sábado, 28 de março de 2009

O artigo, sem as imagens, publicado na Revista de Economia Mackenzie.

Reflexões sobre impostos e raison d´État.

Roberto Romano


Com o fim da URSS e o consequente desequilíbrio do poder mundial, as várias formas dos mais importantes estados entraram em crise profunda. Os organismos internacionais —sobretudo os que definem as atividades econômicas— enfrentam a tese da soberania estatal reduzida ao mínimo. Este ideário, presente em vários sistemas do século 18 (contra o aparato religioso e despótico do Antigo Regime) radicalizou-se após os desastres do nazismo, do fascismo e do stalinismo no século 20. Filósofos dessa tradição liberal, sobretudo Karl Popper (1) e Ernst Cassiser,(2) tentaram evidenciar que o Estado em excesso estaria na base do totalitarismo. Semelhante planta venenosa não surgiu, no seu entender, de um instante para outro, mas deita raízes na história da cultura política européia. Popper e Cassirer indicam Platão como o semeador do governo que destrói a liberdade dos indivíduos e dos grupos.

Na retórica contrária ao estado, a tese que mais retorna é a dos impostos que seriam um obstáculo à produção e ao mercado, gerando pobreza material e servilismo político. Todos os governos conservadores (e alguns progressistas) foram eleitos prometendo drástica diminuição da carga tributária. Se não cumprem esta façanha, nenhum dos agrupamentos que os apoia assume a incoerência entre o dito e o feito. A questão dos impostos integra os aspectos que definiram a própria raison d´ état moderna. Impostos seriam a seiva que nutre o organismo estatal, o alimento de um ente monstruoso, a máquina de constrangimento coletivo.


Se a essência estatal assumiu no século 20 uma densidade inaudita na história política da humanidade —com as tentativas (3) totalitárias— é preciso também recordar que naquele século, no plano teórico, surge o dilema enunciado por Max Weber. Se a burocracia é o destino do mundo e a razão calculadora tomou posse da política e da economia, a política desaparece. O Estado transforma-se num maquinismo planificador que funciona como se fosse máquina, seguindo o paradigma hobbesiano. O desalento diante deste obstáculo, evidente em Weber, foi acolhido pelos seus ouvintes de vários modos. G. Luckacs viu na revolução proletária mundial, baseada na vontade das massas, o antídoto para o “poder dos escritórios”. No outro extremo da “ferradura ideológica” (4) Carl Schmitt indicou na vontade do chefe o caminho da salvação para o ato político. O caminho do Estado soviético e nazista foi complexo e cheio de desvios, bem mais do que no sonho daqueles teóricos. (5)

A burocracia recrudesceu, mesmo após as aventuras totalitárias e o breve interregno antes da Guerra Fria, quando foi instituida a ONU. Hoje o Estado máquina, posto como ameaça às liberdades, a começar com a econômica, é exorcizado nos EUA, federação que mantem, com a burocracia civil ligada à “comunidade de informações” extensa e indomada, poderosa força militar que o ajuda —e não raro, como no caso do Iraque, aumenta seus problemas— no controle de seus interesses mundiais.

A metáfora da máquina para pensar o estado é antiga como a filosofia ocidental. Desde Platão pelo menos, a idéia de que o universo físico e humano constituem instrumentos produzidos com arte e técnica, os quais devem ser dirigidos por sábios competentes, habita as mais importantes teorias políticas. Basta que se pense em Thomas Hobbes. Esta maneira de imaginar os entes políticos e sociais foi recusada de modo peremptório no pensamento conservador e reacionário do século 19 e inícios do século 20. Não por acaso Platão é visto como o marco inicial do totalitarismo pelas filosofias românticas e nas teses liberais e neo-liberais de nosso tempo. O estado máquina é um desafio importante da política: não por acaso Platão o ideou contra a democracia ateniense, lugar onde nasceu a nossa sensibilidade política. Confiantes na eficácia dessa polis dirigida pelos sábios (máquina de viver em comum é a melhor definição da República platônica), contra a instabilidade das assembléias cidadãs, os grandes nomes do pensamento político não tiveram dúvidas.O impulso do cálculo e do automatismo que aniquila a política em nome da eficácia atravessou os séculos e se ofereceu para Weber —quando este último caracterizou o estado e a sociedade burocraticos— na figura da fábrica onde todas as conexões são artificiais e mecânicas. A essência burocrática seria o resultado lógico dos séculos de razão mecânica.(6)

As metáforas do organismo, apresentadas contra o ideário mecânico pelos conservadores românticos e por seus herdeiros, quando aplicadas ao político modificam a lógica da razão mecânica e, por conseguinte, a razão de Estado. (7) É preciso cautela quando se adianta que a noção de racionalidade mecânica (como o fazem os polêmicos Cassirer e Popper) pode conduzir à raison d´État no sentido totalitário. Em primeiro lugar, considere-se o amalgama de figurações —orgânicas, mecânicas— que nutriram todos os pensamentos políticos do Ocidente. (8) Em segundo, porque mesmo em livros fundamentais na elaboração da racionalidade moderna, como a Enciclopédia arrazoada de artes e de ofícios, de Diderot e d´Alembert (obra coletiva que defende ao máximo a tese do mecanismo e que deu impulso máximo à razão mecânica) existe uma séria crítica à razão de Estado, com o uso da metáfora corporal para descrever aquela instituição.

