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Golpe branco, a nova estratégia da direita
POR LUIZ EÇA -
27.6.12
Nos últimos anos, os golpes militares
saíram de moda. A opinião pública, mesmo nos países pobres e mais atrasados,
não aceita o afastamento pela força dos eleitos pelo povo. Na América Latina, o
povo vem elegendo, quase sempre, candidatos progressistas, de esquerda ou
centro-esquerda.
Ora, trata-se do continente com a maior
tradição de golpes militares contra esse tipo incômodo de governos. Continuar
essa tradição é um caminho perigoso para as forças de direita. Não só repudiado
pela própria população local, como também por outros países e entidades
supranacionais, como a OEA, o Mercosul, a Unasul etc.
No mundo islâmico, a Primavera Árabe está
detonando ditaduras e lutando para implantar democracias, com governos eleitos
pelo povo. As classes dominantes nos países destas regiões, que usufruíam do
poder sem ligar para direitos humanos, melhor distribuição da riqueza, justiça
social e política externa independente, estão vendo seus privilégios ameaçados.
Porém, a direita é sábia. Criou uma grande
solução: os golpes dentro da lei, os chamados golpes brancos. Para usar esta
estratégia é preciso ter pelo menos o controle do legislativo. Foi o que
aconteceu em Honduras, no Egito e no Paraguai.
O governo do presidente Zelaya tinha
aderido à Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), criada pelo presidente
venezuelano Chávez, e pretendia fazer a reforma agrária. Coisas inaceitáveis
para a maioria dos oligarcas do país que dominavam o Congresso.
Providencialmente, a direita tinha colocado
na Constituição que o presidente que desejasse alterá-la para permitir sua
reeleição era passível de impeachment. Ora, Zelaya pretendia realizar um
referendo sobre a elaboração de uma nova Constituição. Alegando que o
presidente estava desejando modificações que permitissem sua reeleição, deveria
ser deposto conforme a lei.
Na verdade, Zelaya jamais falara em
pretender manter-se no poder. Mas, para as forças direitistas, tratava-se apenas
de um detalhe... O importante é que os deputados tinham o direito de decidir
conforme sua interpretação das leis constitucionais. E foi o que fizeram.
Aprovaram o impeachment, facilmente, pois tinham maioria. O Judiciário, cujos
membros haviam sido nomeados por governos anteriores de direita, também não
vacilou em assinar embaixo.
E os militares, tão ansiosos em defender a
democracia, não esperaram a publicação da ordem de afastamento de Zelaya. Foram
correndo arrancar o presidente da cama para embarcá-lo num avião... e adiós.
Tirando a forma com que Zelaya foi chutado, tudo o mais fora perfeitamente
dentro da legalidade.
Bem, a OEA proíbe golpes militares. E o
Continente inteiro protestou, não reconheceu a queda do presidente Zelaya. Até
os EUA.
No começo, Obama comportou-se como o Obama
da campanha presidencial. Cortou parte da ajuda americana a Honduras até que
Zelaya fosse reconduzido ao governo. O que não aconteceu. O Parlamento
hondurenho elegeu um presidente provisório, que marcou eleições livres.
Aí, Obama mudou. Afinal, a democracia
estava sendo restituída ao país... E, embora a participação militar no golpe
fora, digamos, um tanto desastrada, a deposição seguiu todos os aparatos
legais. E o governo provisório prometera respeitar a democracia.
Alguns outros países latino-americanos
seguiram os EUA, voltaram a ter relações com Honduras. Só o Brasil, a
Venezuela, o Equador e a Bolívia resistiram muito tempo. No fim, os anos
passaram, e também eles se conformaram.
Nas prometidas eleições livres, sem Zelaya
e seus partidários, que eles não eram loucos de arriscar sua pele, ganhou o
candidato da direita, Porfírio. No seu governo, Honduras se tornou o país com o
maior índice de assassinatos do mundo. Contabilizou ainda 34 oposicionistas
desaparecidos ou assassinados, mais de 300 pessoas mortas pelas forças de
segurança e ainda 19 jornalistas também assassinados; por coincidência, quase
todos contrários ao governo.
