decree of the Senate, with the result that the commander's plans are rendered ineffectual if the Senate chooses to be negligent or obstructionist. Furthermore, it lies with the Senate whether the commander's plans and designs ultimately come to fulfillment or not, since the Senate has the authority to send another commander out to supersede the old at the end of a year's time or to extend the command of the consul in the field [sc. as pro consule]. It also has the power to celebrate and thus increase the fame of the consul's achievements, or to belittle them and render them obscure. For the celebrations that they call triumphs, in which the spectacle of the general's achievements is brought strikingly before the eyes of the citizens, cannot be organized as is fitting — and at times cannot be held at all — unless the Senate should concur and should provide the requisite expenditures. As for the People, it is altogether necessary for the consuls to court their favor, even if they should happen to be quite far from Rome. For it is the People who reject or ratify truces and other treaties, as I have noted above. Of greatest weight is the fact that, upon laying aside their office, it is before the People that they must submit an account of their actions. The result is that it is in no way safe for the commanders to slight the Senate or the good will of the People.[6.16.1] The Senate, in turn, which enjoys so much authority, first of all must pay attention to the masses and court the favor of the People in matters of public concern. The most important and greatest enquiries into crimes against the state, and the penalties thereby adjudicated — those that involve the death sentence — cannot be carried out by it unless the People first ratify what it has proposed. The same is true of those things that concern the Senate itself: for if ever anyone introduces a law that would strip the Senate of some part of the powers accorded it by tradition, or would abolish their right of precedence in seating and other honors accorded senators, or, indeed, would effect a reduction in their livelihoods — the People have authority over all such matters, whether to pass them or not. Most important of all, if a single one of the tribunes interposes his veto, the Senate is unable to put into effect any of its resolutions; indeed, it cannot even convene or come together at all. And the tribunes are bound always to effect the will of the People and to be guided by their wishes. As a result of all of these factors, the Senate fears the masses and is ever mindful of the People.[6.17.1] Similarly, in turn, the People are subordinate to the Senate and must have regard for its wishes, both in public matters and private. Many projects are contracted out by the censors for the repair and construction of public works throughout all of Italy — so many that one could scarcely number them all — and also the rights to collect the revenues from many rivers, harbors, gardens, mines, lands — everything that falls under Roman control. All of the aforementioned are administered through the People, and nearly everyone, so to speak, has an interest in the contracts and the works derived therefrom. For some in fact purchase the grants of these contracts from the censors, others act as partners in such ventures, others provide sureties for the purchasers, and others still pledge their property to the public treasury for this purpose. But the Senate has authority over all of these procedures: it is able to grant extensions and, in the case of an unforeseen catastrophe, can lessen the contractor's liability, or can release him from his contract altogether should he prove unable to complete it. And there are in fact many ways in which the Senate either greatly harms or greatly benefits those who have charge of public works, for all of the aforementioned are referred to it. Most important, it is from the Senate that judges are appointed in most public and private suits that concern charges of any weight. As a result, everyone, being bound to the good will of the Senate and fearing the uncertainty of litigation, takes care with regard to obstructing or opposing its wishes. Similarly, as regards the initiatives of the consuls, the People are loathe to oppose them since all citizens, both privately and collectively, fall under their authority when in the field.[6.18.1] Such then are the powers of each of the parts of government both to oppose one another and to work in conjunction. In unison they are a match for any and all emergencies, the result being that it is impossible to find a constitution that is better constructed. For whenever some common external danger comes upon them and compels them to band together in counsel and in action, the power of their state becomes so great that nothing that is required is neglected, inasmuch as all compete without fail to devise some means of meeting the emergency, nor do they dally in reaching a decision until too late, but each, both communally and individually, work together to complete the task that lies before them. The result is that their unique form of constitution comes to be unconquerable and successfully achieves every goal upon which it resolves.” Polibio 6.11.11-6.18.3: “The Constitution of the Roman Republic” tradução inglêsa de John Porter in http://homepage.usask.ca/%7Ejrp638/index.html
83 “Ce qu’on appelle union dans un corps politique est une chose très équivoque : la vraie est une union d’harmonie, qui fait que toutes les parties, quelque opposées qu’elles nous paraissent, concourent au bien général de la société, comme des dissonances dans la musique concourent à l’accord total. Il peut y avoir de l’union dans un État où l’on ne croit voir que du trouble, c’est-à-dire une harmonie d’où résulte le bonheur, qui seul est la vraie paix. Il en est comme des parties de cet univers, éternellement liées par l’action des unes et la réaction des autres. Mais, dans l’accord du despotisme asiatique, c’est-à-dire de tout gouvernement qui n’est pas modéré, il y a toujours une division réelle : le laboureur, l’homme de guerre, le négociant, le magistrat, le noble, ne sont joints que parce que les uns oppriment les autres sans résistance, et, si l’on y voit de l’union, ce ne sont pas des citoyens qui sont unis, mais des corps morts, ensevelis les uns auprès des autres”, op. cit. p. 119.