Se consultamos o verbete “Raison d´Etat” da Encyclopédie (redigido por Jaucourt, mas revisado por Diderot), percebemos que a própria exposição daquela idéia já é crítica. “Alguns autores acreditaram que existem ocasiões nas quais os soberanos eram autorizados a fugir das leis severas da probidade, e que o bem do Estado que eles governam lhes permite agir de modo injusto diante de outros estados, e que a vantagem de seu povo justificaria a irregularidade de suas ações”. Assim, no introito do artigo as frases postas no condicional mostram a suspeita do autor na doutrina formulada desde a Renascença. Diderot e seus colaboradores sempre tiveram relações muito difíceis, para não dizer claramente conflituosas, com Frederico o grande da Prússia e Catarina 2, os supostos “monarcas esclarecidos”. (9)

As injustiças, continua o verbete, “autorizadas pela raison d´état, consistem em invadir o território de um visinho cujas disposições são suspeitas, apossar-se de sua pessoa, privá-la das vantagens a que tem direito sem motivo confessado ou sem declaração de guerra”. A descrição dos atos subsumidos sobre a razão de Estado, como vemos, do século 18 ao nosso, é constante. A retórica empregada na justificação da raison d´État é a mesma. Adianta o texto: “Os que sustentam uma idéia tão estranha (eu sublinho, RR), a fundamentam no principio de que os soberanos devem procurar tudo o que pode fazer feliz e tranquilos os povos que lhes são submetidos, e têm o direito de usar todos os meios que levam ao fim salutar”. Temos aí, resumida, de modo claro e distinto, a essência do cálculo estatal.

Mas seguem-se as propostas de remédio para o problema: “por mais especioso que seja o motivo (a felicidade e a segurança tranqüila dos povos, RR) é muito importante para a felicidade do mundo (eu sublinho, RR), encerrá-lo en justas barreiras: é certo que um soberano deve procurar tudo o que tende ao conforto da sociedade por ele governada; mas não pode ser à custa dos outros povos. As nações, assim como os particulares, têm direitos recíprocos. Sem isto, todos os soberanos, tendo os mesmos direitos, estariam num estado de desconfiança e de guerra contínua”. Conclusão do verbete: “os representantes dos povos, não mais do que os indivíduos na sociedade, não podem isentar a si mesmos das leis da honra e da probidade. Seria abrir as portas para a desordem universal estabelecer a máxima que destruiria os vínculos entre as nações, e que exporia as mais fracas às opressões das mais fortes. Tais injustiças não podem ser permitidas, qualquer que seja o nome que se use para disfarçá-las”.

A lição hobbesiana é conhecida pelo autor da Encyclopédie, mas não aceita por ele. Sim, existe uma guerra permanente entre os estados,mas é preciso pensar na ordem (a verdadeira racionalidade) e na paz cósmica. Se consultarmos a definição de estado, na mesma obra, vemos que o autor colheu, com muita precisão na idéia do ser político, algo assumido apenas em um prisma pelos defensores da razão de Estado. Segundo estes últimos, a plena astúcia e força, usadas sem regra nem lei pelos soberanos, justifica-se pela segurança e felicidade dos súditos. Mas o ser político, pensa o enciclopedista, não é feito tendo em vista apenas aqueles pontos: estado, escreve ele, “designa uma sociedade de homens vivento juntos sob um governo qualquer, felizes ou infelizes (eu sublinho, RR).
Se um povo é infeliz nos limites de suas terras, não é pela conquista ou invasão de outros que ele alcança a sua beatitude. E o estado onde as pessoas são infelizes também é um ente perfeito.

Logo após essa declaração política fundamental, lemos no verbete a definição do estado como um organismo. Importa citar este passo porque, como sabemos, a Encyclopédie é um monumento do pensamento mecânico, sendo o lugar por excelência do culto a Francis Bacon e a Isaac Newton (mais do que nos escritos de Voltaire).

“Pode-se considerar o estado como uma pessoa moral, cuja cabeça é o soberano e os particulares são os membros. Como resultado atribui-se a esta pessoas certas ações que lhes são próprias, certos direitos distintos dos que são usufruídos pelos pelos cidadãos individuais e que estes últimos não podem se arrogar. Esta união de muitas pessoas num só corpo, produzida pelo concurso das vontades e das forças de cada particular, distingue o estado da multidão, pois esta é apenas um ajuntamento de muitas pessoas, na qual cada uma delas tem uma vontade particular. Enquanto isto, o estado é uma sociedade animada por uma só alma, a qual dirige todos os movimentos de modo constante, no relativo à utilidade comum. Eis o estado feliz por excelência. Seria preciso para formar este estado, que a multidão dos homens fosse unida de um modo tão particular, que a conservação de uns dependesse da conservação dos outros, para que eles estivessem na necessidade de se entre-socorrer. E que por esta união de forças e de interesses, eles pudessem afastar os insultos dos quais cada um, em particular, não poderia se defender, obrigando ao dever os que dele querem se afastar, e obter assim o bem comum.”.

