domingo, 22 de março de 2009

É bom ler pessoas que sabem protestar e como protestar.

A Inconstitucionalidade da Extensão do Foro Privilegiado

            Emmanuel José Peres Netto*

Com efeito, a Lei Federal n. 10.628, de 24 de dezembro de 2002, sancionada no apagar das luzes da Administração Federal passada, é o mais recente exemplo da péssima produção legiferante do Poder Legislativo Federal, haja vista estar eivada de flagrantes inconstitucionalidades, tanto formais quanto materiais.

Além desse aspecto, não se deve olvidar que a função teleológica da lei mencionada representou o mais duro golpe desferido contra o combate à corrupção no Brasil, que se iniciou de maneira mais contundente a partir de 1988, com a Carta Magna. Nesse sentido, a nova lei representa retrocesso histórico em relação, sobretudo, à Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92).

Apenas para ilustrar o quão importante para um Estado é facilitar ao máximo o combate a corrupção, miremos o exemplo que nos é dado pela China do Século XI, (entre os anos 1000 a 1100 d.c.), em trecho retirado da Obra Luzes no Oriente, da série História em Revista, da TIME-LIFE livros, publicado no Brasil por Editora Abril, em capítulo intitulado Império Ilustrado Chinês:

      “... Tal como seus predecessores imperiais, os Song procuraram garantir o alto padrão ético de seus servidores públicos e institucionalizaram essa preocupação através de censores e encarregados de queixas oficiais. Esses vigilantes morais tinham acesso a todos os níveis de administração , inclusive os mais alôs. O Censorado estava de olho em subornos, fraudes e outras formas de corrupção e tinha poderes para levar a Juízo os acusados. O Departamento de Reclamações vigiava o próprio imperador, examinando a probidade de sua conduta e de seus decretos; tinha o direito de censurar um soberano instável e fazer voltar editos impróprios para um debate mais profundo antes da promulgação Os reclamadores eram especialmente poderosos no início do período Song, e talvez não seja coincidência o fato de que a época esteve isenta da influência corruptora dos eunucos, concubinas e favoritos, traço marcante da corte chinesa em outros tempos menos vigilantes.”(p. 29)

Cerca de dez séculos depois, aqui no Brasil, antes mesmo da aprovação final da Lei 10.628/02, diversas foram as respeitáveis vozes que contra o seu projeto se insurgiram (Projeto de Lei 6.295/02, do Deputado Bonifácio de Andrada do PSDB/MG). Veja-se as doutas opiniões, extraídas da publicação CONAMP EM REVISTA, n. 01, out/dez 2002, verbis:

Hugo Nigro Mazzilli, (título: PRIVILÉGIO PARA JULGAR CORRUPTOS), p. 31:

      “..Em 1999, o STF cancelou sua Súmula 394, e a, partir de então, ao deixarem suas funções públicas, as ex-autoridades voltam a ser pessoas comuns, podendo ser julgadas como quaisquer outras, pelo juiz da Comarca, e não apenas pelos mais altos tribunais do pais.

      De lá para cá, entretanto, tem surgido constantes tentativas de reverter esse quadro e ampliar privilégios. Não é preciso dizer que esses esforços são patrocinados pelos saudosistas do sistema anterior...

      ...Não nos parece seja esse o melhor caminho numa democracia que deva se pautar pela igualdade de todos perante a lei, se distinções indevidas ou privilégios...”

Roberto Romano (Título: DESAFORO PRIVILEGIADO), p. 30:

      “..Se os dirigentes usam artifícios legais para fugir da igualdade e usurpam o poder soberano, eles diminuem a majestade do Estado e negam a universal força de constrangimento legítimo. Quando os Administradores agem assim ´o grande Estado se dissolve, formando-se um outro no seu interior, composto só pelos membros do governo, e que é para o resto do povo apenas seu senhor e seu tirano (Do abuso do governo e sua inclinação para degenerar)´...”

Dalmo de Abreu Dallari (Título: PRIVILÉGIOS ANTIDEMOCRÁTICOS), p. 26/28:

      “..Tudo isso deve ser lembrado agora, para barrar a pretensão de se criar no Brasil uma nova categoria de lordes. Por absurdo que pareça, isso é o que está sendo proposto através de um projeto de lei sustentado por parlamentares que apóiam o Governo Federal. Embora seja escandalosamente inconstitucional, esse projeto, que é o de número 6295/02, foi, estranhamente , aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de deputados, onde se supõe que haja conhecedores da Constituição....

      ....Obviamente, o que se pretende é a criação de um privilégio para cidadãos comuns, uma prerrogativa de ex-funcionários, criando-se uma espécie de cidadania de primeira classe. Além de ser ilógico e injusto o estabelecimento desse privilégio só pelo fato de que alguém exerceu ma função pública , aquele projeto de lei é inconstitucional porque a Constituição estabelece expressamente a competência dos tribunais superiores e só por meio de emenda constitucional isso poderá ser modificado...