84 “No capítulo 8 do livro IV do Espírito das Leis, Montesquieu se interroga sobre a importância da música como instituição política entre os gregos, atestada tanto por Platão quanto por Aristóteles. Ele a explica pela necessidade fornecer aos cidadãos uma ocupação que temperasse uma educação muito exclusivamente guerreira que eles receberiam sem ela : a música teria, portanto, como papel ‘suavizar os costumes’, e para isto seria própria porque, ‘de todos os prazeres dos sentidos, nenhum corrompe menos a alma’. Montesquieu retoma aqui o tema dos poderes morais da música, tema inserido na problemática geral da querela dos Antigos e Modernos. (...) Trata-se sempre de considerar a música não em si mesma, mas de considerar os seus efeitos e de situar a sua função social. Enfim, o fragmento 1050 dos Pensamentos, que retoma a temática do poder da música entre os antigos, opõe a música ‘imperfeita’ mas que emociona à mais sofisticada que agrada sem comover” Katherine Kintzler, “Montesquieu et la musique” no blog Mezetulle http://www.mezetulle.net/article-1919095.html
85 Entre vários, cf. J.S. Mcclelland : The Crowd and the Mob, from Plato to Canetti (London, Unwin Hyman, 1989), p. 87.
86 Livro I, VII.
87 Para o assunto, cf. Mark J. Schiefsky (ed.) Hippocrates on Ancient Medicine (Brill, 2005). pp. 48-49; “o corpo humano contem uma mistura de um grande número de substâncias fluidas ou humores, cada um deles é caracterizado por um cheiro ou gosto particulares (doce, amargo, ácido, etc), e cada um deles possui sua própria dynamis ou capacidade para causar um efeito específico. Quando esses humores são bem misturados ou sintetizados, nenhum deles é manifesto e a pessoa é saudável. Mas quando um deles separa-se da mistura e se coloca ao lado dela, por sua conta, ele se se torna manifesto e causa dores. As idéias sobre a qual esta teoria é baseada são trazidas da herança comum da primitiva medicina grega e da filosofia. (...) a teoria é baseada na noção de que a saúde é um estado no qual os humores no corpo são bem misturados uns com os outros, enquanto a doença ou outro efeito patogênico surgem quando um ou mais humores se concentram e predominam sobre os demais. A saúde é de maneira consistente associada à mistura dos humores e a doença com a falta de mistura, por uma longa fieira de autores médicos e filosóficos, como Alcmeon...”. op. cit. p. 231. “A noção de que a saúde é um estado no qual substâncias fluídas no corpo são bem misturadas atravessa a medicina grega. O mais claro exemplo hipocrático encontra-se no Nat. Hom. 4 (...) a idéia vai para trás pelo menos até Alcmeon. A associação entre saúde e kresis persiste em Platão, Aristóteles e a posterior tradição (cf. Platão Smp. 186c-d; Aristóteles Ph. 2464-6, etc). A noção da krhsiß como certa mistura distinta de constituintes em várias concentrações e quantidades figura em Parmênides, Empédocles, Demócrito, etc” op. cit. pp. 248- 249.
