| Entrevista: Roberto Romano A genética do PT O filósofo da Unicamp, antes feroz crítico dos tucanos, diz que o partido de Lula sempre foi autoritário e, por isso, às vezes, atropela a democracia Otávio Cabral
Claudio Rossi
| "É infinita a capacidade dos intelectuais de se curvar diante do poder, seja ele fascista ou socialista" | | Duas coisas, em especial, incomodam o filósofo Roberto Romano: a mediocridade e os intelectuais que se curvam diante do poder. "A função do intelectual não é apoiar, aderir. É pesar as palavras, pesar as idéias e mostrar caminhos", diz o professor de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Aos 58 anos, autor de sete livros, Romano mantém-se fiel ao estilo que marcou sua vida acadêmica, a crítica impiedosa mas justa. Romano acusou o governo tucano de promover um "genocídio cultural" no país e agora acusa o governo do PT de ser um inimigo da cultura, do conhecimento e da ciência – um regime "misologocrata", segundo o neologismo que o próprio filósofo criou. Romano foi dominicano por doze anos e desligou-se da ordem antes de ordenar-se padre. Esteve um ano preso pela ditadura militar (1964-1985) e foi exilado em Paris. Militou na agremiação de esquerda Ação Popular, mas nunca se filiou a um partido político. "Tenho uma língua incontrolável às vezes", diz. "Entre amigos tucanos e petistas e a minha consciência, fico com a minha consciência." A seguir, a entrevista. Veja – Como o senhor avalia os 25 anos de vida do PT, completados na semana passada? Romano – O PT realizou o sonho da chegada ao poder de um partido de esquerda. Isso teve grande impacto histórico. Mas o governo do PT não é de esquerda. Aos 25 anos, o PT deixou de representar a simbiose entre movimentos sociais e um partido político. Desde sua fundação, o PT abrigou setores da Igreja, da universidade, de sindicatos e da sociedade que não tinham representatividade política. Ao chegar ao poder, o PT mostrou que, de fato, é um partido com um projeto de poder, de controle de Estado, que não cede a pressões de suas bases. Os antigos aliados continuam apresentando as contas. O MST, por exemplo, já ameaça não apoiar a reeleição de Lula. O PT vai ter de saber como sair desse xeque-mate. O realismo político assumido pelo PT também jogou por terra toda a sua retórica histórica de defensor da ética. O partido já tem no armário esqueletos como o de Waldomiro Diniz, e outros ainda podem aparecer. Ninguém assume o "É dando que se recebe", como o PT fez, sem pagar um preço por isso. Veja – O senhor já definiu o presidente Lula como "populista, autoritário e despótico". Mas a democracia no Brasil de Lula não foi arranhada. Isso não é um exagero? Romano – Na filosofia política, o poder despótico é definido como o poder daquele que é o pai da família. Lula tem preferência pela metáfora de se definir como pai do povo. De todas as suas metáforas, as mais graves são as comparações do país com uma casa e dele com um pai. Quem lhe deu esse direito? Na Constituição, não há o cargo de "pai do povo". Não aceito, portanto, que o presidente se defina como tal. Meu pai já morreu, eu sou maior de idade e não quero um pai cívico. Alguém precisa dizer isso a ele. Veja – O PT sempre se enxergou como uma instituição democrática em que tudo é discutido, às vezes até demais. Essa característica se revela no exercício do poder? Romano – O PT pode ter se enxergado assim, mas a verdade é que o partido foi durante muito tempo uma instituição claramente antidemocrática. Há quinze anos, Lula deu uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo dizendo que, se a via parlamentar não desse certo, recomendaria ao povo a luta armada. Disse isso quando a luta armada já havia sido abandonada. Naquela entrevista, fica clara sua pretensão messiânica. A política é feita metade de razão e metade de emoção. Você não pode deixar que ocorra a supremacia do emocional. Ao forçar demais o pêndulo para o lado do indivíduo, deixa-se de fazer política para criar uma fé. A fé é perigosa. Remove montanhas, mas também joga bombas e impõe censura. Veja – O PT sempre se apresentou aos eleitores como uma agremiação repleta de quadros tecnicamente competentes. Como esses quadros estão se saindo no governo? Romano – O PT é composto de três setores. O principal são os sindicalistas que dominaram a máquina sindical depois da democratização. Deixaram seus empregos