MENTIRA E RAZÃO DE ESTADO. ROBERTO ROMANO
8 de março de 2010
Roberto Romano/Unicamp
Quando recebi o honroso convite do Dr. Marcio Sotello Felippe para
expôr algumas idéias a este grave e seleto auditório, pensei falar
algumas coisas sobre a Razão de Estado. A justificativa era evidente,
imaginava eu, bastando inspecionar a midia internacional e brasileira
para ver o quanto os poderes se desenvolvem no segredo e aprofundam as
diferenças entre a cidadania comum e que os agem em nome do público.
Guerras, modificações econômicas e jurídicas são empreendidas sem que os
contribuintes saibam as suas causas e alvos. Pior quando medidas
restritivas às liberdades civis—como o conjunto de ordenamentos
norte-americanos batizados como Lei Patriótica— são esposadas por
juristas e tribunais superiores. A democracia e as exigências de
transparente responsabilidade governamental perdem a cada átimo sua
marca de origem. No mundo inteiro observa-se uma espécie de retorno ao
absolutismo, que por sua vez imaginávamos afastado pelas revoluções
inglêsa, norte-americana e francêsa. Sequer pode-se afirmar que hoje
vigora um Termidor. Na verdade o retorno político que testemunhamos
segue para o arbítrio e a imposição de leis e normas pelos que ocupam o
lugar do arcaico rei sagrado. Nunca, na história política moderna e
deste país, o Executivo foi tão impositivo e tirânico.
Com a hegemonia inconteste do Príncipe (inclusive com o retorno da
prática na qual os bens do Estado pertencem a governantes e áulicos)
temos algo similar ao descrito por Peter Burke na consolidação moderna
do Estado: todas as instituições públicas tornam-se instrumentos para
ilustrar a imagem do governante. ( ) A Raison d´État é apenas um outro
elemento da reivindicação enunciada pelo Rei Sol: L´État c´est moi. Como
indica Peter Burke, as academias científicas, artísticas, os palácios
públicos, as avenidas, as cidades, as fábricas, os quartéis passaram a
existir apenas para exibir a “glória da França” na figura de Luís. As
técnicas empregadas pelo Estado absolutista foram assumidas pelos
governos após o refluxo da Revolução de 1789. A primeira delas é o culto
da personalidade, abusado por Napoleão e conduzido ao delírio no século
20.
Recomendável é a leitura dos últimos considerandos feitos por Burke
sobre o século anterior. O autor critica quem separa de modo radical a
ordem política, na época de Luis e em nossos dias. Ele mostra que muitos
autores recentes erram ao comentar o Estado do século 17. Por exemplo
Daniel Boorstin que, em 1960, cunhou o termo “pseudo-evento”, cujo
significado vai de uma ação encenada tendo em vista midia aos rumores
sobre atos noticiados antes mesmo que ocorram. Em português atual o
termo é factóide. As jóias, os quadros, medalhas e gravuras absolutistas
integravam encenações meticulosamente ensaiadas. Existem outros termos
como “Estado Espetáculo”, produzido por Schwartzenberg em 1977 ( ) para
descrever a política de Kennedy, De Gaulle, Pompidou e Carter e o
empacotamento dos candidatos. Dizer que “antes” os pretendentes ao
governo não eram vendidos à população é olvidar que Richelieu e Luís XIV
tinham ghost-writers para redigir discursos, memórias, cartas. A
“venda” do produto político não difere em demasia hoje do que se fez na
era da Razão de Estado.
Finalmente: “os meios de persuasão assumidos por governantes no
século 20 como Hitler, Mussolini e Stalin e, em menor grau, pelos
presidentes franceses e norte-americanos, são análogos sob certos
aspectos importantes aos meios empregados por Luíz XIV”. Existem
diferenças, pois “os novos meios eletrônicos têm suas próprias
exigências. A mudança de discursos políticos para debates e entrevistas,
por exemplo, é um dos seus efeitos. Mesmo assim, o contraste entre o
que poderíamos chamar de ´governantes eletrônicos” e seus predecessores
foi exagerado”. Conhecemos o sentido atual da manipulação das massas.
