Entrevistas
|
A má consciência transformada em má-fé - Entrevista com Roberto Romano |
Roberto
Romano da Silva, professor na Universidade Estadual de Campinas,
contribui, com suas idéias, com o debate que o IHU On-Line propõe na
presente edição.
Ao conceder a entrevista que segue, por e-mail, o professor afirma que é necessário ajudar os leitores e as leitoras na tarefa quase impossível de entender o que se passa no Brasil de hoje. Roberto Romano cursou o doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, França. É pós-doutor e livre docente pela Unicamp. Escreveu os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico. São Paulo: Kairós, 1979; Silêncio e Ruído. A sátira em Denis Diderot. Campinas: Ed. Unicamp, 1997; Identidade Social e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: PMPA; Conservadorismo Romântico. 2. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1997. Caldeirão de Medéia. São Paulo: Perspectiva, 2001; Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII. São Paulo: Senac Ed., 2002; e O Desafio do Islã. São Paulo: Perspectiva, 2004. De Roberto Romano já publicamos duas entrevistas, uma na 39ª edição de IHU On-Line, de 21 de outubro de 2002, e outra na 130ª edição, de 28 de fevereiro de 2005.
Ao conceder a entrevista que segue, por e-mail, o professor afirma que é necessário ajudar os leitores e as leitoras na tarefa quase impossível de entender o que se passa no Brasil de hoje. Roberto Romano cursou o doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, França. É pós-doutor e livre docente pela Unicamp. Escreveu os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico. São Paulo: Kairós, 1979; Silêncio e Ruído. A sátira em Denis Diderot. Campinas: Ed. Unicamp, 1997; Identidade Social e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: PMPA; Conservadorismo Romântico. 2. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1997. Caldeirão de Medéia. São Paulo: Perspectiva, 2001; Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII. São Paulo: Senac Ed., 2002; e O Desafio do Islã. São Paulo: Perspectiva, 2004. De Roberto Romano já publicamos duas entrevistas, uma na 39ª edição de IHU On-Line, de 21 de outubro de 2002, e outra na 130ª edição, de 28 de fevereiro de 2005.
IHU On-Line - Levando a conjuntura atual em consideração, em que medida a democracia está ameaçada no Brasil?
Roberto Romano – As democracias políticas e jurídicas não estão ameaçadas, pelo menos por enquanto. Entretanto, a democracia social ainda é um sonho de algumas organizações (igrejas, ONGs, etc.), sonho contraposto à triste realidade de um todo onde a minoria açambarca as riquezas, e a maioria segue sem os instrumentos e posses necessários para viver com dignidade e com segurança alimentar, espiritual, cultural, de saúde, etc. Esse defeito gera o que foi notado, desde Platão, nas democracias: a massa, desprovida de meios intelectuais para conhecer melhor os assuntos do Estado, vota segundo a imagem, obedecendo aos padrões da retórica ampliada com desmesura, como é o caso da propaganda que gera mitos e promove indivíduos ao plano divino. E temos Collor que iria acabar a inflação com um tiro e Lula que produziria dez milhões de empregos, etc. Além de técnicos de lavagem de cérebros como Duda Mendonça , Guanaes , etc., a ideologia da esquerda ajuda muito na gênese dos mitos políticos. A “blindagem” da figura de Lula entra na má consciência da classe média, inclusive universitária, que se sente culpada pelos bens culturais à sua disposição, o que lhe dá uma parcela (cada vez menor) dos bens materiais. Em muitos casos, sobretudo na classe média que sobe na vida por meio da política, a má consciência se transforma em má fé. Para salvar o mito e as próprias certezas, os que vivem de ideologia e se recusam a pensar o que é efetivo, investem contra os fatos. Assim, mesmo depois de o governo Lula ter optado pela política econômica mais conservadora, arrancando recursos da saúde, da educação, da segurança, semelhante esquerda ainda fala em “golpe” contra o presidente que estaria “mudando o Brasil”. Mesmo quando a evidência solar é de perfeito alinhamento com o FMI, fala em “governo que luta pela soberania nacional e contra o imperialismo”. Os slogans adquirem o estatuto de fórmulas de magia e de encantamento para exorcizar os fatos que os desmentem. É má fé em estado puro.
IHU On-Line - O exemplo do impeachment de Collor
deixou marcas profundas na política brasileira. Até que ponto é possível
comparar o que houve no governo do presidente deposto e o que hoje está
acontecendo com o governo de Lula e o PT?