      ...A par dessa evidente inconstitucionalidade, o privilégio que se quer conceder a certas pessoas, pelo fato de terem exercido certas funções públicas, contraria também o art. 5º da Constituição, onde se estabelece que ´todos são iguais perante a lei´ ...”

Como visto, desde o seu nascedouro, a Lei 10.628/02, que alguém, com muita propriedade, já alcunhou de “leizinha”, vem causando forte comoção no meio jurídico, na opinião pública e sobretudo no seio do Ministério Público, que já vem se mobilizando há algum tempo e não mede esforços no sentido de restaurar a possibilidade de que os agentes públicos ímprobos sejam fiscalizados e acionados judicialmente pelos diversos órgãos de execução dos diversos Ministérios Públicos pelo Brasil inteiro.

A Lei 10.628/2002 deu nova redação ao § 1º, do art. 84, do CPP, nos seguintes termos::

"Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.

§ 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

§ 2o A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o."

Na realidade, o cerne da inconstitucionalidade da Lei acima transcrita está justamente em seu parágrafo primeiro.

É que através do § 1º acrescentado ao art. 84 do Diploma Processual Penal em vigor, o legislador ordinário regulamentou matéria que tem sede Constitucional, pela via legal inapropriada, ou seja, a lei ordinária, ao invés de Emenda Constitucional.

Nesse sentido, calha transcrever ipsis litteris, as razões expendidas na ADIN 2797 que a CONAMP (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) ajuizou contra a Lei em referência antes referida:

      Com esses dispositivos, o legislador ordinário arvorou-se em Poder Constituinte e acrescentou mais uma competência originária ao rol exaustivo de competência de cada tribunal , ale de se arvorar, desastradamente, em intérprete maior da Constituição.

      Com efeito, é cediço que constitui tradição vetusta do ordenamento jurídico pátrio que a repartição da competência jurisdicional, máxime da competência originária para processo e julgamento de crimes comuns e de responsabilidade, é fixada na Constituição da República, de forma expressa e exaustiva, vedada qualquer interpretação extensiva.

      Se assim é com relação ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores, aos tribunais regionais federais e aos juízes federais, também o é com relação aos tribunais estaduais, cuja competência também há de ser fixada em sede constitucional estadual, segundo expresso mandamento da Constituição Federal, litteris:

      Art. 125. Os Estados organizarão a sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

      § 1º A competência dos tribunais será definida na constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.

      Ora, definir é por limites e, se os limites da competência dos tribunais estão no texto constitucional, quer federal quer estadual, não pode o legislador ordinário ultrapassá-los, acrescentando nova competência ao rol exaustivo posto na Constituição, côo se poder constituinte fosse...

      ... Não pode, pois, a lei ordinária, como o Código de Processo Penal, regular matéria que só pode ter sede constitucional.”

De efeito, nenhuma das Constituições Estaduais no Brasil contemplam o Foro privilegiado do Tribunal de Justiça para ex-ocupantes de cargos públicos, mormente o de PREFEITO MUNICIPAL. Desse modo, qualquer mudança na situação acima exposta dependeria de Emenda à Constituição Estadual, não sendo uma lei ordinária federal a via legislativa adequada, dentro do processo legislativo brasileiro, para implantar tal modificação.

Vale dizer, a competência do Tribunal de Justiça por prerrogativa de função deve ser regulamentada pelo Constituinte Estadual e não pelo legislador ordinário federal. Idêntico entendimento é aplicável em relação á responsabilização civil por improbidade administrativa para ocupante do cargo de Prefeito.

Nesse sentido, importante ressaltar o recente julgado da 9ª Câmara de Direito Público de Férias do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgado relatado pelo Desembargador Antonio Rulli, no qual, em votação unânime, foi reconhecida a inconstitucionalidade da Lei 10.628, considerando ainda que o processo por improbidade deve permanecer na primeira instância.

Por fim, resta palmar que diante de tão nebulosos quadro no combate ao administrador ímprobo dentro da sociedade brasileira, uma vez que é inegável a inclinação dos poderes Legislativo e Executivo em obstaculizar ao máximo as ações judiciais que visem responsabilizar os maus administradores pelos seus atos nocivos ao patrimônio público e à coletividade, sobreleva-se a responsabilidade do Poder Judiciário, em sua função de guardião da justiça, vez que torna-se o último baluarte a quem pode recorrer a sociedade, para não se frustrar a expectativa popular de que os agentes ímprobos sejam julgados em primeira instância e efetivamente punidos, se ficar comprovada a sua responsabilidade.


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Promotor de Justiça/MA