Depois de Elias Canetti, cujo exame das multidões captou as bases
totalitárias do século 20, em Massa e Poder, analistas como Peter
Sloterdijk mostram as potencialidades da nova midia e da Internet no
movimento de massas virtuais, determinado pela propaganda. ( )
Semelhantes artifícios são reunidos na classificação ética
tradicional que diz respeito à mentira. Engana-se quem une razão e
verdade. Como enuncia I. Kant, antecedido por Rousseau e Platão, a força
do pensamento racional, no mundo finito, é acelerada pela mentira e
pela desmesura. As primeiras linhas da Critica da Razão Pura dizem que
“a razão humana sofre um destino peculiar, pois em todas as espécies de
seu conhecimento ela se incendeia por questões que, como é prescrito
pela própria natureza da mesma razão, ela não pode ignorar mas que, se
ultrapassar os limites de seu poder, ela também não pode responder”.
Como o poder político, a razão deve encontrar limites, caso contrário
ela delira sem suportes na corporeidade humana. Se o conhecimento é o
seu alvo, ela deve começar dando à sensibilidade o seu quinhão,
partilhando seus poderes. Quando se imagina absoluta, a razão, enuncia
Kant, torna-se despótica e vazia. A verdade necessita tanto de
ingredientes raros e caros quanto das humildes fontes estéticas. Justo
por tal motivo Kant defende a crítica da razão. Como diz o intróito da
sua obra estratégica: “Nossa era é propriamente a era da crítica, a quem
tudo deve ser submetido. A religião, por sua santidade e a legislação,
por sua majestade, querem ser isentadas pela crítica. Mas então elas
despertam suspeitas e não podem exigir o respeito sincero que a razão
concede apenas ao que passa pela prova livre e pública”. ( ) O trecho
kantiano é um ataque direto ao dogmatismo trazido pela razão de Estado.
Tanto a ordem religiosa quanto a civil buscam um estado de exceção para
si mesmas, enquanto a crítica liga-se à continuidade no ordenamento
público e republicano. Alí, a regra é efetivamente universal e não
admite exceções, muito menos estados de exceção. E a Raison d´État opera
segundo a lógica do que é excepcional. Não por acaso um dos autores
primevos na constelação absolutista redigiu em 1652 (tempo áureo da
raison d´État, especialmente sob Richelieu e Mazarino) o primeiro livro
claro sobre os golpes de Estado. Refiro-me a Gabriel Naudé. ( )
Proponho às senhoras e senhores inspecionar a mentira como essência
da razão de Estado. Na tarefa, uso os trabalhos de vários escritores,
sobretudo o de Victoria Camps, “A mentira como pressuposto”, editado em
coletânea dedicada ao problema da mendacidade. ( ) Uma constatação
primeira é sobre a natureza da linguagem verdadeira. Se ela é uma
convenção ou se brota diretamento da natureza, é algo que se discute na
filosofia desde os seus primórdios. Com esta zona cinzenta que obnubila
noção de gênese, a hipótese mais produtiva, em termos políticos e
jurídicos enuncia que a verdade no mundo finito não pode ser absoluta. E
nem a mentira. A lingua, como a cultura humana incluindo o poder,
define-se como um jogo. De Pascal a Wittgenstein, esta via tem sido
explorada com insistência. A mentira, segundo o último pensador citado, é
um jogo de linguagem que deve ser aprendido, como qualquer outro jogo.
Se existe uma atenuação do conceito de verdade e mentira no mundo
moderno, ainda somos suficientes herdeiros de Rousseau e não perdemos a
certeza na sinceridade. Este é o pressuposto da comunicação, sobretudo
em coletivos que se desejam democráticos. Que a lingua seja o lugar dos
equívocos, da insuficiente clareza, dos desvios semânticos, é algo
debatido desde os pré-socráticos e o Crátilo platônico é eloquente
testemunho. A simples inspeção em textos fundamentais do pensamento
político moderno como o Leviatã, também mostram que antes de penetrar os
segredos do poder é preciso bem vigiar o uso das palavras. Em nossos
dias um analista que traz elementos para este labor é Austin, no
importante How to do things with words. ( )
Segundo Austin, o que a lingua faz não é nem verdadeiro nem falso :
está bem feito ou mal feito. Em lugar de erros ou falsidades, ele
prefere dizer “atos infortunados”, como os abusos do pensamento,
sentimentos, intenções, trazidos pela insinceridade do agente. Assim,
dar conselhos com objetivos torpes, dizer culpado o inocente, prometer
querendo não cumprir, não consiste em dizer coisas “falsas”, mas
insinceras. Aí reside propriamente o ato de mentir.