Roberto Romano – Os traços gerais são semelhantes ou idênticos. É sempre o drama de um presidente eleito por milhões de votos que encontra diante de si um Congresso no qual não possui maioria confortável para aprovar seus projetos. Tal realidade dramática acompanha a República brasileira e já causou a queda de presidentes com a incidência de suicídio, renúncia, golpes. No caso de Collor, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN) era um partido sem nenhuma significação orgânica e nacional. O presidente era muito mais fraco do que Lula. O PT, embora dividido, ainda é uma agremiação com poder de fogo. Claro que as revelações e descobertas das CPIs, vindas quase todas da imprensa, podem levar o PT ao estraçalhamento. A oposição começa a abandonar a sua deliberada “blindagem” do Presidente devido a erros táticos do próprio PT. Veja-se o caso de Arthur Virgilio. Ele era um dos maiores defensores da proteção ao Presidente, tendo em vista a “governabilidade”, mas o PT insistiu na tática de se defender atacando. E insinuou, por meio de um seu deputado, que Virgilio estaria em situação irregular, no item financiamento de campanha eleitoral. A ousadia e arrogância do deputado petista encostaram o senador do PSDB na parede. E assistimos ao espetáculo de um opositor afirmando, na tribuna do Senado, que o Presidente ou é idiota ou corrupto. Sempre na tática desastrosa de defender atacando, o PT, agora na pessoa do senador Mercadante, diz que a elevação de tom de Virgilio deve-se à pesquisa de opinião que confirma a popularidade do Presidente, o sucesso da economia, as bem sucedidas relações internacionais. Essa retórica tortuosa foge do que está em debate. No caso, trata-se de um senador oposicionista que foi conduzido, pelo ataque imprudente do PT, à defesa de sua honorabilidade. Querendo salvar o PT acima de tudo, os petistas não enxergam limites. Assim, eles agiram durante o testemunho da ex-secretária de Valério, de modo truculento, quase policial. E o País todo se envergonhou quando, também de forma tortuosa, insinuaram relações amorosas entre a depoente e o suspeito. Os petistas esqueceram que a honra e o respeito à imagem não é monopólio dos parlamentares, mas que pertence igualmente aos cidadãos honestos. E a secretária foi agredida em sua honra para salvar o partido. Atacar, com insinuações, a honra de uma pessoa do sexo feminino, num país machista e patriarcalista, é pouco coerente com as noções supostamente assumidas pelo PT no plano social. Foi necessária a intervenção de uma juíza e deputada federal, a Dra. Denise Frossard, para que um mínino de respeito pela depoente voltasse à sala da CPI. Como professor de ética, fiquei profundamente embaraçado e com vergonha do que fizeram os congressistas do PT. Nada disso seria necessário. É erro ético atacar a honra alheia para garantir a própria reputação.
IHU On-Line – O Brasil tem uma história de corrupção
política. A que atribui a origem de tal comportamento na condução da
questão pública em nosso país?
Roberto Romano – Calma com o andor, que o Santo é de biscuit! Se existisse um campeonato mundial de políticos corruptos, o Brasil não seria vencedor! Na Itália, na França, na Alemanha, na Rússia (e também na extinta URSS), no Japão, nos EUA, a corrupção é imensa. Se lembrarmos de certos países, como a Indonésia, os nossos políticos são reduzidos ao estatuto de freiras piedosas e austeras. É muito ruim, em termos éticos, depreciar para além do efetivo a vida nacional. Quanto às causas desses males no Brasil, a professora Maria Sylvia Carvalho Franco, em Homens Livres na Ordem Escravocrata , clássico sobre a gênese do Estado e da sociedade brasileiros, indica vários caminhos hermenêuticos. No capítulo III daquela obra (O homem comum, a administração e o Estado), ela mostra a gênese da “ética” que norteia os nossos costumes políticos. A professora foi convidada pela Unisinos e estará na Universidade no final de 2005, para comentar o seu livro . Eu diria, todavia, o seguinte, do que entendi de sua demonstração: o poder central, desde o início do Brasil independente, precisou arcar com despesas para manter um território imenso. Assim, ele tira impostos dos municípios, que, na sua maioria, estão distantes, espacialmente, do centro, o Rio de Janeiro. Os impostos seguem para os ministérios econômicos e depois retornam aos municípios, “emagrecidos”. Como as maiores despesas do orçamento e das políticas públicas são as locais, os municípios ficam condenados à permanente miséria