domingo, 22 de março de 2009

Ao ler o post gentil de Oterco, no It's about Nothing sobre minhas opiniões relativas ao privilégio de foro e outros desaforos que a cidadania honesta suporta da suas excelências, recordei o artigo abaixo, publicado na Folha em 2000.

Como resultado do escrito, recebi uma saraivada de ataques. E poucos apoios, como sempre, salvo o que coloquei aqui, logo depois do artigo, saído no Painel do Leitor da Folha. Pouco depois fui convidado para falar em Congresso de magistrados, na cidade de Campos do Jordão. Um dos criticados por mim estava na mesa. Acostumado ao debate democrático, não me importei. Mas notara certa agitação dos que nos convidaram para o congresso. Entendi depois.

Ao referido iluminado, atingido pelas minhas palavras no artigo "Nós, os leigos", foi dada a palavra antes de mim. Ele passou quase uma hora me verberando, ensinando para este calejado professor de filosofia os rudimentos da doutrina kantiana e outras maravilhas estudadas nos primeiros anos escolares. Ficou mais do que clara a vendetta. Detalhe: o coordenador da mesa, quando ao me passar o microfone, comunicou que eu teria "no máximo" dez minutos para a minha fala (preparada com esmero, dada a consideração que mantinha até então pelos magistrados) e para a resposta ao oportunista que aproveitou uma brecha para "responder"sem nada responder, que usou tempo enorme apenas para sanar o prestígio abalado pelo meu artigo.

Protestei contra o privilégio injusto e descabido. Mas o dito sacerdote do direito tinha sido professor de meia sala no evento. Logo, quase nada pude dizer, apenas o protesto contra a falta de ética e de justiça, numa reunião de juízes. Aproveitei pelo menos os segundos que me deram para reiterar ao meu atacante que ele tinha dito banalidades dignas de enrubescer um aluno de primeiro ano, no curso filosófico. Nunca mais aceitei convites diretos dos magníficos enviezados, mas exultei, porque a violência do ataque mostrou que eu tinha ida ao nervo dolorido.

Hoje, um deles foi atacado pela Folha de São Paulo. Colegas me sondaram para ver se eu assinaria um manifesto contra a Folha, em defesa do referido docente. Não assinei. É bom que as pessoas saibam respeitar os outros seres humanos. E também é bom que sofram ataques, para que a couraça grosseira que os cobre se atenue um pouco. Quem ri por último...
RR





São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 2000







ROBERTO ROMANO

Nós, os leigos

"Leigos em Direito (...) têm a tendência de falar sobre ele com uma desenvoltura que não teriam se se tratasse de medicina ou de antropologia. Por isso, além de "julgar" os casos de acordo com o "clamor público" -que é o mesmo que leva a linchamentos-, ainda "julgam o julgador", esquecendo que, no Estado de Direito, paga-se um preço pela garantia de todos e de cada um, de tal forma que só após a conclusão de um processo regular é que se pode obter uma certeza jurídica." (Américo Lacombe, Celso Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, Folha, 10/8)


Prezados juristas , porque fomos invocados no artigo de vossas senhorias, pedimos vênia para nos apresentar. Nós, os leigos, temos uma história muito antiga. Na Grécia, éramos conhecidos como "laós", em oposição aos nossos chefes. É verdade que também fomos identificados por um nome de maior prestígio, "demos". As funções arriscadas da cidade eram nossas, especialmente a de lutar com nossas armas, prestando a chamada liturgia em prol dos concidadãos. Não temos muita idéia (nos apontam como ignaros) das causas que nos transformaram de povo em plebe. Primeiro nos alcunharam como "os muitos", opostos aos "melhores". Em Roma, disseram que éramos o "improbante populo", ou a "imperita plebs". Os grandes do universo nos bajulavam, mas tinham nojo de nossa presença.