No Egito, os autores do golpe branco foram
as forças armadas, que, no governo Mubarak, tornaram-se proprietárias de
empresas dos mais variados ramos, representando mais de 20% da economia
nacional.
Quando não dava mais para Mubarak resistir,
os militares o convidaram a se retirar. Assumiram o poder, garantindo que
sairiam logo que fosse eleito um presidente, coisa de uns seis meses.
Aproveitaram a boa imagem que conseguiram junto ao povo para nomear uma
comissão que redigiria uma lei constitucional provisória a ser democraticamente
submetida a um referendo popular.
No entusiasmo das comemorações da queda do
odiado regime, a população aprovou sem questionar essa constituição provisória.
Aqui também a direita foi previdente: inscreveu na Constituição provisória
artigos de interpretação dúbia que viria a utilizar politicamente.
Um deles ordenava negar registro a
candidatos que tivessem sofrido condenações penais. Com isso, retiraram da
competição pela presidência o mais prestigiado membro da Irmandade Muçulmana,
inscrito pelo Partido da Paz e da Justiça.
Alegou-se em sua defesa que ele fora
condenado por perseguição política do regime Mubarak. Mas, não pegou. Afinal,
quem julgava eram praticamente os mesmos dos tempos da ditadura.
Em seguida, pouco antes das eleições
presidenciais, a Suprema Corte foi acionada. Cumprindo lei da Constituição
provisória que proibia a eleição de candidatos de partidos religiosos, os
juízes cassaram o mandato dos deputados eleitos pelo Partido da Paz e da
Justiça, sabidamente formado por gente da Irmandade Muçulmana.
Como esse partido tinha 40% do Parlamento,
a Justiça egípcia aproveitou o embalo para decretar o fechamento do Parlamento
inteiro. Lembre-se que os juízes da Corte Suprema do Egito, tendo sido nomeados
por Mubarak, não devem gostar nada da Primavera Árabe e dos seus partidos, responsáveis
pela queda do ditador amigo.
Não surpreendeu ninguém o fato de eles não
terem protestado quando os militares completaram o golpe branco: editaram novas
leis que lhes davam o poder legislativo e limitavam muito os poderes do
presidente a ser eleito.
Ninguém duvida que os militares, no gozo
dos seus poderes legislativos, nomearão gente de sua confiança para fazer a
nova constituição. Certamente será uma constituição sob medida para seus
interesses.
Entre outras restrições, o presidente não terá
alçada sobre o orçamento militar. E as forças armadas tornam-se totalmente
independentes dele, que não poderá sequer convocar o exército para reprimir
revoltas.
Prevendo que a reação popular a todos estes
atos arbitrários poderia ser violenta, a junta militar emitiu também outra lei,
criando uma série de novos crimes como, por exemplo, obstruir o trânsito, o que
acontece normalmente nas manifestações da praça Tahrir. Os órgãos de segurança
e os militares terão direito de prender os infratores.
Medidas ilegais? Não, afinal a junta
militar tem poderes legislativos de acordo com a constituição provisória, que
fizeram no ano passado. O golpe branco não acabou aqui.
A comissão eleitoral, presidida por um
general, anunciou que adiaria sine die a publicação dos resultados da eleição
no dia marcado para poder julgar recursos, pedindo anulação de apurações em
diversas regiões.
Ao mesmo tempo, fontes militares informaram
“sigilosamente” a diplomatas de países do Ocidente e jornalistas que o general
Shafiq seria anunciado como vencedor no domingo à noite. Mas, no domingo,
soube-se oficialmente que foi Mursi quem ganhou.
No seu discurso de posse, o candidato da
Irmandade Muçulmana declarou que respeitaria todos os tratados internacionais.
Estranho já que, durante a campanha, prometeu rever o acordo com Israel, taxado
por ele de “o grande inimigo”. Isso faz supor que houve uma negociação para
obter o apoio dos EUA.