Com essa imagem arcaica do corpo político, figura por excelência das idealizações organicistas que definirão o romantismo futuro, o escritor do verbete (trata-se de Jaucourt) recolhe o tema por excelência da raison d´état, a idéia de que o soberano precisa conhecer bem o corpo político em cada uma de suas partes e no seu todo, para bem governar. A causa desta necessidade também é dita por Jaucourt: “ocorre no corpo político como no corpo humano, nele pode-se distinguir um estado sadio e bem constituído e um estado onde reina a doença. Seus males vêm do abuso do poder pelo soberano, ou da má constituição do estado. É preciso buscar a causa nos defeitos nos vícios dos que governam ou nos vícios do governo”.

Não é o lugar, aqui, de seguir a suposta corporeidade do estado, com as suas doenças. Desde os escritos hipocráticos, dos quais herdamos conceitos estratégicos da política (a idéia de regime, de constituição, etc) até os grandes textos platônicos, aristotélicos, estoicos, epicuristas, passando pelo Renascimento e atingindo o idealismo e materialismo dos séculos 19 e 20, a metáfora da doença é das mais constantes para designar as dificuldades no ordenamento do estado e da sociedade civil. (10)

A idéia mesma da raison d´état surge a partir da necessidade, para o dirigente, de ter acesso imediato a cada um dos focos possíveis da “doença” estatal.

O padre Athanasius Kircher, jesuita dedicado ao conjunto das ciências úteis à Igreja e ao estado, sintetiza de modo perfeito a tentativa de tudo conhecer, pelo governante, unindo propostas técnicas imaginárias de controle dos governados por meio de instrumentos opticos e auditivos. Por exemplo, na conhecida figura abaixo:

É preciso ouvir, se o principe está no seu gabinete, o que os governados dizem de modo a captar, antes que rebeliões ocorram, o estado dos negócios e a disposição espiritual do corpo político. Note-se que a escuta é um dos elementos mais antigos da prática médica, sendo exposto no Corpus hippocraticum com muita acuidade. Dois lados na mesma representação: no plano da optica, o dirigido deve ser o mais transparente ao governante e este, com a prática do segredo, deve ser o mais invisível ao dirigido. (11)

Se existe um corpo doente, o “médico” governante deve se prevenir e não deixar-se enganar pelo mal universalizado. Como diz um comentarista do Cardeal Mazzarino, para boa parte do pensamento político moderno, herdeiro do maquiavelismo, a assimetria entre os dirigidos e os dirigentes deve partir da pretensa imersão dos primeiros no campo doentio e da pretensa saúde dos segundos. “A presença do mal é como um foco subterrâneo e profundo (…). O homem é corrompido mas desta certeza parte não a recusa da ação, mas a própria ação porque o político, como a raposa, inaugura o seu difícil jogo com a sociedade que ele teme. O corpo está adoecido. Esta doença tem fases alternadas , umas escondidas e outras apenas aparentes, umas graves e de absoluta evidência. É preciso que o político esteja sadio, ele precisa tudo fazer para não se contagiar (…) para fazer da doença dos outros a sua própria saúde. E o político tudo fará para não sucumbir”. (12)

Além de todos os recursos técnicos surgidos no Renascimento, como a criptografia, os meios opticos e auditivos, a necessidade de controle do corpo social pelos dirigentes utilizou instrumentos que atingiram o fundo mesmo da alma social. Pode-se dizer que as “pesquisas de opinião” já se combinaram, desde pelo menos a Contra-reforma, para captar as disposições anímicas dos dirigidos e as suas riquezas materiais. Em ambos os casos, a busca dos dados estatísticos e a computação serviram para acrescentar o conhecimento, pelo governante, das supostas “doenças” sociais, e das providências para reforçar o caixa dos governos. O controle das idéias e das riquezas foi uma tarefa conduzida em séculos de experimentos de governo pela razão de estado.

Como em quase todos os setores do estado ocidental, os paradigmas iniciais de pesquisa e de controle foram oferecidos pela Igreja Católica. Esta última, após a Reforma protestante, enfrentou uma crise profunda na governabilidade dos fiéis. Como saber, com certeza, se um católico nominal seguia de fato as determinações hierárquicas? Como prevenir o corpus mysticum das “doenças” como o protestantismo, o livre pensamento, o ateísmo? Todas estas perguntas ligam-se à uma outra, bem mais fundamental: como prevenir a “doença” da secularização absoluta do mundo, a começar com a do poder político? Esta passagem do mando sacral ao secularismo, também é assunto extenso e com enorme bibliografia. Dentre os inúmeros estudos sobre o tema, o de Ernst Kantorowicks é dos mais sugestivos.

Esse autor mostra, com maior ou menor acuidado e documentação, que alguns pontos nodais das representações religiosas foram “traduzidas” ao mundo político. Em primeiro lugar, a própria idéia do estado como um corpo, à semelhança do corpo eclesiástico (segundo a figura adiantada por Paulo Apóstolo em I Corintios, 12:12). Mas outras translações imagéticas são mais curiosas. Sabe-se o quanto as tensões entre Igreja e Estado nacional que nascia foram norteadas pelo combate ao redor dos recursos economicos carreados para a instituição eclesiástica (dizimos, doações de bens materiais dos fiéis, etc) e desejados pelos reinos, sobretudo na Inglaterra e na França. (13)