88 Numa, encontrando um povo ferocíssimo e desejando reduzi-lo à obediência cívica pelos meios das artes da paz, voltou-se para a religião como instrumento necessário acima de todos os demais para manter o estado civil, e assim constituído, não existiu jamais em muitos século temor maior de Deus do que nesta república”. Discorsi, I, 11.
89 “As instituições que causaram o retorno da república romana ao seu início foram a introdução dos tribunos da plebe, dos censores, e todas as demais leis que colocaram um limite à arrogância e à ambição humanas; segundo estas instituições a vida precisa ser dada por certos cidadãos virtuosos que cooperam com diligência para lhes dar efetividade apesar do poder dos que as desobedecem. Notável entre tais ações drásticas ... estavam a morte dos filhos de Brutus (por conspirar contra a república), a morte dos dez cidadãos, etc. Tais eventos, devido à sua grande severidade e notoriedade, levaram os homens de volta aos limites, a cada vez que ocorriam; e quando eles começaram a ocorrer com menor frequência, eles também começaram ocasião para que os homens praticassem a corrupção, e eram esperados com maior perigo e maior comoção. Porque entre um caso de ação disciplinar desse tipo e a próxima deve existir um lapso de pelo menos dez anos, porque naquele tempo os homens começam a mudar seus hábitos e desobedecer as leis; e a mesmo que algo ocorra, e recorde às suas mentes a pena envolvida e reacendam o medo neles, haverá breve tantos delinquentes que será impossível punir alguém sem perigo”.
90 Para uma análise do problema, cf. Victoria Ann Kahn : Machiavellian Rhetoric: From the Counter-Reformation to Milton (Princeton University Press, 1994).
91 “Spinoza individua quindi nello stato di continua fluttuazione fra paura e speranza la causa psicologica primaria della superstizione che attanaglia gli esseri umani30. Il volgo impotente, intimorito dall’instabilità della sorte, si rifugia in quelle credenze e in quei pregiudizi che possano fornirgli una certa sicurezza, e in primo luogo nella religione. Vanno sotto il nome di superstizioni religiose tutte quelle concezioni antropomorfe di Dio che si fa l’uomo schiavo delle proprie passioni e costretto all’impotenza dalle proprie insicurezze. Il superstizioso, poiché crede che Dio sia umanamente ambizioso, è convinto che tributandogli sommi onori possa riparare eventuali offese e assicurasi il suo favore e la sua benevolenza. (...) Per il concetto di fluctuatio animi cfr. Eth, III; P XVII e Sc. Senza entrare in un argomento che richiederebbe sicuramente di essere trattato con una diversa perizia, basti qui ricordare che Spinoza definisce la fluttuazione dell’animo come quella costituzione della Mente che nasce da due affetti contrari, come Amore e Odio, Gioia e Tristezza. La fluctuatio affonda le sue radici nell’inadeguatezza epistemologica che contraddistingue tutte le percezioni umane, e si configura in tutto e per tutto come un correlato emotivo del dubbio”. A. Sangalli: Il pregoudizio nella filosofia di Spinoza, in Foglio Spinoziano, texto consultado em 03/08/2008, 10:30 AM.
92 Thomas Hobbes, De Cive, in Man and Citizen, ed. Bernard Gert (Indianapolis: Hackett, 1991), 1.2, p. 113, citado por Corey Robin :Fear: The History of a Political Idea (Oxford University Press, 2004), p. 31.