Acredito que, por sua vez, os militares
exigiram que a Irmandade Muçulmana aceitasse o papel constitucional assumido
pelo exército, se quisesse o reconhecimento da vitória do seu candidato.
Foi assim que, sem desrespeitar as leis
vigentes, os militares reuniram em suas mãos os poderes legislativo e
judiciário. Poderão fazer a nova Constituição, de acordo com seus interesses,
mantendo-se como um verdadeiro Estado dentro do Estado. E deixarão para o povo
o direito de ter escolhido o presidente, porém, um presidente fraco, praticamente
sem poderes.
O terceiro golpe branco aconteceu no
Paraguai. O presidente Lugo era totalmente inaceitável para os grupos
econômicos que mandaram no Paraguai durante 72 anos. Além de pertencer a um
movimento de esquerda, prometia realizar a reforma agrária. Como seu partido
não tinha expressão, Lugo aliou-se ao Partido Liberal, que forneceu o candidato
a vice-presidente.
Eleito, ele teve de enfrentar a oposição do
Congresso, reforçada pelos deputados liberais, cujo partido rapidamente rompeu
com o governo.
Cada projeto importante do governo Lugo foi
sistematicamente rejeitado. Além disso, teve de se haver com a sabotagem de um
funcionalismo ineficiente e corrupto.
E contrário a ele, basta dizer que,
conforme pesquisa, 30% dos funcionários de carreira pertenciam ao Partido
Colorado, o principal partido de direita. Num contexto tão hostil, Lugo não
teve condições de realizar nada. Perdeu prestígio.
Como não se preocupou em fortalecer os
grupos que o apoiavam, os movimentos sociais e camponeses, ficou sem condições
de se defender. Tendo contra si um governo debilitado, a direita tentou várias
vezes promover sua deposição.
A última tentativa deu certo. Um conflito
entre a polícia e camponeses resultou em 17 mortes. Os deputados da oposição
aproveitaram o clima de horror e indignação que se criou para depor Lugo de
forma legal.
Na Constituição paraguaia, feita pela
direita, há um artigo que permite o afastamento do presidente por “mau
desempenho”. Esta cláusula é dúbia e pode ser objeto das mais variadas
interpretações. Como dominavam o Legislativo as forças de direita, culparam
Lugo pelas mortes no conflito e interpretaram sua culpa como aquele “mau
desempenho” que permite o impeachment do presidente.
O golpe branco se concretizou com a
aprovação do impeachment pela Câmara e pelo Senado. Só não foi perfeito devido
à sofreguidão dos deputados e senadores direitistas que liquidaram a fatura num
prazo verdadeiramente obsceno: 30 horas.
Os governos latino-americanos reagiram com
indignação, suspendendo o Paraguai do Mercosul e da Unasul. Foi convocada uma
reunião da OEA para discutir a questão. Não se sabe qual será o resultado, pois
os EUA não perderam tempo em reconhecer a eleição do sucessor de Lugo. Para
eles, não houve rompimento da ordem democrática, pois Lugo foi derrubado de
acordo com a Constituição e o vice foi empossado, também legalmente.
Mais importante: enquanto Lugo era um
esquerdista, embora moderado, seu sucessor Federico é um homem de direita, será
certamente um fiel aliado da Casa Branca. É de se acreditar que, com o tempo, o
governo direitista do Paraguai acabará reconhecido por quase todas as nações,
inclusive da América Latina.
Como todo golpe branco, a derrubada de Lugo
baseou-se em interpretações subjetivas de artigos pouco claros da Constituição.
Tanto o governo de direita do Paraguai, quanto os do Egito e de Honduras, foram
conquistados dentro de uma democracia formal, que esconde um golpe contra a
vontade do povo.
A tendência é que novos golpes brancos se
sucedam até que a comunidade internacional, através da ONU e de entidades
regionais, abra os olhos e se organize para defender a democracia que todos
querem.