segunda-feira, 30 de abril de 2012
Golpes de Estado :: Roberto Romano
"Truque jurídico golpista: 'O processo é instruído após a execução'. A nova ordem livra-se das "pequenas formalidades exigidas pela Justiça".
A
palavra "golpe" hoje circula no Brasil em todos os ambientes. O tema
tem alcance histórico. O moderno poder político é movido por golpes
canhestros ou eficazes. Basta consultar a crônica da Europa para
verificar que todos os modos legítimos de mando foram violentados por
golpistas de várias tendências.
Assim se afirmou o poder de Luís
XI e de Henrique IV, o mesmo ocorrendo com Robespierre e, depois, com a
família de Napoleão. Pétain e Laval encerram a fieira do golpismo. Na
Inglaterra, a ditadura de Cromwell afastou monarquistas e liberais
(Levellers) da Revolução. Em Portugal, o golpe determinou a luta de
Pedro IV, o nosso Pedro I, contra o seu irmão Miguel. O século 20
português conheceu golpes continuados. O fascismo italiano foi uma série
de golpes, o mesmo na Espanha. Na Alemanha e na Rússia do século 20,
regimes virulentos dominaram o Estado à força de golpes.
No Brasil, temos os golpes do
imperador, dos regentes, dos oficiais que derrubam a monarquia, de
Getúlio, que instalou uma ditadura feroz, dos civis e militares erguidos
contra a ordem estabelecida em 1961 e 1964. Depois, o golpe dentro do
golpe no Ato Institucional n.º 5 (AI-5), o golpe do chamado Pacote de
Abril, etc. Setores das esquerdas falam hoje da imprensa golpista, no
mesmo passo em que as direitas bradam contra o revanchismo.
É preciso não banalizar a noção
de golpe, cujo fim é impedir a força de adversários no Estado e nas
sociedades. Eles são propositivos se buscam impor formas de pensamento e
suspendem os mecanismos jurídicos das anteriores formas de poder. Por
não terem origem nas urnas, os seus atores se legitimam invocando a
urgência (o Estado estar-se-ia corrompendo) ou a necessidade. Foi assim
no AI-1: "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder
Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução.
Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte.
Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por
si mesma". O golpe aposenta o voto, cassa mandatos, fecha partidos.
Importante estudo vem de Gabriel
Naudé nas Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1640). O
texto pode ser lido online na Biblioteca Gallica. Naudé situa o golpe no
campo da prudência. Ele critica a divisão tríplice daquela virtude
feita por Justo Lipsio: a leve - dissimulação e desconfiança na ordem
política; a sórdida, que consiste "em adquirir amizades e serviços de
uns enganando outros por falsas promessas e mentiras, presentes e outros
meios"; e a virulenta, "que se afasta totalmente da virtude e das
leis". Segundo Naudé, tal fracionamento é inútil, pois todas as
prudências dependem de uma só, ilustrada por Luís XI, o "Rei Aranha",
cuja máxima era: "Quem não sabe dissimular não sabe governar". A regra
dos governos reside na desconfiança universal e na dissimulação, que
consiste ou em omitir - pretender que nada foi visto pelos poderosos -
ou "na ação e na comissão, o ganho de alguma vantagem para atingir alvos
por meios encobertos". Omissões e comissões nutrem os poderosos e
fornecem "os diversos meios, razões e conselhos usados pelos príncipes
para manter sua autoridade e a situação do público" sem "parecer
transgredir o direito comum e causar suspeita de fraude e injustiça".
Um golpista indicado por Naudé é
Dionísio, tirano de Siracusa. Querendo impedir as reuniões dos
opositores, agendadas para a noite, ele afrouxava sem alarde as penas
dos assaltantes... Golpes incluem o segredo das ações "extraordinárias
que os príncipes são levados a executar nos assuntos difíceis e
desesperados, contra o direito comum, sem mesmo guardar alguma ordem ou
forma de justiça, prejudicando o interesse do particular em benefício
público". Rapidez, quebra de costumes e de jurisprudência integram os
golpes. Neles "vemos cair a tempestade sem ter ouvido os trovões (...),
as Matinas são entoadas antes de o sino tocar, a execução precede a
sentença. Fulano recebe o golpe que pensava aplicar, sicrano morre,
imaginando estar seguro". Truque jurídico golpista: "O processo é
instruído após a execução". A nova ordem livra-se das "pequenas
formalidades exigidas pela Justiça".
Naudé profetiza os regimes
sangrentos do século 20. O golpe (similar ao cometa e ao terremoto),
afirma ele, deve ser tido como exceção. (Carl Schmitt tem muito a dizer
sobre esse assunto.) Nele o político precisa ser visto "como o pai que
cauteriza um membro do filho para salvar a sua vida". O golpe
justifica-se ao abolir "privilégios, direitos, franquias, usufruídos por
alguns governados em prejuízo da autoridade principesca".
Os golpes devem ser radicais
como os "cirurgiões competentes que, ao abrir uma veia, tiram o sangue
para limpar os corpos de seus humores nocivos". Segundo Naudé, eles
precisam ser fulminantes e despercebidos. Não existe ação eficaz se os
planos golpistas são publicados. Jamais ocorreu golpe sem a purga dos
"membros apodrecidos": o golpe é intolerante e ignora "as pequenas
formalidades da Justiça". O que produz a defesa dos golpes em
maquiavélicos como Naudé? As guerras dinásticas e de religião na Europa.
Mas o golpe, longe de sanar as guerras civis, as perpetua, levando-as
ao plano internacional. Quem deseja o convívio político segue as
"pequenas formalidades" jurídicas. Sem elas ninguém está seguro, nem
mesmo os golpistas, pois os regimes não são eternos e o golpista de hoje
é a vítima do golpe, amanhã.
A democracia exige
simultaneidade irredutível das diferenças ideológicas, nela não existem
inimigos, como propõe Carl Schmitt, somente adversários que merecem
respeito e jamais ataques fratricidas. Qual o terreno fértil dos golpes?
A desconfiança, a dissimulação, os ódios espalhados pelos golpistas que
empesteiam e sufocam a vida política. Tais são os primeiros e últimos
obstáculos a serem vencidos.
Filósofo, professor de Ética e
Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); é autor,
entre outros livros, de "O Caldeirão de Medeia"(Perspectiva)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO, 29/4/2012