ou quase inadimplência. Em muitos municípios, os “homens bons”, os fazendeiros ricos, tiram dinheiro de seu bolso para fazer obras (estradas, escolas, etc.). Forma-se a lógica da indistinção entre o dinheiro público, que está no cofre do município, e o privado, nos bolsos dos vereadores e prefeitos. Com o tempo, claro, os últimos deixam de colocar seu dinheiro nos cofres públicos, mas sentem-se autorizados a pegar recursos do município para suas campanhas, etc. Outro ponto: com a distância entre municípios e poder central, para conseguir obter pelo menos parcela dos impostos, foram organizadas instituições que servissem como intermediárias. As oligarquias regionais cumprem esse papel. Os deputados e senadores ligados às oligarquias negociam seu apoio ao poder central em troca de recursos para suas regiões. Até hoje, essa prática é sancionada positivamente pelos eleitores. Para eles, bom deputado federal ou senador é o que traz obras para a região. Não se pergunta, entre os eleitores que se julgam “puros” e “enojados pela política”, sobre o preço dessas obras, ou seja, a corrupção do “é dando que se recebe”. A análise da Dra. Carvalho Franco é mais minuciosa e mais sofisticada. Creio, contudo, que o essencial foi resumido por mim aqui. Penso que tentar entender a gênese e a prática da corrupção por esta via ajuda mais do que atacar subjetividades ou arengar sobre moralidades abstratas.
IHU On-Line - A corrupção gera e aprofunda uma
postura de revolta e negação da política entre os cidadãos. Seria ela um
elemento niilista dentro da sociedade? Como superar esse desencanto do
povo na participação e na construção de seu futuro?
Roberto Romano – Em situações de niilismo fabricado é preciso recusar a má consciência e a má fé moralista. O farisaísmo que proclama que apenas “a nossa gente” é pura, causa desastres. Não esqueçamos que a tese de que “eleições”, “partidos políticos”, etc. são corruptos tem origem na contra-revolução romântica do século XIX, na qual o positivismo comteano é relevante. Para o positivismo, a prática da democracia eleitoral corresponde à idade metafísica, a ser substituída pelo comando dos intelectuais e industriais. Como não tem mais razão de ser, as eleições que perduram, trazem, necessariamente, a corrupção dos costumes. No Brasil, a propaganda positivista contra a democracia eleitoral foi eficaz, fazendo com que se produzisse a imagem da política como corrupta essencialmente. O resultado dessa calúnia ao voto-cidadão é a tese da ditadura. E este fantasma, que move desejos inclusive das massas, o desejo da ditadura, é a grande ameaça. Vivemos a maior parte do século XX sob ditaduras e, nelas, intelectuais “competentes” decidiram pelo eleitorado. O desastre, inclusive econômico, deveria prevenir análises superficiais e slogans contra a democracia.
IHU On-Line - O filósofo Emmanuel Kant afirmava que o
agir humano é pautado pela boa-vontade, fundamento da liberdade do
homem, que é livre porque cumpre seu dever. Em Thomas Hobbes, "o homem é
lobo do homem", quando se vive uma guerra de todos contra todos.
Através de quais prismas o senhor explica o comportamento corrupto na
política?
Roberto Romano – Procurei entender essas aporias e as diferenças entre Hobbes e Kant num texto recente que integra a edição do Projeto de Paz Perpétua publicada pelo Dr. J. Guinsburg na Editora Perspectiva . De modo geral, o universo “físico e anímico” segue inexoravelmente para a morte. A “corrupção” é uma das expressões dessa morte. A razão e a liberdade procuram retardá-la e dar-lhe um sentido, bem como à vida. A política eticamente correta opera tendo em vista essa luta pelo sentido, para bem utilizar o tempo que nos resta como humanidade, povo, indivíduo. A política “corrupta” é a rendição à morte, ao esgarçamento que nos assola. Ela é perda de autocontrole dos que vivem na política. Eles, com a corrupção assumida, tornam-se pacientes e transmissores da morte e diminuem a vida dos seres humanos que neles confiam. Jamais será produzido um Estado que possa impedir a marcha da morte universal. Entretanto, enquanto vivermos é preciso que o Estado nos permita enfrentar e vencer (mesmo que tenhamos plena consciência de que esta vitória é sempre limitada) os sinais da morte espiritual, produzindo meios de educação da inteligência e da fé, da morte biológica, com a ciência e a medicina, da morte civil com a segurança da polícia e do exército. O Estado, ele próprio, é um meio para preservar o quanto possível a vida que está em nós.