Qual é a mais espalhada definição da mentira em nossa cultura ? A de
Santo Agostinho. Este último proclama que Deus é inocente de toda
falsidade. Ao dizer que Deus não precisa de nossa mentira, ele segue
Platão à risca. Todos recordam as passagens da República que censuram os
deuses homéricos mendazes, e a sentença do filósofo que define os
atores divinos como inocentes. Do celeste ao humano: como a nossa
vontade decidiu-se pelo mal, ainda no Paraíso (incluindo a mendacidade),
no mundo finito tudo é pervertido. O Estado só existe porque ocorreu
aqule primeiro ato de vontade maléfica e mentirosa. Servos de nosso
egoísto e orgulho, para nós a mentira só pode consistir em “dizer o
contrário do que se pensa, com a intenção de enganar”. (De mendacio) Em
outro texto, o Contra mendacium ( ) [Contra o ato de mentir], o padre da
Igreja analisa a mentira feita para obter vantagens. Nada mais
acertado, no caso, do que recordar as passagens de Edmund Burke sobre a
atração racional pelo mal, o que produz no homem o sentimento do
“delight”, tranqüilo horror que segundo Burke é a fonte do sublime.
Satã, o mentiroso supremo, pelo prazer da luz racional nos joga no
delírio, armadilha cujo nome latino é lacio: rede luminosa que o
Príncipe das Trevas joga sobre os “animais racionais”, para que eles se
afastem da luz. ( )
A mentira é portanto um ato de fala. Vejamos o que isto pode
significar. Os atos de fala dependem, segundo Austin, do ajuste de quem
enuncia a um “procedimento convencional aceito (…) que inclui a emissão
de certas palavras, por parte de certas pessoas em certas
circunstâncias”. Este aspecto é determinado como ilocução (o que fazemos
ao dizer algo), mas não como perlocução (o que fazemos pelo fato de
dizer algo). A perlocução é o efeito produzido por um ato linguistico, o
objeto ou a simples sequela deste ato. A perlocução pode ser
intencional ou inintencional. A perlocução não é convencional, ela se
produz ou deixa de ocorrer independentemente da correta efetivação do
ilocutivo. Vejamos exemplos disso: “mate-o” é locutivo. “Ordenou-me que o
matasse”, ilocutivo. “Persuadiu-me a matá-lo”, perlocutivo.
“Persuadir”, “convencer”, “assustar”, “alarmar” são perlocutivos cuja
efetivação não depende do fato de usar certas expressões ou situá-las
em contexto adequado, mas sim da habilidade, destreza ou astúcia do
falante, da fraqueza ou vulnerabilidade do ouvinte, circunstâncias nem
sempre previsíveis nem controláveis pelos próprios sujeitos do ato de
fala. ( ) Para expôr a não convencionalidade do perlocutivo, Austin
afirma que um juiz pode decidir, pela oitiva de testemunhas, quais
locutivos e quais ilocutivos foram empregados no ato delituoso, mas não
pode saber quais foram os perlocutivos porque não tem provas para tal
exame. O ilocutivo é um ato físico mínimo, que consiste em dizer algo. O
perlocutivo resulta do ter dito algo, que não consiste em outro ato de
dizer. Ele não é convencional e isto poder ser verificado pelo fato de
que ele não pode ser explícito, caso contrário perde eficácia. Não se
diz: “eu te persuado”, ou “eu te assusto” quando se deseja realmente
persuadir ou assustar. O perlocutivo pode ser intencional ou
inintencional, um fim proposto ou querido, ou ser uma simples sequela do
ilocutivo.
Se a mentira é “dizer o contrário do que se pensa com a intenção de
enganar”, como considerá-la no contexto dos atos de fala? Falar a
mentira, para Austin, é transgredir a condição dos atos de fala, a
sinceridade. No ilocutivo, a mentira está em não cumprir de uma regra,
que exige dos partícipes de uma troca de enunciados que eles possuam os
pensamentos e sentimentos expressos, e que tenham a intenção de falar em
consequência. Digamos em forma de jogo: os partícipes de um jogo de
xadrez devem ter a a competência e o intento de jogar xadrez, não dominó
ou um outro jogo. A sinceridade, assim entendida, é um pressuposto da
conversa. A mentira, dizer o contrário do que se pensa, negaria o
própria ato comunicativo. Ela não é um ilocutivo, mas um perlocutivo.