Nessa luta entre a Igreja e os estados nacionais, os juristas dos segundos se apropriaram de noções antes reservadas apenas para o campo religioso, como a de um corpus Reipublicae mysticum, Cito o próprio Kantorowicks: “Christus e fiscus tornaram-se comparáveis face à inalienabilidade e prescrição. A base jurídica desta ´equiparação´ foi encontrada em muitas passagens do Direito romano, por exemplo no Código de Justiniano onde os pertences dos templa, as igrejas, eram considerados em pé de igualdade com coisas que pertenciam ao sacrum dominium do imperador. De acordo com este ponto, os juristas falaram em sacratissimus fiscus ou fiscus sanctissimus, uma frase que tem um curioso som apenas para os ouvidos modernos”. Como o Cristo, o fisco pode ser dito onipresente no tempo e no espaço, sendo a fonte de vida do corpo inteiro do estado. Ele é mesmo similar, em vários autores (citados por Kantorowicks) ao estômago no “corpo” estatal. A imagem, como é sabido, vem da fábula de Menenius Agrippa, exaustivamente utilizada pelo pensamento aristocrático contra a reivindicações da burguesia e dos setores mais “negativamente privilegiados” da história política da Europa. (14)

Se o fisco é sacratíssimo, e se ele é imortal e onipresente, resta no entanto, que ele precisa ser retomado a cada novo dia, com os procedimentos litúrgicos apropriados. Mas se é a fonte de onde emana a vida do estado, onde busca o fisco o sua próprio alimento? Nas riquezas do reino e da igreja, alojadas em última instancia nos bens dos homens. A Igreja católica não conhecia aqueles bens, pois desconhecia inclusive o modus vivendi dos seus fiéis. Desastres que ameaçaram o seu império, como a venda de indulgências no século 16, foram em boa parte devidos a este desconhecimento das fontes de onde emanavam as riquezas. As rimas do monge Tetzel, “Sobald das Geld im Kasten Klingt/Die seele aus dem Fegfeuer springt" (Quando a moeda no cofre ressoar/A alma do purgatório vai saltar), não foram nenhuma solução para o problema dos fundos que deveriam manter a igreja. A crítica de Lutero atingiu em cheio, não apenas a simonia, mas também a ignorância do organismo católico sobre as suas próprias bases sociais.

Problema semelhante enfrentou o Estado, quando precisou buscar, além das expropriações dos bens eclesiásticos, as fontes da riqueza para taxá-las. Desconfiança enorme acolheu as primeiras investidas dos governos para conhecer o potencial dos reinos no campo dos impostos.

Técnicas muito próximas entre só foram empregadas pela Igreja e pelos estados para conhecer o mundo civil e suas riquezas. Indicarei a seguir, rapidamente, os dois caminhos daquelas instituições para tornar visíveis os “corpos” das sociedades.

No caso da Igreja Católica, a Reforma e a secularização do mundo político impulsinou, após o concílio de Trento, uma pesquisa constante das bases materiais e espirituais do mundo social. Enquanto a confissão protestante insiste na invisibilidade da consciência do crente, essencial para a liberdade do cristão (15) o catolicismo tridentino exasperou a visibilidade da comunhão religiosa e política de seu mando. Assim, para o cardeal Bellarmino, a Igreja seria “tão visível quanto a república de Veneza”. Isto em tese, mas como atingir a consciência dos fiéis, evitando que eles se escondessem dos padres e bispos (“adocendo de protestantismo, ateísmo, secularismo) e escondessem seus recursos no pagamento dos dizimos e de outros emolumentos sacrais?

O Concilio de Trento (1543-1563) obriga os padres a conhecer melhor as suas ovelhas, traçando o mapa da paróquia onde militam. São os famosos “registros do estado das almas” idealizados por Carlos Borromeu, promovido aos altares pela Igreja. (16) . O escrito fundamental de Borromeu neste âmbito é o Liber status animarum, onde se encontra, por assim dizer, o “programa” para a coleta dos dados sobre o corpo social, dados que deveriam ser remetidos todos os anos ao bispo, o qual os enviaria aos governantes da Igreja.

Após a Reforma e com as “doenças” do ateísmo e do ceticismo, a Igreja empreende, então, “olhar” o que se esconde no corpo da sociedade que supostamente lhe está submetida. Como o santuário da consciência, também supostamente, não pode ser invadido de maneira direta, o Liber status animarum é uma estratégica para fotografar o indivíduo por intermédio de suas relações com os demais, a começar no plano da família.

Vejamos a seguir como Carlos Borromeu ideou o fosmulários para a coleta dos dados. Na figura abaixo, a lógica inteira da pesquisa é imediatamente acessível:


In. Dagognet, F. Philosophie de l´image, página 202.


E então, a ficha utilizada até o século 20:


François Dagognet: Philosophie de l´Image, página 204.

Quais são as marcas principais dos formulários acima? Em primeiro lugar, eles, conforme indica F. Dagognet, proporcionam um contabilidade meticulosa das condutas humanas. Em segundo, fornecem meios abreviativos que permitem um reagrupamento fácil das informações: uma simples cruz significa que o paroquiano foi crismado, por exemplo, um 0 que ele não o foi. “Como nota o melhor conhecedor e historiador, Georges Couton, (….) ´a ficha mecanográfica está pronta, falta inventar a perfuração. O tempo dos gráficos, das estatísticas, dos computadores, poderia começar´. (17) . Em terceiro lugar, fornecem os formulários respondidos dados sobre a família, a profissão, a rua, as casas, etc. Em quarto lugar, a notação, na margem do livro, das situações mais notáveis: as pessoas escandalosas, os blasfemos, os adúlteros, os que vivem em concubinato, pessoas em noivado mas que já habitam a mesma casa, os usurários públicos, os maridos separados de suas mulheres, etc. A grande cautela é assinalada no próprio “manual de instrução” dos formulários : “tomar cuidado para nada escrever que possa de algum modo prejudicar a reputação das pessoas, e mais ainda de algo que possa de algum modo desvelar os conhecimentos adquiridos na confissão”

