sábado, 16 de junho de 2012

De rerum natura

DIÁLOGOS DE COIMBRA: CRIAÇÃO, ACASO, SENTIDO



Minha intervenção proferida ontem na Biblioteca Joanina no quadro dos "Diálogos de Coimbra", entre o Bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, e va´rios professores universitários:
 
Quando as obras de construção desta Casa da Livraria foram concluídas, em 1728, a meio do longo reinado de D. João V, já tinha falecido, havia um ano, um dos maiores sábios da época e aliás de todos os tempos – o inglês Sir Isaac Newton. Ele tinha começado por estudar Teologia na Universidade de Cambridge, mas não tomou ordens, tendo-se tornado professor de Filosofia Natural e presidente da Royal Society. Foi sepultado com todas as honras na Abadia de Westminster, em Londres. Reza assim a inscrição tumular (o original está em latim):
"Aqui está enterrado o cavaleiro Isaac Newton, que por uma força mental quase divina, e por princípios matemáticos de sua própria invenção, explorou o curso e as figuras dos planetas, os caminhos dos cometas, as marés marítimas, as diferenças dos raios de luz, e, o que nenhum outro estudioso havia imaginado, as propriedades das cores assim produzidas. Diligente, sagaz e fiel, nas suas exposições da Natureza, da Antiguidade e das Sagradas Escrituras, justificou pela sua filosofia a majestade de Deus poderoso e bom e expressou a simplicidade do Evangelho nas suas maneiras. Alegrem-se os mortais por ter existido um tal e tão grande ornamento da raça humana.”
E o poeta Alexander Pope compôs-lhe o seguinte epitáfio, que não chegou a ser colocado:
Nature and Nature's laws lay hid in night;
God said, Let Newton be! and all was light”.
Para Newton, apesar da sua hoje conhecida heterodoxia religiosa no quadro do anglicanismo que ele cuidadosamente ocultou (e que o poderia ter excluído do repouso final na Abadia), não havia dúvidas de que Deus tinha criado o mundo e que este seguia o seu curso de acordo com leis deterministas, numa dinâmica que excluía o acaso. O concurso de Deus no mundo não era porém excluído por Newton em circunstâncias extraordinárias, tais como a aproximação de duas estrelas devido à força gravítica, uma posição que foi criticada pelo seu contemporâneo Gottfried Leibniz, o matemático e filósofo alemão que achava abstrusa a ideia de um Deus diligente que viesse ao mundo completar a sua obra imperfeita. Seja como for a visão newtoniana de um mundo governado por leis universais, com expressão matemática simples, haveria de perdurar até hoje. Os fenómenos celestes não acontecem ao acaso, não acontecem ao “deus dará”. E esta visão determinista da física foi, desde a sua origem, um visão compatível com a existência de Deus, o Senhor da “criação ex nihilo”. A física surgiu, portanto, num quadro do deísmo. O espaço e o tempo eram um “palco” criado por Deus para o desenrolar das acções humanas. Mas tornou-se, a breve trecho, para muitos, um mundo sem Deus, já que o astrónomo Pierre-Simon de Laplace, que prosseguiu em França a obra de Newton, respondeu a Napoleão quando interrogado sobre a ausência de Deus no seu tratado de mecânica celeste: “Sir, não tive necessidade dessa hipótese.” Como se teria então criado o sistema solar? Por si próprio. Laplace é o autor de uma hipótese de formação espontânea do sistema solar, por rotação e contracção de uma nuvem de gás, cujos louros reparte com o filósofo Immanuel Kant (o autor da expressão “o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”)  e que no essencial ainda hoje se mantém. Sistema solar significava na altura o Universo todo, pois as galáxias eram então desconhecidas (Kant foi, de resto, o primeiro a falar de “universos-ilha”, isto é, galáxias, para referir outros sistemas estelares para além do nosso). A associação de Newton à ausência de Deus, feita principalmente em França após a sua morte, poderá ter contribuído para a sua proibição explícita pelo Reitor do Colégio das Artes de Coimbra em 1746, apesar de alguns jesuítas aqui e noutros sítios o terem ensinado. Em Coimbra dominava então a escola neo-escolástica dos Conimbricenses, livros que René Descartes leu quando era novo, considerando-os longos e confusos. O Marquês de Pombal, que foi membro da Royal Society, haveria de instalar em Coimbra o newtonianismo em 1772. Foi ele, lembremo-lo, também que abriu as portas desta biblioteca, que esteve muitos anos encerrada após a sua construção. O iluminismo demorou entre nós uns anos a dar luz.