Veio a Igreja Católica e passamos a constituir um tipo de gente menor, sem qualificações plenas para viver, por nossos próprios méritos, na terra. Recebemos todos o epíteto de "laicus", em oposição, como no Egito dos faraós, aos sacerdotes. Justiniano consagrou esse insulto singular no seu código. Dionísio Areopagita imaginou o universo como imensa hierarquia, dos arcanjos aos padres. Fomos relegados à base da escada celeste. Leigo era sinônimo de pura tolice. Certo dia, um poeta e crítico dos padres, Dante Alighieri, começou, com outros escritores, a louvar uma política não-sacralizada. O poder, dizia ele, deve ser secular. Sacerdotes e teólogos o perseguiram por meios interpostos.

A partir dessa época, as coisas pioraram para os donos do saber e do poder sacerdotal. Lutero incomodou muito aqueles senhores dizendo que nós, os leigos, éramos sacerdotes! Ainda ouvimos as frases do antigo monge: "Über das sind wir Priester". Deus nos acuda: a patuléia elevada ao estado sacerdotal! O reformador se referia, às vezes, à nossa pessoa como "o senhor todo mundo", com desprezo. Mas, a partir daí, homens de cabeça quente começaram a escrever (e nas doutrinas do direito!) que somos a fonte da soberania. E que, numa República, constituímos a vida. Tais homens não possuíam nem um átimo sequer do grande saber jurídico brasileiro do século 20, seu nome era modesto, como certo Althusius.


Os grandes do universo nos bajulavam, mas tinham nojo de nossa presença

No século 18, uma revolução foi feita para apagar os resquícios do mando clerical sobre a política. Nas mudanças trazidas por ela, o princípio de igualdade e de nossa soberania foi definido e proclamado. O nome de Rousseau surgiu em todas as bocas. Com ele, a condenação de todas as corporações que pudessem usurpar as prerrogativas nossas, os soberanos. Não mais cabia a distinção clerical entre "leigos" e "sapientes". Mas os contra-revolucionários do Termidor disseram que o povo nada sabia dos assuntos de Estado. Um deles, D'Anglas, retomou a idéia de que homens sem propriedades, de coisas ou de saberes, seriam nocivos à vida pública. E vieram os engenheiros positivistas da sociedade, os novos advogados. O romantismo conservador viu em nós "eternas crianças", como o poeta Novalis, grande entusiasta da ressacralização política.

Assistimos, os leigos, às lutas ao redor da boa definição republicana. De um canto, alguns nos jogam fora do Estado e de sua gerência, pois confiam apenas nas elites, treinadas em economia, leis, direito. De outro, existem os sonhadores, ou tolos, que asseguram ser a democracia o império dos leigos, um ideal sublime. Temos aliados na imprensa, entre promotores e procuradores públicos (afinal, público também se liga a povo...). Mas eles sempre recebem insultos dos sacerdotes jurídicos e econômicos, quando não dos eclesiásticos, para que deixem a mania de tudo pesquisar segundo os nossos interesses. Com isso, seguimos ignorando o nosso papel no mundo. A nossa única certeza é não mais confiar nas falas sagradas e "infalíveis" dos que fizeram esta monstruosidade que aí está, e que eles chamam "democracia" ou "Estado de Direito", expulsando o juízo do povo. Por falta de nossa confiança, tornou-se ingovernável a República. Mas essa é uma outra lenda, da qual falaremos um dia. Por enquanto fica o nosso testemunho do mais profundo respeito pelas vossas figuras jurídicas, apesar da arrogante amostra de sacralidade corporativa, evidenciada no vosso último artigo coletivo.



Roberto Romano, 54, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).




São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 2000







PAINEL DO LEITOR

Em defesa dos leigos
"Comovente o artigo de ontem de Roberto Romano ("Tendências/Debates'). Desde quando um douto sábio afirmou que "quem crucificou Cristo foi a opinião pública", faltava uma grande resposta para nos defender à altura. Obrigado, Romano."
Rogério Bonsaver (São Paulo, SP)