Assim se desenha um verdadeiro mapa do social, identificando os lugares onde se instalam os libertinos, os luteranos, ao lado dos “vendedores de sortilégios, os artistas de teatro, as senhoras de pequena virtude, os traficantes”. Trata-se, nestes inquéritos, de um momento da burocratização quase militar (e os jesuístas estão na ordem do dia…) da Igreja Católica, em pé de guerra contra o mundo moderno, reformado ou secularizado.

Claro que muitos padres consideraram esta obrigação de mapear suas ovelhas como algo inútil, papelório excessivo. Mas é com base em cada um dos formulários que as autoridades católicas fazem uma contabilidade dos bens materiais e espirituais ao seu dispor. De um lado, os formulários fazem um balanço dos atos religiosos (batismo, crisma, casamento, exéquias), indicando a sua frequência em alguns lugares e a sua ausência em outros. Se o “sinal vermelho” aparecia, a pregação e os cuidados pastorais priorizavam o espaço onde os luteranos, os ateus, e demais concorrentes da Igreja obtinham êxitos. Mas os dados sobre o religioso se cruzam, no mesmo Livro do estado das almas, com outros, dando conta dos nascimentos, casamentos, mortes. Estes dados permitem seguir os elementos que entram na ordem de cada ato social, como a herança, os dotes, as brigas ao redor da passagem da riqueza. Esta tarefa era facilitada para os padres, porque eles tinham o controle das minutas do estado civil. Luis XIV chegou a ordenar (o Código Luis) regras estritas para o preenchimento dos registros em vários exemplares.

A Igreja católica, com esse aparato técnico e computacional, adiantou-se ao estado, definindo a raison de l´église antes da moderna raison d´état. Num só instante ela ficava sabendo as zonas de sombra onde seu domínio era contestado ou difícil, e os lugares onde ela reinava inconteste. Também ficava sabendo muitas coisas sobre os recursos materiais dos fiéis, o que lhe permitia estimar de modo menos desastrado do que antes da Reforma, o que poderia ser deles extraído, sem o escândalo da simonia denunciada por Lutero e pelos libertinos.


As lutas entre os poderes religiosos e os civís, para estabelecer com predominância o seu domínio no mesmo espaço social e político, exigiram das duas instituições, a Igreja católica e os estados absolutistas, aumentar o conhecimento de seus recursos para exercer a sua manutenção material, via taxas, emolumentos, dizimos, etc. Vimos como a Igreja definiu o seu caminho para tornar transparentes os fiéis à uma hierarquia que os “pastoreia” segundo regras de controle morais, políticos, ideológicos. O caso dos estados e do fisco segue uma dialética muito similar.

Se no caso eclesiástico seguimos o texto de Carlos Borromeu, com a análise de François Dagognet, agora acompanho o trabalho de Dominique Reynié “O olhar soberano, estatística social e razão de Estado do século XVI ao XVIII”.

Os momentos decisivos do estado moderno, a sua inauguração enquanto poder secular e sem a tutela religiosa, se inicia com a necessidade urgente de saber sobre o que e sobre quem reinava o principe. As primeiras “receitas” de transparência, neste sentido, foram fornecidas por escritores que, mesmo sem pertencer mais à Igreja católica, percebiam a carência de conhecimentos sobre o “corpo” social, da parte dos soberanos. É o caso de Nicolas de Montand, que prega uma espécie de desvelamento do social, seguindo um imaginário optico, mas com muita proximidade ao Liber status animarum. Assim, diz ele, baseado na fórmula de Bodin (a casa do tribuno Drusus, edificada para que todos pudessem vê-lo em seu interior ou exterior, por este motivo Drusus foi proclamado sanctus et integer) (19) é com base na visibilidade do governante que se pode alcançar a visibilidade dos governados. O primeiro é como “um cristal que tem a propriedade de penetrar todos os cantos e limites do Reino. Sua claridade atravessa as trevasm arruinam a obscuridade, e mostra os homens viciosos, inimigos de Deus, blasfemos, epicuristas, sardanapalos, ateus, sodomitas, assassinos e ladrões, massacradores, enganadores, e pallhaços de corte”. (20)

Na busca dessa transparência, dá-se também a procura dos indivíduos que vivem de modo não ortodoxo. Mas para chegar até eles, é preciso saber onde habitam os súditos do reino no seu todo, e quem são eles. Mas, adianta Reynié, “dizer a população do reino, dar a superfície do território não são coisas fáceis”. Reynié deixa implícito, mas os estados modernos, saídos a forceps do feudalismo e do controle eclesiástico, tinham fronteiras indefinidas, não raro sofriam o efeito “sanfona”, ora expandiam-se num sentido, ora noutro, ora retraiam-se num lugar, ora noutro. Mesmo nos territórios mais seguros para o governante, os números eram errados ou fantasiosos.