93 “È interessante notare come, nonostante l’evidente influenza hobbesiana, la teoria dell’origine della religione acquisti nell’elaborazione di Spinoza una dimensione più ricca. Riassunta per sommi capi, l’analisi che Hobbes svolge nel Capitolo XII della Parte Prima del Leviatano attribuisce l’origine della religione a quei due “germi” psicologici rappresentati dalla paura e dall’ignoranza, uniti alla curiosità propria della specie umana: la paura di un futuro ignoto spinge l’uomo ad interrogarsi ansiosamente sulle cause che determinano la sua vita, e «quando l’uomo non può accertarsi delle vere cause delle cose (infatti le cause della buona e della cattiva fortuna sono per la maggior parte invisibili) le congettura»32. Le potenze religiose sono in realtà pure fantasie superstiziose degli uomini, che si formano queste credenze erronee per lo stato di perpetuo timore nel quale si trovano a vivere. L’analisi spinoziana è, come abbiamo visto poc’anzi, molto più articolata, dal momento che il filosofo olandese ci parla di una fluctuatio tra paura e speranza, ovvero tra due passioni irrazionali entrambe causatedall’ignoranza. Vivendo nel dubbio (fluttuazione epistemologica) sono continuamente agitato tra paura e speranza (fluttuazione emotiva): solo l’eliminazione del dubbio e una corretta conoscenza della realtà mi impediranno di cadere nella religione superstiziosa.” Sangalli, A. “Il pregiudizio nella filosofia di Spinoza”, loc. cit.
94 “Uno popolo libero è guidato più dalla speranza che dalla paura, mentre per un popolo soggiogato prevale la paura sulla speranza”, B. Spinoza, Trattato politico, Edizioni Ets, Pisa, 1999, pag. 85; sulla paura cfr. anche B. Spinoza, Trattato teologico–politico, Einaudi, Torino, 1972, pag. 2. citado por Aldo Pardi “Crisi e liberazione. Democrazia e critica dell’ontologia politica in B. Spinoza”. Foglio Spinoziano.
95 Raymond Aron, Main Currents in Sociological Thought I: Montesquieu, Comte, Marx, Tocqueville, the Sociologists of the Revolution of 1848 (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1968), pp. 20–2, citado por Corey Robin “Reflections on Fear: Montesquieu in Retrieval” in The American Political Science Review, vol. 94, número 2 (jun., 2000), pp. 347.
96 Burton, Robert : The anatomy of melancholy (1621) NY, New York Review books, 2001.
97 Note-se a sequência que vai do medo ao terror, exposta por Denis Diderot no verbete “Medo” da Encyclopédie : “Medo, espanto, terror, (sinônimos). As três expressões marcam por gradação os diversos estados da alma mais ou menos abalada pelo medo. A apreensão viva de algum perigo causa o medo; se esta apreensão é mais assustadora, ela produz o espanto; se abate o espírito é o terror. O medo é com frequência um fraco da máquina (o corpo humano) pelo cuidado de sua conservação, na idéia de que existe perigo. O espanto é um pavor maior e que assusta mais. O terror é uma paixão que domina a alma, causada pela presença, ou pela idéia muito forte do espanto”.
98 Cf. Matheron, A. : Individu et communauté chez Spinoza. Paris, Minuit, 1988, p. 128
99 Roberto Romano, “A Razão Terrorista”, in O Desafio do Islã e outros desafios, São Paulo, Ed. Perspectiva.
100 Cf. “Behavior in Extreme Situations: Coercion”, in The Informed Heart, the human condition in modern mass society. London, Thames and Hudson, 1961, pp. 159 ss.
101 Jean-Paul Sartre, ‘Qu’est-c e qu’ un collaborateur?’, Les Temps modernes, Outubro 1945, republicado in Situations III (Paris: Gallimard 1949.
102 Auerbach. Erich : Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo, Ed. Perspectiva/USP,1971, páginas 352-353.
103 Toda essa passagem, a retiro de meu artigo “A razão terrorista”, publicado em O Desafio do Islã e outros Desafios (SP, Ed. Perspectiva, 2004).
104 Livro 5, capítulo 14 in Oeuvres complètes de Montesquieu, Volume 2 (Paris, Gallimard, La Pléiade, 1951), pp. 292 ss.
105 Cf. Corey Robin: Fear: A history of a Political Idea (Oxford, University Press, 2004), pp. 62 ss.
106 Cf. Bruno Huisman “Les leçons de la Théocratie” no site Hyper Spinoza [http://hyperspinoza.caute.lautre.net] publicado em 07/07/2004, acessado por mim em 02/08/2008, as 11:55.