e passaram a exercer uma liderança política que os promoveu socialmente. Do ponto de vista social, são arrivistas. Como a única preocupação desse grupo era obter liderança política, não lhe sobrou tempo para o necessário aprofundamento cultural. Por isso esse grupo pode ser definido como os novos-ricos da política. Isso ficou claro na decisão de comprar logo um novo avião presidencial. Veja – O senhor não está sendo preconceituoso? Romano – Não há preconceito. Faço apenas uma constatação. Sindicalismo e cultura não são obrigatoriamente antagônicos. Na história do marxismo, o nível dos sindicalistas sempre foi elevado. Eles liam muito, estudavam teoria política e muitos se tornaram formuladores. Eles ascendiam culturalmente ao mesmo tempo que ganhavam projeção política. Os sindicalistas que estão no governo não tiveram essa preocupação. Não me espanta, portanto, que eles tenham em relação ao saber uma atitude de inimizade. Veja – De sua origem sindical o PT cresceu atraindo pessoas das mais variadas formações, principalmente intelectuais. Onde andam essas pessoas? Romano – O grupo da classe média que hoje tem liderança no PT e no governo chegou à universidade no fim dos anos 60, mas seu objetivo era apenas fazer política e chegar ao poder. Ninguém estava ali para adquirir cultura. Muitos foram exilados em Paris e em vez de refinar sua formação cultural se limitaram a participar de passeatas. Outros foram para Cuba, onde não existe cultura – além, é claro, da cultura de subserviência ao barbudo. Um último grupo de petistas é o dos chamados intelectuais, gente de pensamento até refinado. Mas está claro que os poucos deles que estão no governo têm de pedir licença aos outros dois grupos. Eles não têm autonomia de vôo. São obrigados a dizer amém aos incultos. Com essa configuração, o resultado não podia ser outro no campo cultural e educacional. O governo é predominantemente formado por inimigos da cultura e do conhecimento, para quem o mérito e a capacidade individual valem menos do que um bom padrinho político. Um partido como o PT, que passou a vida toda agindo como uma organização stalinista, não consegue se transformar em liberal da noite para o dia, nem se fantasiando de George Bush. Veja – A atual proposta de reforma universitária feita pelo governo recebeu críticas pesadas de quase todos os setores pensantes do país. Ela tem conserto? Romano – O projeto de reforma, para começo de conversa, fere a própria Constituição brasileira. O projeto prevê que os reitores serão eleitos por voto direto. Isso é muito grave. A universidade é uma instituição baseada na excelência. A democracia da universidade deve ser medida pelo seu compromisso com a sociedade e com o país. Isso é democracia, não permitir que alunos e funcionários escolham o reitor. Como se pode fazer pesquisa em um ambiente em que qualquer pessoa com representação política na universidade vai a um laboratório dizer que tipo de pesquisa deve ser feito? Escolher pesquisa pelo voto é um escândalo. O segundo ponto preocupante da reforma é aquele em que se determina que haverá um conselho universitário em que pessoas de fora da instituição terão poder de palpitar sobre o que a universidade deve fazer. Isso é o fim do mundo. Nem no período ditatorial alguém teve coragem de propor algo tão grave. Farei minhas pesquisas segundo o que é ditado por um comitê? Em que mundo estamos? A reforma tira da universidade o direito ao erro, que é uma característica básica da ciência. Pesquisa que não tem direito de errar e recomeçar não é pesquisa. Caso esse modelo venha a vigorar, é melhor fechar a universidade e substituí-la por uma loja de diplomas. Veja – Por que a universidade não se levanta contra uma reforma tão condenável? Romano – Benevolência é a primeira explicação. A segunda decorre do fato de que o objeto mais flexível do universo é a espinha dorsal dos intelectuais. É infinita a capacidade que eles têm de se curvar diante do poder, seja ele fascista, seja socialista. Basta que seja poder. A universidade tem interesses imediatos, uma série de coisas que o poder fornece. Ocorre que ele não faz nada de graça. Em troca, o poder quer da universidade, no mínimo, o silêncio cúmplice. É espantoso, mas tem conseguido isso. A apatia atual deriva da cumplicidade. E uma universidade que não apresenta planos, projetos de longo prazo nem pesquisas para o futuro é