E a pesquisa demográfica assume, a partir desse ponto, lugar estratégico, empurrada sobretudo por um projeto fiscal. Nas Crônicas da França, escritas por Pierre Desrey e publicadas em 1515, pode-se notar a suposta existência, na França, de 1. 700. 000 torres de sino, o que determinaria a população do país em algo por volta de 600 milhões de habitantes. Este dado fantástico e fantasmagórico, foi repetido ao longo dos séculos XIV, XV, XVI. Outros escritores falaram em números ao redor de 112 milhões, etc.

Com esse “conhecimento”, impossível o controle efetivo do território e da população. “Uma verdadeira política fiscal tornava-se impossível. Os impostos, não podendo ser aplicados com o conhecimento das coisas, ameaçava ser gravemente injusto, ou com um rendimento muito inferior ao esperado. Os dois defeitos podiam cruelmente coexistir”. (21). A busca de um crescimento na arrecadação dos impostos e na modernização fiscal provocou o incentivo da estatística. Este movimento tem um marco relevante na publicação do livro de Jacques Coeur, Cálculo ou enumeração do valor dos ganhos do reino de França; relatórios e instruções para administrar o estado e a casa do rei e todo o reino. Título longo, próprio á época, mas preciso. Com semelhante procedimento, as incertezas orçamentárias começavam a receber alguma luz.

Com as guerras religiosas e as devidas à concorrência dos estados pelo domínio territorial, os avanços da arte bélica que incluiam novas tecnologias custosas, os governantes viram-se na necessidade urgente de aumentar seus recursos. Já Filipe o belo buscou, por volta de 1302, aumentar as disponibilidades monetárias do seu país. A taxação do clero, por ele, produziu graves rupturas com a Igreja, gerando mesmo a Bula Unam Sanctam, onde o papa proclamou-se superior ao mando secular em matérias religiosas e políticas. Mas Filipe foi além, pois confiscou bens dos judeus (1306), suprimiu a Ordem dos Templários e ficou com os seus bens, tentou taxar o comércio de modo mais rigoroso, e chegou a taxar os senhores feudais. Instituiu-se no intervalo o pagamento de somas ao governo para que indivíduos fugissem do serviço militar, a venda do acesso à nobreza.

Um traço muito curioso e ainda hoje atual, é que quase todas as medidas acima, impostas por Filipe, foram proclamadas provisórias, e o rei prometeu não mantê-las….Contra aquelas atitudes, a Assembléia dos três estados se esforça por entravar, comenta Reynié, o ardor fiscalista dos soberanos. Nada conseguem, “os impostos provisórios tornam-se permanentes”…Do século 15 ao 17, os impostos crescerão e se multiplicarão.

Esse desenvolvimento, ainda segundo Reynié, é favorecido pela reorganização administrativa. Com o uso generalizado dos números arábicos, no século XV, surge a oportunidade do cálculo rápido e mais fácil. A partir de 1539, o registro dos atos torna-se obrigatório. Anota-se os batismos, com sua hora e seu tempo. Com Henrique III, os registros se abrem para as mortes e casamentos. O poder dispões agora, diz Reynié, de imensos livros que trazem o nome, a idade, a qualidade e o número dos súditos. “A preocupação estatística atinge todos os países, ocupa os espíritos avisados”. O espírito dos registros, se não se confunde com o do Liber status animarum (a Igreja católica tem a função de guardar os registros no reino, até o final do Antigo Regime) compartilha a mesma atitude de desvelar quem são os dirigidos e quais as suas riquezas potenciais ou efetivas.

Como final desse artigo, quero recordar que a história dos séculos 18, 19 e 20 registrou a exacerbação, pelos estados nacionais, do conhecimento o mais exato de suas respectivas sociedades, e das outras as quais eles desejavam vencer na luta política, econômica, ideológica, religiosa. O acréscimo de força atribuído à razão de estado não deixou um instante de se exercer em escala geométrica. Um autor oposto à democracia moderna, que está na fonte das piores ditaduras dos séculos 19 e 20, entretanto, foi o que melhor mostrou o “progresso” da máquina estatal no sentido de assegurar para os seus administradores a plena transparência dos coletivos humanos, dela se aproveitando para a mais bruta repressão coletiva.

Juan Donoso Cortés, no Discurso sobre la dictadura (1849), diz que mais desce o nível da fé em Deus na sociedade, e mais o poder precisa emprestar a onisciência divina, além da onipotência. Chega um dia em que o governo diz: “temos um milhão de braços, mas não bastam. Precisamos mais, precisamos de um milhão de olhos. E tiveram a polícia e com ela um milhão de olhos. Apesar disto (...) o termômetro político e a repressão política deviam subir, porque, apesar de tudo, o termômetro religioso baixava, e subiram. Não bastou aos governos um milhão de braços, não lhes bastou um milhão de olhos. Eles quiseram um milhão de ouvidos, e os tiveram com a centralização administrativa, pela qual vieram parar no governo todas as reclamações e todas as queixas. (...). Mas os governos disseram: não me bastam, para reprimir, um milhão de braços; não me bastam, para reprimir, um milhão de olhos; não me bastam, para reprimir, um milhão de ouvidos; precisamos mais, precisamos ter o privilégio de nos encontrar ao mesmo tempo em todas as partes. E tiveram isto, pois se inventou o telégrafo”. (22) Chegamos hoje à internet, aos meios eletrônicos de busca e controle, além da espionagem dos próprios cidadãos, com uma eficácia que recorda os procedimentos descritos na imaginação que gerou o romance 1984. O fisco como razão de estado impulsiona a perda quase absoluta do espaço individual pela ações comandadas (seja em clima de guerra a países, seja na luta contra o terrorismo) pelos governos poderosos, em detrimento das liberdades e dos direitos humanos.