Por exemplo: se falarmos “ao dizer X, eu o enganei” o intento e a
consequência se ampara, justamente, na ausência de explicitação, na
falsidade do ato, a inconexão encoberta entre o que digo e o que, de
fato, pretendo conseguir sem que o outro o perceba, pois se trata de
enganá-lo.
Permitam-me afirmar que nesse passo temos a condição primeira da
Razão de Estado. Todos os comentadores daquela política indicam que a
inconexão encoberta entre falante e ouvinte, entre os que falam pelo
poder e os que obedecem, é o seu núcleo. A questão do segredo aninha-se
neste fio básico da mentira. A mentira vai além dessa prática de engôdo
metódico, pois alguém pode enganar e ocultar de si mesmo este seu
intento, salvando às meias a própria consciência. “O político mente para
ganhar eleições; o desempregado mente para conseguir emprego, e até
existe quem minta exclusivamente para chamar a atenção”. Nestes casos, o
perlocutivo não é apenas enganar. Assim, podemos imaginar que a mentira
como perlocutivo absoluto —mentir por mentir— jamais ocorre. Mentir é
um recurso próximo do que chamamos manipulação. Ela é um ato unilateral:
eu engano, minto, e ele não deve perceber. Aqui também nota-se o traço
da Razão de Estado, segundo a maioria dos comentadores. Quando citei
Kant e a questão da crítica pública, era em preparação a este passo. A
mentira, na perspectiva de Kant, nega o pressuposto semântico e
pragmático essencial que, se ausente, a comunicação torna-se impossível
e, com isso, toda ciência, moral, política. A razão de Estado é uma
política paradoxal, porque tende a reduzir todo enunciado político à
manipulação dos dirigidos, neles criando a aceitação temporária do que
se diz e se faz, e que tem a marca da mentira. A adesão aos atos do
governante é fabricada com meticulosa astúcia. A cada vez o engano deve
ser retomado, sem que se acumule realmente qualquer obediência cuja
origem seja a vontade efetiva do coletivo.
A razão de Estado arruina a base da política, a fé pública, porque
ela é “um engano radical, uma ruptura de fé que arruina todo contrato
discursivo; na mentira [e na Razão de Estado, RR] o ouvinte não é capaz
de explicitar nenhuma estrutura; trata-se de um discurso ´fora da lei´”.
( ) A mentira é um abuso da linguagem. Quando descoberta, a mentira
precisa de razões excusas para justificar tal abuso. A verdade não
precisa se desculpar, salvo justamente diante da razão de Estado, como
se apreende da história desta política que não ousa dizer seu nome. Os
julgamentos das seções especiais de Justiça em Vichy, os julgamentos de
Moscou e muitos outros julgamentos demonstram esse ponto.
Quais os tipos de mentira que mais operam na cultura ocidental, berço
da razão de Estado? Na ficção, que sem dúvida não é verdadeira mas
também não é mentirosa, pois não intenta enganar. A linguagem política
comum, não presa à Razão de Estado, pois nela se encontram os
eufemismos, as evasivas, os silêncios, as desinformações. Esta lingua
promete sem prometer e deseja agradar e conseguir votos, persuadir mais
do que convencer. Mas não pode ser dita mentirosa, mas demagógica. Nela,
os interesses pragmáticos se sobrepõem a todos os demais interesses. A
lingua da publicidade exagera para persuadir, é prescritiva de modo
sutil. ( ) A lingua religiosa não é verdadeira, pois usa a analogia. Os
atributos divinos são incognoscíveis. Só pode-se falar deles a partir
das criaturas. A lingua cotidiana conta com fórmula mentirosas, que não
podem ser tomadas ao pé da letra. Assim nas desculpas, saudações,
expressões de contentamento ou tristeza. Victoria Camps cita a grande
filósofa Mafalda, que se refere à expressão “não tenho tempo” como uma
boa “mentira dos adultos que costuma funcionar”. Sempre é bom que se
lembre o estratégico livrinho de Torquato Aceto, o Della dissimulazione
onesta. “Existem classes e profissões que se pressupõe por princípio que
forçam os seus representantes a mentir, como, por exemplo, os teólogos,
os políticos, as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas,
os advogados, os artistas, os fabricantes de alimentos, os operadores
da bolsa, os juízes, os médicos, os falsificadores, os gigolôs, os
generais, os cozinheiros, os traficantes de vinho”. ( )
Mas nessas mentiras profissionais, diga-se, temos mentiras
partilhadas, pois nelas o engano participa e assume a mentira. Esta
última, no entanto, sendo um jogo que deve ser aprendido, aquelas
mentiras pervadem todos os discursos, deixando por isto de serem algo
que vai contra o coletivo. Em alguns casos temos aí algo lícito, ou
ilícito, segundo o caso. Passemos ao caso da mentira como ato de
violência e poder.