O newtonianismo representa de certo modo o triunfo do iluminismo, que na arte encontra alta expressão no barroco desta biblioteca. A razão humana podia, com base nas leis de Newton, compreender o mundo e essa cosmovisão foi-se progressivamente alargando. O século XIX  ficou marcado, na física, pelas ideias da termodinâmica – a qual introduziu as ideias de conservação da energia e aumento da entropia  – e do electromagnetismo, que é afinal a extensão aos fenómenos eléctricos e magnéticos do programa de matematização encetado por Newton. A entropia acabou por ser relacionada com o acaso: é uma medida da desordem molecular, de modo que a morte térmica do Universo, muito badalada no final do século XIX,  ocorreria por se atingir o máximo de desordem cósmica. Mas a ciência ficou, no século XIX, marcada sobretudo pelas ideias de outro sábio inglês que, tal como Newton, estudou Teologia em Cambridge, Charles Darwin. O homem, em vez de ter sido criado conforme o Génesis, não era mais do que um ramo da grande árvore da vida, uma espécie que tinha evoluído gradualmente no nosso planeta a partir de espécies primitivas. Essa ideia não se fez sem polémica – lembramos a que houve em Portugal entre Miguel Bombarda e o padre jesuíta Manuel Fernandes Santana - mas foi seguindo o seu caminho, chegando, bastante robusta, aos dias de hoje. Hoje está amplamente fundamentada na genética (fundada pelo austríaco Gregor Mendel, um monge agostiniano, no anonimato do seu mosteiro) e sabemos que os acasos das mutações genéticas, em sistemas abertos como são o os sistemas vivos, são criadores da espécie humana como o são de todas as espécies. Não sabemos muito sobre a origem da vida, mas podemos dizer que, na biologia, a criação é um acto permanente.
No final do século XIX, muito por obra e graça de Darwin, ciência e religião estavam em choque frontal. Tal como tinha acontecido, dois séculos antes, com a defesa de Galileu do heliocentrismo estava em causa uma leitura literal da Bíblia. Não admira, por isso, que a Igreja Católica fizesse discursos de reconciliação. Num sermão pregado na Real Capela da Universidade na festa da Imaculada Conceição de 1887, o Doutor António Garcia Ribeiro de Vasconcellos, que era lente da Faculdade de Teologia e haveria ser lente da nova Faculdade de Letras de Coimbra e seu primeiro director, historiador e  homem de vasta cultura, afirmou, citando o astrónomo John Herschel e na linha da lápide de Newton (uso a grafia da época, tal como no folheto saído em 1890 do prelo da Imprensa da Universidade de Coimbra, sob o título Sciencia e Fé):
“«Parece chegado o momento... esse momento admiravel em que a sciencia e a religião, irmãs eternas, se estreitarão em doce amplexo; em que estas nobres irmãs, em vez de continuarem uma lucta indecorosa e funesta, concluirão uma sublime aliança. Á medida que o campo da sciencia se alarga tambem os resultados vão favorecendo progressivamente a crença religiosa, e as demonstrações da existencia eterna de uma intelligencia creadora e omnipotente são cada vez mais numerosas e irrecusaveis. Geologos, mathematicos, astronomos, todos têm trazido a sua pedra a este grande templo da sciencia, templo elevado ao proprio Deus. Cada nova conquista scientifica é mais uma prova da existencia de Deus, e de seus gloriosos attributos»”.
Num tempo marcado  pelo cientismo e pelo positivismo este era, convenhamos, um discurso de algum optimismo. Hoje não podemos deixar de achar um pouco naif a afirmação de que “cada nova conquista científica é uma prova da existência de Deus”. Mas sabemos que se podem realizar ou admirar as “conquistas científicas” e, ao mesmo tempo, permanecer crente, pois Teologia e Filosofia Natural são actividades distintas.  Repare-se como, nas sancas do tecto desta terceira sala da Joanina, as duas figuras femininas que representam a Teologia e a Natureza estão diametralmente opostas em relação à Sapiência, a personagem feminina central. Repare-se também que as disciplinas não tinham igual dignidade: para percebermos melhor a primazia em Coimbra da Teologia na ordem dos saberes até à implantação da República, bastará ver que o emblema da Faculdade de Teologia está sobre os símbolos da realeza, enquanto o emblema da Matemática –  de uma época em que ainda não havia a Faculdade com esse nome - está, mais discreto, em posição oposta, do lado de dentro da porta. Aliás, a maior parte dos livros que enchem estas estantes têm cariz religioso, sendo raras as obras científicas.