Trata-se de um labirinto que, vimos, tem início na própria gênese do estado e da igreja modernos. O que apenas tornará mais sombrias as perspectivas do século 21 e seguintes, caso não se consiga diminuir o desejo de tudo ver, ouvir, tocar e reprimir das chamadas autoridades públicas, para as quais o ato de arrecadar impostos e taxas tornou-se mais do que uma segunda natureza.

Notas


Popper, KR: The Open Society and Its Enemies. Princeton University Press (2 v.9.

2) Cassirer, Ernst: The Myth of the State. New Heaven/London, Yale University Press, 1946.

3) Considero que o totalitarismo, em vez de ser uma realidade social e política, não ultrapassou o limite de um projeto de poder. Não houve nunca, na Alemanha, na Itália, na URSS, plena coincidência entre sociedade e estado. As fraturas do interior dos partidos dirigentes, as lutas pelo poder governamental, as resistências religiosas e políticas no interior daqueles países, tudo indica que o programa totalitário, apesar das amostras tremendas que exibiu, não chegou à identidade entre as consciências civís e os donos da máquina partidária. Procuro analisar com mais detalhes este ponto, que me afasta das análises sobre o totalitarismo surgidas nos anos 70 e 80 do século passado em trabalhos publicados sobre o assunto. Cf. sobretudo Roberto Romano, Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo (SP, Ed. Unesp, 1997, 2 ed.) e “O conceito de totalitarismo na América-latina: algumas considerações”, in Dayrell, Elaine Garcindo (Ed.) : América Latina contemporânea: desafios e perspectivas. São Paulo, Edusp/Expressão e Cultura, 1996, pp. 307 e ss. Para uma análise próxima à minha, cf. sobretudo Eliana Dutra: O ardil totalitário. Imaginário político no Brasil doa anos 30. BH, UFRJ/UFMG Ed., 1997.

4) Termo criado por Jean-Pierre Faye, Cf. Théorie du récit, Introduction aux langages totalitaires. Paris, Hermann, 1972. Faye mostra que há uma criculação terminológica e nocional no mundo ideológico. Não raro, um conceito com origem na “esquerda” passa a ser usado na “direita” e vice-versa. O fenômeno é muito importante para se analisar as supostas “quebras” de programas de partidos situados nos vários setores da vida política. Antes de aceder ao mando, não raro, o sentido das palavras de ordem já foi modificado tendo em vista a adequação ao campo tido como adversário. São bases que preparam alianças surpreendentes, como a que ocorreu entre a URSS e a Alemanha nazista no pretenso pacto de não-agressão entre a Union soviética et Alemanha nazista em 23 de agosto de 1939.

5)McCormick, John P.: Carl Schmitt's Critique of Liberalism Against Politics as Technology , Cambridge University Press Due/Published September 1999.

6) “Do ponto de vista da sociologia, o estado moderno é uma ´empresa´com o mesmo título de uma fábrica. Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E também deste modo se acha condicionada de maneira homogêna a relação do mando (Herrschafttsverhältnis) no interior da empresa”. Cf. Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidiert Auflage, Túbingen , J.C.B. Mohr, 1972, p. 825. A separação ( Trennung)entre os meios de administração e o seu operador, tanto na empresa quanto no estado, define a burocracia que opera sine ira et studio, maquinal e hierarquicamente. Este fenômeno, Weber também o nota na Igreja Católica, a qual, com o dogma da infalibilidade do Papa (1870) teria, na verdade, dado início efetivo à expropriação radical dos meios de salvação, que não mais estaria no poder dos bispos e se concentrariam na grande “empresa” da Curia romana. Importa que o carisma passa a ser da própria instituição religiosa. No estado, o maquinismo segue a lógica do cálculo, sem que a sua marcha possa receber modificações políticas. É deste desencanto que Weber partilha e legou aos seus herdeiros de “esquerda” ou “direita”, como Lukacs ou Schmitt. Este último, com enorme importância em autores estratégicos do chamado “neo” liberalismo, como F. Hayeck.

7)A bibliografia sobre este ponto é imensa. Cf. sobretudo Georges Gusdorf, Fondements du savoir romantique, Paris, Payot, 1982. Também Starobinski, Jean: Action et réaction, Vie et aventures d´un couple. Paris, Seuil, 1999. Mas desde longa data o tema vem sendo analisado pela literatura especializada. Cf. o livro até hoje fundamental de Coker, F.W. : Organismic Theories of the State. Nineteenth Century Interpretation of the State as Organism or as Person. NY, Columbia University, 1910. Publiquei alguns escritos sobre o assunto. Entre eles, Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo (SP, Ed. Unesp, 2 ed. 1997) e Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Guanabara Koogan, 1984, esgotado). Deste último livro, cf. sobretudo “A fantasmagoria orgânica”.