As mentiras mencionadas há pouco, são geralmente socialmente aceitas,
são funcionais, convencionais. A mentira real se identifica com a
injustiça. Ela é uma espécie de violência e ela só é justificada pela
aceitação do violentado. Nela, as duas partes —mentiroso e enganado—
sabem que estão mentindo um ao outro, mas ao dirigido não resta nenhuma
saída que não seja a adesão. Quando existe mentira real? Quando a
competência linguistica é assimétrica: mente-se à criança, ao doente, ao
fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. A mentira é
possibilitada pela dominação religiosa, política, ideológica,
profissional. A Razão de Estado se instala no mundo humano com a
dominação assimétrica absolutista. É o caso de James I, que afirma ser o
rei “accountable” apenas perante Deus. Aos súditos, ele ensina e manda
sem que eles possam exigir prestações de contas. A luta contra a Razão
de Estado formou o núcleo das revoluções democráticas na Inglaterra do
século 17, na América e na França no século 18. Na democracia, a
competência linguistica é simétrica e compartilhada. É por semelhante
motivo que todos os reacionários do século 19, a começar com os
romênticos conservadores, viram na democracia aquele regime onde todos
falam, e todos falam em demasia, sem poder decidir.
Basta “alguma experiência da alma humana” diz Weinrich, para detectar
os sinais da mentira. Aprender o jogo da mentira —e não por acaso o
estadista da Razão de Estado é comparado ao jogador que frauda as
regras— é aprender as possibilidades de manipulação e engôdo, que
encobrem a fala, que por sua vez é o disfarce do pensamento. O que faz o
regime da Razão de Estado contrário ao genero humano e à liberdade é o
fato de que sua mentira é uma injustiça que não considera governantes e
governados como iguais, uma redução, como diria Kant, do outro a puro
meio da vontade governante. Não por acaso Montaigne define a mentira
como “valentia diante de Deus e covardia diante dos homens”. É por tal
motivo que o perlocutivo fornece uma chave para entender o ato da
mentira política, dita Razão de Estado: a sua essência é a dominação do
outro quando este não consegue recusar ou mesmo detectar o engano. O
perlocutivo não é “mentir” ou “enganar” (porque disse X, menti ou
enganei). A mentira permanece oculta, em especial na Razão de Estado,
porque não deve ser percebida, caso contrário, ela perde seu efeito.
Habermas imagina que numa sociedade ideal, ou seja, a democrática e
ilustrada, impera o diálogo e a mentira é impossível. A simetria entre
os cidadãos e os dirigentes mostra-se total. O único senão é que tal
sociedade nunca existiu nem existirá, salvo talvez na Cidade de Deus.
Mesmo assim é preciso atentar para a ruptura do diálogo celeste, trazida
pelo primogênito da Luz. Sendo assim, temos a realidade absolutista da
assimetria entre cidadãos e cidadãos, entre cidadania e príncipes.
Existindo a assimetria, temos o poder dos competentes na fala e nos
atos, os quais decidem sobre o que pode ser ouvido e compreendido pelos
governados.
Não admira que os Estados formalmente definidos como democracias
sejam frágeis nos dias posteriores ao Termidor. Não admira também que a
confiança dos cidadãos na democracia diminua a olhos vistos. A astuciosa
Razão de Estado, da qual adoecem estadistas, intelectuais e sobretudo
burocratas, não pode fugir da corrosão homeopática da fé pública, sem a
qual nenhum poder se sustenta em prazo longo. Como diz Nietzsche, citado
bem a propósito por Victoria Camps, “os homens não fogem tanto de ser
enganados, como de serem prejudicados pela mentira”. Não é por teres
mentido para mim, arremata Nietzsche, “mas porque eu não mais acredite
em ti, é isto o que me faz estremecer”.