um peso morto para o país. O outro nome disso é charlatanismo. Veja – Muitos desses planos governamentais acabam arquivados antes de entrar em vigor. A discussão deles pela sociedade não é positiva para a democracia e as instituições? Romano – Muitos danos podem ser causados à democracia brasileira por essas iniciativas. Os retrocessos propostos para as universidades podem trazer problemas a curto prazo. A tentativa de calar o Ministério Público e o ódio à imprensa demonstrado em diversos episódios são fatos graves. Isso traz conseqüências pesadas à vida democrática. Os danos serão muito piores se essa reforma vier a ser implementada. Mas acho que eles não conseguirão implantá-la. O ambiente cultural brasileiro não toleraria um ataque tão violento. Veja – O senhor foi crítico do governo tucano, ao qual acusava de ter cometido "genocídio cultural". Como os principais partidos hoje são PT e PSDB, isso significa que o país não tem mais alternativas? Romano – Não vejo com pessimismo a evolução do quadro político, embora ainda não tenhamos partidos que possam recolher os benefícios do fim da ditadura e da consolidação da democracia. A melhoria dos padrões democráticos é lenta e gradual, mas irreversível. Cedo ou tarde, o PT terá de modificar seus procedimentos autoritários. Do contrário, ficará isolado. Veja – O senhor definiu o governo do PT como uma "misologocracia", regime avesso à cultura, ao conhecimento e à lógica. Mas os partidos de oposição não parecem assim tão repletos de sumidades... Romano – Em todos os partidos há pessoas que respeitam o pensamento. No PSDB, há uma pletora de intelectuais, no PT também, no PFL há pessoas inteligentes. O problema é que no momento do jogo eleitoral quem decide é o manipulador do partido. Isso quebra a possibilidade de o partido ter uma ação coerente. No caso específico do PT, há um programa com forte ranço autoritário e intelectuais que tendem a discordar disso. Mas o PT é uma arena em que os articuladores políticos sempre vencem os intelectuais. A função do intelectual petista é corrigir as bobagens feitas por suas lideranças. Só que a intelectualidade petista, mesmo cometendo malabarismos ideológicos diários, não consegue influenciar as decisões equivocadas das lideranças, que dirá anulá-las. Em primeiro lugar, é preciso constatar que a meritocracia acabou no governo Lula. Agora o que vale é a quantidade de aplausos que você ganha nos comícios. Do jeito que está, daqui a dez anos as teses de doutorado serão apresentadas em praça pública, a avaliação será feita por aplausos e o título não será de doutor, mas de companheiro. O PT tem bons quadros, o PFL tem bons quadros, o PSDB tem bons quadros. Mas nenhum partido brasileiro tem quadros suficientes para assumir o Executivo, o Legislativo e o Judiciário nos três escalões. O PT insistiu nisso. Veja – Mas nenhum governo preenche os cargos com inimigos políticos... Romano – O Estado brasileiro é hipertrofiado e precisa de muitos quadros, mas estes têm de ser escolhidos por critérios científicos e critérios políticos. Os critérios políticos, porém, não podem predominar a ponto de excluir da vida da administração gente competente ou colocar pessoas sem formação suficiente para dirigir grandes empreendimentos como a Petrobras e a Usina de Itaipu só porque pertencem ao partido. Veja – O Brasil está carente de idéias e projetos? Romano – Isso é um problema mundial. Nas décadas de 60 e 70 o mundo tinha duas superpotências e era muito difícil propor um projeto diferente. Até porque os intelectuais estavam ligados ou a Chicago ou a Moscou. O Brasil tentou naquela época um projeto de subpotência do Atlântico cujos resultados estão aparecendo agora. Depois disso, o Brasil não produziu quadros, não tem projetos para o próprio caminho desde o fim do regime militar. Isso não é apenas uma questão estratégica, é uma questão econômica e social. Um país não pode pensar em ser uma potência sem ter uma política de educação, de inclusão tecnológica. No ano passado, o Brasil foi o último colocado em um ranking de ensino da matemática no mundo. Um país que não dispõe de uma massa de trabalhadores com capacidade de produção de pensamento matemático não tem condições de participar da revolução tecnológica mundial. Essa situação inviabiliza o país no longo prazo e afugenta investidores.
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