No século XX a ciência fez avanços verdadeiramente notáveis. A Criação, que sempre tinha estado presente na Bíblia, apareceu em força na astronomia, com a eclosão da ideia científica do início do Universo. Descobriu-se que o cosmos não era eterno para trás. A eternidade, a existir, seria, portanto, apenas uma semi-eternidade. Sabemos hoje, a partir das observações do afastamento das galáxias feitas nos Estados Unidos pelo astrónomo Edwin Hubble, que o Universo tem cerca de 14 mil milhões de anos. Não existe teoria científica rival a esta assim chamada teoria do Big Bang, cuja base teórica está na teoria da relatividade geral de Einstein. Apesar de haver concordância com o texto bíblico no facto de haver um princípio, a ideia do Big Bang não teve uma base religiosa, pois no século XX ciência e religião eram actividades separadas, com métodos, objectivos e sentidos distintos. A ideia de que houve um Big Bang, isto é, um início do espaço-tempo de uma maneira expansiva que continua até aos dias de hoje, tem um fundamento científico, tanto lógico-matemático como empírico, bem consolidado. O facto de ela coincidir, embora de uma maneira geral e vaga, com a ideia da criação do Cristianismo, é, sem dúvida, curioso, mas não mais do que isso. Contraria, por exemplo, a ideia de eternidade do agrado do  budismo. Curioso é também o facto de um dos autores da teoria do Big Bang ter sido precisamente um sacerdote católico, o belga Georges Lemaître. Foi ele que declarou:
«Eu interessava-me pela verdade do ponto de vista da salvação e desde o ponto de vista da certeza científica. Parecía-me que os dois caminhos conduzem à verdade, e decidi seguir ambos. Nada na minha vida profissional, nem no que encontrei na ciência nem na religião, me induziu jamais a mudarar de opinião».
Alguns altos dirigentes religiosos, incluindo o Papa Pio XII, congratularam-se com o que se poderá chamar a “base científica” da criação bíblica. Mas desde o tempo de Galileu que a Bíblia tinha deixado de ser visto como um livro de ciência. O Padre Lemaître esclareceu:
Num certo sentido, o cientista prescinde da sua fé no seu trabalho, não porque essa fé pudesse entorpecer a sua investigação, mas sim porque não tem a ver directamente coma  sua actividade científica.”
Os físicos, crentes, ateus ou agnósticos, não perseguem o objectivo de confirmar ou infirmar a palavra da Bíblia, que é de uma ordem diferente da palavra da ciência. Não pretendem agradar a qualquer dirigente espiritual. Observam o céu com os telescópios, fazem experiências em aceleradores na Terra, usam o raciocínio lógico-matemático e chegam a conclusões que partilham com todos. A conclusão de que o Universo teve um início, mas também a conclusão de que não terá fim, não havendo que temer um apocalipse à escala astronómica.
A questão é, porém, inevitável: O que havia antes do Big Bang? As conclusões da ciência moderna nada nos dizem sobre o que se terá eventualmente  passado há mais de 14 000 milhões de ano, por ter havido apagamento irreversível de informação. A questão sobre a causa do Bang primordial é perfeitamente legítima, mas não pode ser respondida pela ciência actual e muito provavelmente nunca poderá vir a ser respondida pela ciência. Alguns astrofísicos defendem a existência de um universo que terminou antes do nosso começar. Poderá ter´havido um buraco negro que deu origem a um buraco branco, num cosmos eterno, à maneira oriental. Mas os astrofísicos não querem nem podem provar a existência ou a inexistência de um Deus criador do Universo. O astrofísico inglês Stephen Hawking, o famoso autor de Breve História do Tempo, e alguns dos seus colegas falam, de facto, de Deus nos seus escritos ou nas suas palestras, mas trata-se de uma imagem que tem, reconhecidamente, muita força e que se destina a suscitar as atenções do grande público. No entanto, é uma imagem algo perigosa por dar a entender um mescla íntima entre ciência e religião que, na realidade, não há. Conforme afirmou o biólogo Stephen Jay Gould, ciência e religião são dois magistérios separados. Uma observa, discute e conclui sobre o mundo real e a outra fala de um mundo para lá desse mundo.