107Cf. Cristofolini, Paolo: "Spinoza et le très pénétrant florentin", publicado em 03/05/2004 em Hyper Spinoza, consultado por mim em 02/08/2008, as 14: 30 PM. Texto também publicado pelo Foglio Spinoziano, Itália.: “Spinoza non si limita a far propri i suggerimenti di Machiavelli contro il tirannicidio e contro la tirannide: più a fondo, intorno a questo insieme di problemi, elabora una vera e propria filosofia della paura. I sovrani sono temibili se sono impauriti. Un popolo che fa paura a chi lo governa lo indurrà a comportamenti feroci; e per converso, un tiranno feroce ha tutto da temere dal popolo, nonché da chi lo circonda da vicino. La paura è un mostro che si riproduce, e chi, essendo potente, è indotto ad avere paura, fa paura. Esempi a piene mani, attinti dalla storiografia di Roma imperiale, inducono Machiavelli, e con lui Spinoza, a mettere a fuoco il tema della paura non nell’accezione, in fin dei conti positiva, che esso finisce con l’assumere in Hobbes – presso il quale dalla paura della morte violenta scaturisce la rinuncia al bellum omnium contra omnes, dunque il contratto, dunque la civiltà e lo stato – ma in quella del tutto negativa di chi (a differenza da Hobbes) ha a cuore prima di tutto la libertà e vede nella paura il principale ostacolo ad essa. Machiavelli è il classico di riferimento il quale insegna (si veda il capitolo XIX del Principe) i pericoli che derivano al principe dall’ “essere rapace et usurpatore della roba e delle donne de’ sudditi”; gli risponde Spinoza evocando l’esempio funesto di Nerone: per chi governa lo stato non è meno impossibile, al tempo stesso, darsi ubriaco o nudo a scorribande con le prostitute, fare il commediante, violare e calpestare pubblicamente le leggi da lui stesso promulgate, e intanto conservare la regalità, di quanto sia impossibile essere e non essere allo stesso tempo; gli eccidi di sudditi, le spoliazioni, i rapimenti di ragazze e simili misfatti, mutano il timore in indignazione, e volgono di conseguenza lo stato di civiltà in stato di ostilità. (TP 4.4) Per Spinoza e, prima, per Machiavelli, una fonte comune è Tacito (Ann. XIII,25; XIV, 14-16; XVI, 4); di Machiavelli si devono poi anche vedere i Discorsi (1,45) dove giudica “cosa di malo esemplo non osservare una legge fatta, e massime dall’ autore di essa”.
108 “Talvez este escrito será acolhido pelo riso dos que restringem apenas à plebe os vícios inerentes a todos os mortais : na plebe não existe medida; ela é temível se não treme (Vejam Tacito, Anais, I, XXIX : “Drusus, na aurora, convoca os soldados e, com uma dignidade natural que lhe fazia as vezes de eloquência, condena o passado, louva o presente; declara ser inacessível ao terror e ameaças e que, ‘se ele os enxerga submissos, se ouve de suas bocas palavras de súplica, escreverá a seu pai para que acolha com bondade as preces da legião’" Sob sua demanda, o filho de Blesus é enviado uma segunda vez a Tibério com L. Apronius, cavaleiro romano ligado a Drusus, e Justus Catonius, centurião primipilar. As opiniões foram então partilhadas : uns queriam queriam que se esperasse o retorno desses emissários e que no intervalo se terminasse de conduzir o soldado pela mansidão. Outros pendiam para remédios mais violentos, sustentando que ‘a multidão era sempre extremada; terrível quando treme, e quando tem medo, se deixando insultar impunemente ; que seria preciso acrescentar ao terror da superstição o medo do poder, fazendo justiça contra os chefes da revolta”. Drusus era naturalmente inclinado ao rigor e manda Vibulenus e Percennius, e ordena que sejam mortos. A maioria diz que seus corpos foram jogados na tenda do general, muitos que foram jogados fora do acampamento , como espetáculo para os demais”. A plebe é humilde escrava ou dominadora soberba; não existe para ela verdade, ela é incapaz de juízo, etc. A natureza, digo, é a mesma para todos e comum a todos. Mas nos deixamos enganar pela força e refinamento ; daí esta consequência que dois que agem do mesmo jeito, dizemos com frequência que isto era permitido a um e proibido a outro: os atos não são dissemelhantes, mas os agentes são diferentes. A soberba é natural ao homem. Uma designação de um ano basta tornar orgulhoso os homens, que dizer então dos nobres que pretendem ter direito a honras perpétuas ? Mas sua arrogância se enfeita com o luxo e o fasto, prodigalidade de um concurso de vícios, uma espécie de desrazão sapiente acrescida de elegante imoralidade, tanto que dos vícios que, considerados separadamente, aparecem em toda a sua nojeira e ignomínia, parecem aos ignorantes e de pouco juízo ter certo brilho. É no vulgo em geral que não existe medida ; ele é temível quando não treme”