Fé pública e verdade são os esteios que garantem todos os deveres,
todas as leis, todos os contratos. É isto, afirma Amélia Valcárcel, ( )
que afasta a Razão de Estado para fora dos limites da moralidade. É por
este motivo que Hegel estigmatizou a critica da razão, proposta por
Kant, como algo desagregador para a sociedade civil e para o Estado. Sem
dúvida, imagina Hegel ao perverter a noção de mentira na República de
Platão, o sujeito individual não deve mentir, mas deve ser admitido que
entidades não subjetivas podem trazer verdades que para ele, indivíduo
abstrato, são mentiras. A instituição estatal é a verdade suprema dos
indivíduos, ela tem o direito à mentira para o bem do coletivo.
Moralmente se exige que uma pessoa não minta a outras, sendo
repreensível se ela mente sobre assuntos de sua esfera profissional ou
familiar. Sua mentira será punida se a mentira cometida afeta o Estado.
Este, segundo Hegel, não precisa dizer a verdade, porque ele é a
verdade. Instituições não mentem, indivíduos sim.
Termino essas notas sobre Razão de Estado com a lembrança de Pitt
Rivers ( ) que afirma ser a mentira essencialmente uma categoria que
mede a hierarquia. Mentir é uma relação que se faz cima para baixo.
Trata-se de saber quem possui direito à verdade. Mentira é não dizer a
verdade a quem possui direito a ela. A ordem que chega de cima não é
mentira, mas palavra de poder pertinente em si mesma, modelo e guia do
saber e da ação dos que a recebem. Quem precisa fazer com que sua
informação suba pode mentir, mesmo inadvertidamente, se esconde ou
tergiversa parte de sua informação ou se não purifica o conveniente para
o seu nível. Os totalitarismos, finaliza Valcárcel, “nunca
reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros”. O
absolutismo fez o mesmo, com a terrível mentira que se encerra na Razão
de Estado. Para dizer tudo com Zaratustra: “Em alguns lugares do mundo
existem ainda povos e rebanhos, mas não entre nós (…) aqui só existem
Estados. Estado? O que é isto ? Abri os ouvidos e lhes falarei da morte
dos povos. O Estado é o mais frio dos monstros frios. Ele é frio mesmo
quando mente; eis a mentira que sai de sua boca: ´Eu, o Estado, sou o
povo’. Mentira. Os criadores formaram os povos e desenrolaram sobre suas
cabeças uma fé e um amor; eles serviram a vida. Mas os destruidores
puseram armadilhas para a multidão, é o que eles chamam Estado; eles
puseram sobre suas cabeças uma espada e cem apetites. Se ainda existe um
povo, ele nada compreende do Estado e o odeia como um pecado contra a
moral e o direito. (…) Cada povo tem seu idioma do bem e do mal e o povo
visinho não o entende. Mas o Estado sabe mentir em todas as linguas do
bem e do mal e em tudo o que ele diz, mente e tudo o que possui, roubou.
Tudo nele é falso; ele morde com dentes falsos, até suas entranhas são
falsas. ( ) O Estado é o lugar onde todos estão intoxicados, bons e
máus, onde todos se dissolvem (…) onde o lento suicidio de todos é
chamado ´vida´. (…) Vede estes superfluos: eles adquirem riquezas e
apenas se tornam mais pobres. Eles querem o poder (Macht) e, antes, a
alavanca do poder, muito dinheiro —esses impotentes! Vede como eles
sobem, estes macacos ágeis. Eles sobem uns sobre os outros e se fazem
mutuamente cair na lama e no abismo. Todos querem ganhar o trono. Com
frequência é a lama que está sobre o trono, e não raro o trono está
plantado na lama. Todos loucos…seu idolo fede, este monstro frio; eles
também fedem, os idólatras…”.
Nietzsche não foi um democrata, longe disso. Mas viu coisas não
percebidas por muitos militantes que, por nada perceberem na Razão de
Estado, coonestaram horrores na Alemanha, na Itália, na URSS, no Camboja
e em muitas terras. É o que eu tinha para dizer sobre o tema. Obrigado.