quarta-feira, 21 de abril de 2010

Correio Popular de Campinas


Publicada em 21/4/2010


Mentiras nobres e vilanias



Em diatribe contra as mentiras modernas, Pierre Vidal-Naquet denuncia a propaganda que tange milhões de seres humanos para a morte. O caso mais terrível encontra-se em Goebbels, profeta do Holocausto. Os herdeiros do nazismo retomam agora a persuasão mentirosa nas ruas, na internet, em jornais e governos fanáticos como o do Irã, cortejado pelas autoridades brasileiras.

Naquet indica a semelhança entre mentiras e verdade. Sem mimetizar a sua inimiga, a mentira jamais seria aceita. Mas ela ostenta um encanto sutil, emprestado pela verdade. Os poetas gregos sabiam dizer a verdade e a mentira, misturando-as pela semelhança. Segundo Hesíodo, as musas, “filhas verazes do grande Zeus”, sabem “contar mentiras muito iguais às realidades”. Mas quando desejam, “elas proclamam o verdadeiro”. Segundo Platão, entre o sofista e o filósofo existem semelhanças, “como entre cão e lobo, entre a fera mais selvagem e o animal mais domesticado. É preciso cautela com as semelhanças. Trata-se de um gênero escorregadio” (Sofista, 231a). Filósofo e sofista se parecem, incluindo no ato de mentir. Claro, o falso do filósofo seria “nobre”. Platão mente na República; nas Leis (Livro III) onde inventa uma história de Atenas; no Timeu e no Crítias ao inventar a Atlântida. Comenta Naquet: “As afirmações de Platão sobre a realidade da Atlântida, mais de 23 séculos após, cativam os tolos em favor dos que lucram com a tolice”. (“De Platon, du mensonge et de l´idéologie” in Les assassins de la mémoire, Paris, 1995).

A “nobre mentira” foi criticada ao longo dos séculos. Se vemos tolos que acreditam na Atlândida, também existem espertalhões da política, da religião e demais formas de controle social. Todos eles justificam trapaças invocando motivos sagrados. Platão retoma um mito ligado às raças humanas. Os governantes, diz ele, têm ouro em sua têmpera. Logo, devem ser venerados e usufruir de honras negadas aos outros. Os auxiliares do poder são de prata, o comum dos mortais recebe metais menos raros e caros. Mas todos eles saem da terra e, portanto, têm essência fraterna. A mentira da origem comum e da substancial diferença entre os que formam a república é difícil de ser engolida. Pergunta, na passagem, um interlocutor: “pensas que tal história poderá mesmo ser acreditada?”. A resposta espanta: “não pelos que hoje vivem, mas por seus filhos e posteridade”. Repetida, a mentira nobre se transforma em crível, depois ela chega a ser dogma... Sabemos a fonte onde Goebbels se saciou: a mentira, martelada nos ouvidos da massa, se transforma em verdade.

Existem mentiras nobres e ignóbeis. No intuito de elevar Dilma Rousseff ao poder presidencial, tudo é feito pelos seus companheiros para convencer a massa de que ela reluz como ouro. Pouco importa se o brilho áureo tenha se mostrado falso, como no doutorado que nunca existiu. Agora vem à tona, nos lábios da mãe do PAC, a narrativa de seu grande feito, o de ter ficado no Brasil para lutar contra a tirania. Serra (e demais perseguidos pela ditadura), teria fugido. A léria, no caso, funcionou de modo intencional, manipulando a semelhança entre “sair do país” fugindo, ou forçado ao exílio. Quem não esteve em nenhuma daquelas situações, aceita o deslize mentiroso de uma a outra. É o alvo do sofista, ou demagogo. Em 27/9/2009 o site de Paulo Henrique Amorim republicou um artigo de Emir Sader cujo título era “Duas trajetórias distintas”. Alí já surgem as falsidades hoje usadas pela candidata. Ela nega injuriar seu oponente. Mas, ao repetir na íntegra o ataque emitido por Sader, mostra uso tortuoso da semelhança entre exílio e fuga. Como o tapa bateu em cheio na face de todos os exilados, a vilania perdeu ímpeto. Outras piores virão, geradas por intelectuais nada platônicos e próximos de Paulo Betti, o teórico que proclamou, ao benzer falcatruas companheiras, que política significa botar a mão em dejetos humanos. Tal arte, na verdade, é muito pouco nobre, e bastante ignóbil. Devo o alerta sobre o texto de Sader ao site Ucho.inf.