109 Cf. La Boétie, E. : Le discours de la servitude volontaire. (Paris, Payot, 1976).
110 Cf. “Une oeuvre inconnue de la Boétie. Les mémoires sur l ´Édit de janvier 1562” . Editado por Paul Bonnefon. In Révue d ´Histoire littéraire de la France. 24e année. 1917. (Paris. Librairie Armand Colin, 1917).
111 La Boétie, Etienne : Mémoires…. ed. cit. p. 12.
112 Considerações Políticas sobre os golpes de Estado (1639) Citado por Jean-Pierre Chrétien Goni, op. cit. p. 141.
113 Cf. Otto Gierke: Natural Law and the theory of society. 1500 to 1800. Boston, Beacon Press, 1960, p. 48. Para este passo importa consultar o livro de Gierke sobre Althusius : Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Versão italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche. Contributo alla storia della sistematica del diritto. Torino, Einaudi, 1974, a cura de A. Giolitti.
114 “Quia homines, uti diximus, magis affectu, quam ratione ducuntur, sequitur multitudinem non ex rationis ductu, sed ex communi aliquo affectu naturaliter convenire et una veluti mente duci velle, nempe (ut art. 9. cap. 3. diximus) vel ex communi spe, vel metu, vel desiderio commune aliquod damnum ulciscendi. Cum autem solitudinis metus omnibus hominibus insit, quia nemo in solitudine vires habet, ut sese defendere, et quae ad vitam necessaria sunt, comparare possit, sequitur statum civilem homines natura appetere, nec fieri posse, ut homines eundem unquam penitus dissolvant”. Hobbes afirma o contrário: « Pois se consideramos de perto as causas pelas quais o homens se reúnem e se agradam em sociedade mútua, aparece logo que isto ocorre por acidente, e não por uma disposição necessária da natureza” (De Cive, I, II). Nota do site Hyper Spinoza. Cf. também M. L. R. Ferreira : A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa (Lisboa, Gulbenkian, 1997), p. 492.
115 Uso a tradução bilíngüe de Tomaz Tadeu (BH, Autêntica, 2007), p. 285 ss
116 Ética, IV, proposição 17, escólio.
117 Se levarmos em conta os conhecimentos que temos sobre a ditadura em Roma, notamos o quanto Spinoza está correto ao falar em dictamen, quando se trata da razão. As leis racionais são plenamente integradas às leis da natureza e o Estado que opera segundo elas salva a si mesmo, se conserva, sem abalos sediciosos ou golpes de Estado. Até neste ponto Maquiavel segue pari passu as reflexões de Maquiavel.
118 Il luogo della Politica. Saggio su Spinoza (Pisa, Edizioni ETS, 2001).
119 Nocentini, página 297. Esta parte de meu texto é extraída da excelente resenha do livro publicado por Nocentini, editada no site Foglio Spinoziano pelos diretores da revista Ethica (Ano XIV, 2002), n. 1- Janeiro-Março 2001) in http: www.fogliospinoziano.it/etica18.htm