No século XX, mais ou menos na mesma altura em que surgia a ideia de Big Bang, emergiu uma nova teoria física que descrevia a realidade microscópica. A mecânica quântica, por oposição à mecânica newtoniana, albergava no seu cerne a noção de probabilidade. Tratava-se de aceitar a ideia radical de que, para descrever muitas coisas do mundo, era preciso reconhecer o primado do acaso, descrito pelo conceito de probabilidade. Não se pode dizer onde está um electrão, uma vez que, em repetidas experiências de medida feitas em condições iguais, ele será encontrado em sítios diferentes. O mais que podemos dizer, a priori, é ser mais provável que ele se venha a numa dada zona do que noutra. E encontra-se, a posteriori, por meio de experimentação repetida, a distribuição de probabilidade que a teoria quântica previa. A física quântica não deixa de ser determinista, mas prevê probabilidades e a sua evolução. Físicos como o alemão Werner Heisenberg, o autor da famosa relação de incerteza segundo o qual não podemos conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de um electrão, o austríaco Erwin Schroedinger, o autor de uma equação que descreve a dinâmica quântica, e o alemão Max Born, o autor da interpretação probabilística da função de onda que surge na equação de Schroedinger, foram os protagonistas principais dessa autêntica revolução na física que foi o nascimento da mecânica quântica. Facto notável: a mecânica de Newton podia ser vista como um certo limite da mecânica quântica. O novo articulava-se com o velho.
Porém, e apesar dos triunfos da nova teoria, um dos percursores dela e também um dos maiores físicos de sempre, o suíço de origem alemã Albert Einstein, nunca aceitou como completa e definitiva esta descrição do mundo baseada em probabilidades. Foi ele que disse: “Gott wuerfelt nicht”, isto é, “Deus não joga aos dados”. O dinamarquês Niels Bohr  retorquiu um dia: “Einstein, tu não tens o direito de dizer a Deus o que Ele deve fazer”. Jogará Deus aos dados com o Universo? Tanto quantos sabemos hoje, sim (aceitando o sentido de Einstein de Deus e de dados). Esta afirmação não tem nenhum fundamento teológico (Einstein não acreditava num Deus pessoal, num Deus que fala com os homens tal como o Antigo Testamento conta), mas antes significa que as leis físicas têm, a nível microscópico, um carácter probabilístico. À partida, só podemos aspirar a conhecer probabilidades de certos eventos como a localização de um electrão num certo lugar. Não podemos dizer que um electrão vai estar com absoluta certeza num determinado lugar, mas apenas dizer que é mais ou menos provável que ele venha a ser encontrado aí. Naquela que foi maior das disputas científicas do século XX, a que foi protagonizada por Einstein e por Bohr a respeito da validade da teoria quântica, o primeiro perdeu e o segundo ganhou. Todas as previsões dessa teoria têm sido confirmadas por inúmeras experiências. Por outro lado, não têm sido confirmadas teorias que pressupõem uma realidade objectiva subjacente às probabilidades quânticas. Tudo indica que o mundo é quântico e que temos, portanto de nos limitar a calcular probabilidades. Parafraseando a frase do escritor francês Anatole France  “o acaso é o pseudónimo que Deus usa quando não quer assinar a sua obra”, podemos dizer que a probabilidade quântica é a maneira com que a Natureza se esconde de nós à escala do muito pequeno. Estamos, claro, a aceitar a metáfora einsteiniana, de raiz espinosiana e de certo modo panteísta, que via Deus como sinónimo de mundo, ou melhor, da harmonia do mundo.
É mister uma nota sobre a combinação da criação com acaso. A teoria quântica permitiu conhecer melhor os primeiros instantes da criação, em particular perceber a existência de uma radiação cósmica de fundo, libertada em todo o cosmos quando este tinha 300 000 anos e os electrões se juntaram aos núcleos para formar os átomos que encontramos hoje por todo o lado. Uma espécie de fiat lux, um pouco atrasado relativamente ao Bang inicial... Mais atrás, usando ainda a teoria quântica, sabemos que os primeiros núcleos – principalmente hidrogénio e hélio – estavam prontos na ardente fornalha cósmica ao fim de três minutos. Os primeiros segundos são, porém, um enorme ponto de interrogação. Alguns físicos especulam que, graças ao acaso da teoria quântica, às chamadas flutuações quânticas, há não um só Universo, o nosso, mas vários, o Multiverso, embora sem possibilidades de contacto entre eles. Os Universos estariam permanentemente a nascer e a expandir-se. Mas, se um Universo já dá um trabalho tão complicado aos físicos, que dizer de uma infinidade de outros...  (Numa altura de crise como a que atravessa o nosso planeta, será talvez consolador pensar que, senão noutro sistema solar ou noutra galáxia do nosso vasto Universo, haverá decerto noutro Universo um planeta sem qualquer crise!)