8)“Uma vez que ambos, mecanismo e organicismo (…) exigem incluir tudo em seu escopo, nenhum dos dois pode deter-se enquanto não dissolver o arquétipo do outro. Em consequência, como o mecanicista extremo declara que os organismos são máquinas de ordem máxima, também o organicista extremado, no seu contra-ataque filosófico, mantém que as coisas físicas e seus processos são apenas formas muito rudimentares de organismo”. M.H. Abrams: The Mirror and the Lamp. Romantic theory and critical tradition. London, Oxford university press, 1971, p. 186.
9) Cf. Denis Diderot . “Notes écrites de la main d´un souverain a la marge de Tacite ou Principes politiques des souverains”. “Il n ´y a point de scéleratesse à laquelle cette politique (a razão de Estado) ne conduisit”. In Diderot, Oeuvres, T.III, Politique (L. Versini Ed., Paris, Robert Laffont, 1995, p. 173. O ataque de Diderot contra Frederico é direto nesta passagem. Aquele soberano, na Histoire de mon temps, obra em que se aplica a justificar sua prática na direção do estado, distingue entre a moral comum, válida para todos os particulares e o dever moral do príncipe de viver para o bem de seu povo e desobedecer, se preciso, os mandamentos da moral pessoal. Sobre este passo, ainda é cheio de atualidade o comentário de F. Meinecke em seu clásscico sobre a razão de Estado. Uso a tradução francesa de M. Chevalier: L´Idée de la raison d´´Etat dans l ´histoire des temps modernes. Paris, Droz, 1973, p. 337.

10) Uma pequena contribuição para todo este debate, apresentei em em “A fantasmagoria orgânica” em Corpo e Cristal. Marx romântico. RJ, Guanabara Koogan, 1985.

11) Discuto este ponto em “A transparência democrática” inserido na minha coletânea O Caldeirão de Medéia. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2001.

12) Giovanni Macchia, in Breviario dei Politici (atribuido ao Cardeal Mazzarino). Milano, Rizzoli, 1981, p. XVI.

13) A Bula Clericis laicos de 1296 foi escrita para proibir a taxação do clero pelos reis, causando uma luta intensa entre a Curia Romana e Eduardo I da Inglaterra, que precisava de recursos para os serviços do Estado. Pode-se dizer que esta luta trouxe, in nuce, os problemas que terminaram na Reforma inglêsa, com Henrique VIII. Já a Bula Unam Sanctam (1302) que define o poder “superior” do Papa em todos os assuntos, espirituais e políticos, atngiu, além de Eduardo I, também Filipe IV da França, o qual proibiu a exportação de recursos advindos das isenções do clero para Roma. Como resultado primeiro deste conflito, o rei frances chegou a prender o Papa em seu castelo por alguns dias. Deste modo, a busca dos recursos, da parte dos dois poderes políticos europeus, os Estados nacionais nascentes e a Igreja, levou à sua ruptura intermitente. Mas ambos precisavam saber onde estavam os mencionados recursos, e como deles tomar posse. Daí, a crescente política de se pesquisar, com ajuda dos saberes científicos, o “corpo doente” da sociedade. Cf. Bettenson, H. : Documents of the Christian Church. London, Oxford University Press, 1947, pp. 159 e ss.

14) Em Coriolano, Shakespeare explora ao maximo as bases e as consequências da metáfora de Menenius Agrippa, mostrando a tragédia da aristocracia diante do estado que dispensa os heroísmos pessoais e, no mesmo tempo, controla as turbas populares.

15) Analisei estes pontos no prefácio que redigi ao texto magistral de Lutero. Cf. Da liberdade do cristão, Martinho Lutero (São Paulo, Unesp Ed., 1998.). Também discuti longamente o problema em Brasil: Igreja contra Estado (São Paulo, Kayrós Ed. 1979).


16) A mais correta análise deste ponto é feita por François Dagognet, no capítulo sobre a sociografia de seu livro Philosophie de l´image (Paris, Vrin, 1984), a partir da página 200. Tudo o que avanço, a partir de agora, sobre este passo, encontra-se naquele texto citado.

17) Dagognet, op. cit. p. 202. “The baptism, the Christian name in the baptismal register ("the book of life"), the praying in the oral and reading traditions, focus the deep cultural-transmitting elements in the pastoral source materials. On that basis the rest of the sources relies concerning the other sacraments (the Confirmation/Chrism, Confession, Communion, Marriage and Extreme unction) as well as concerning the pastoral Parish records. These Parish records have different names in different traditions, but they are organized in the same way in genealogical family patterns. Thus the Catholic "Liber Status Animarum" correspond to the Protestant "Soul Registers", and to the famous Swedish/Finnish Parish examination records (husförhörslängder). These records compress the richest information of all those registers. In them you can follow a person or a family during all kind of changes over time in the family, social and migration patterns”. Cf o estudo de E. Johansson : “Baptizing them, teaching them. A key to the pastoral codes and the roots of the European population records” in
Umeå University : The Research Archive (http://194.198.128.222/svar/eu/dig/adi/pers/joeg.htm).

(18) In Lazzeri, Christian e Dominique Reynié : La raison d´état : politique et rationalité. Paris, PUF, 1992, pp. 43 e ss.

(19) Les six livres de la république, VI, citado por Reynié, p. 44).

(20) N. Montand, Le miroir des François, cit. por Reynié, p. 44).

(21) Reynié, op. cit. p. 46.

(22) in Obras Completas de Donoso Cortés, Madrid, BAC, 1970, v. 2, p. 318.