Finalmente, a questão do sentido. A ciência fornece sentido? Sim, Newton conferiu sentido ao mundo físico, ao juntar as visões de Galileu e de Kepler numa só visão, uma visão inteligível e com poder predictivo. Deixou de haver uma física da terra e uma física do céu para passar a haver uma só física. O mundo tornou-se uno e simples. Einstein e Bohr conferiram um sentido adicional ao mundo físico. O microscosmos e o macrocosmos passaram a estar unidos numa só visão. A religião fornece sentido? Sim, com certeza. Disse o insuspeito Anatole France (lembro que os seus livros foram colocados no Index em 1922, um ano depois de ele receber o Nobel): "A religião outorga ao indivíduo a compreensão do significado da sua existência e do seu destino." Mas os sentidos da ciência e da religião são marcadamente diferentes. Uma busca o natural e outra o sobrenatural. O sentido do mundo demandado pela ciência – a ordem da Natureza e a sua explicação através da matemática e da experiência, na tradição de Galileu, Newton, Einstein e Bohr, para já não falarmos de Darwin e Mendel - não é o mesmo sentido demandado pela religião – a ordem do mundo invocando o poder da divindade e aceitando tradições antigas como a que está inscrita na Bíblia. Concordo com o Padre Lemaître que as duas não têm de estar, como estiveram no passado, em concorrência e confronto, pelo mero facto de não haver sobreposição.
Não se pode dizer que uma das actividades humanas – ciência ou religião -  seja superior ou inferior à outra: elas perseguem objectivos diferentes, usam metodologias diferentes e reconhecem sentidos diferentes. Poder-se-á dizer que a busca de sentido pela religião é mais antiga do que a busca de sentido pela ciência e que, quando as duas passaram a   coexistir, num tempo em que a diferença entre elas não era tão nítida como hoje, houve naturais equívocos. Mas, em 1633, cerca de um século antes de Newton morrer, com o caso Galileu, ciência e religião separaram-se para seguirem cada uma o seu caminho. O julgamento de Galileu pelo tribunal da Inquisição é simbolicamente o momento dessa rotura. O conflito ciência-religião que esse episódio deflagrou durou longos anos, mas Galileu, por ordem do papa João Paulo II, foi reabilitado em 1992. Conforme explicitou o arcebispo Gianfranco Ravasi, hoje Cardeal e Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura:
“Por esse erro subjectivo de julgamento, Galileu teve que sofrer muito. Hoje, num clima mais sereno, podemos olhar para a  figura de Galileu e reconhecer o crente que tentou em seu tempo conciliar os resultados de suas pesquisas científicas com os conteúdos da fé cristã. Por isso, merece hoje todo nosso apreço e gratidão".
Em 2009, Ano Internacional da Astronomia, foram feitos planos, entretanto logrados, para lhe fazer uma estátua nos jardins do Vaticano. Se a reabilitação demorou mais de três séculos, a estátua poderá esperar um pouco mais... 

Os sinais de tensão entre ciência e fé ainda se encontram hoje, mais no campo da biologia, onde a questão da origem do homem ainda é debatida e onde o lugar da alma, o cérebro, é activamente investigado (o Cardeal Ravasi escreveu “Uma Breve História da Alma”, onde não se coíbe de abordar as neurociências), do que no campo da física. Mas estou em crer que ciência e religião podem e devem coexistir pacificamente, sendo não só possível como desejável que lucrem com a sua interacção. Ao contrário do que, por vezes, sucedeu no passado, cada uma não tem que ignorar, afastar ou excluir a outra, mas antes actuar na respectiva esfera, no respeito pelas respectivas especificidades. E, sempre que possível e oportuno, deverão enriquecer-se através do seu contacto, como acontece em diálogos como este. Não podemos hoje concordar com o Padre António de Vasconcelos, no passo em que ele há cem anos defendeu que “cada nova conquista scientifica é mais uma prova da existencia de Deus.” Mas podemos talvez concordar que ciência e religião serão melhores se estiverem mais bem informadas acerca uma da outra. De resto, o homem é só um e só poderemos compreender o homem se olharmos, com o sincretismo que for possível, para tudo aquilo que ele faz. Só o homem consegue ter a experiência do mistério. Só o homem consegue penetrar nos mistérios, sejam estes quais forem. Einstein escreveu um dia:
A mais bela experiência que podemos ter é a do mistério. Essa é a fonte de toda a arte e de toda a ciência verdadeiras. Aquele para quem esta emoção seja estranha, aquele que não consiga fazer uma pausa para se se deslumbrar, pode ser considerado  morto: os seus olhos estão fechados. Foi a experiência do mistério – ainda que mesclada com a do medo - que gerou a religião. Saber que existe algo em que não podemos entrar, perceber uma razão mais profunda e a beleza mais radiante, que só nos são acessíveis em formas primitivas, esse saber e essa emoção constituem a verdadeira religiosidade; nesse sentido, e apenas nesse, sou um homem profundamente religioso.” 
E eu não saberia dizer nem mais nem melhor.