05/01/2010 - 06h20
"Brilhante" para quem, José Sarney?
"Nada pode resumir melhor a atual situação de total distanciamento entre a percepção da elite política e a da sociedade brasileira do que essa frase do presidente do Senado"
Dita já na semana do Natal, ao fazer um balanço das atividades do Senado em 2009, o senador José Sarney (PMDB-AP) acabou cunhando a frase do ano. Disse Sarney: “O ano de 2009 no Senado terminou brilhantemente”. Nada pode resumir melhor a atual situação de total distanciamento entre a percepção da elite política e a da sociedade brasileira do que essa frase de Sarney. Como é que um ano em que, na ótica da sociedade, o Congresso jogou a ética no lixo pode terminar “brilhantemente”? O que aponta para uma mudança de fato no comportamento político brasileiro para 2010 que possa, ao menos, nos fazer concluir que o Congresso aprendeu realmente com os escândalos que surgiram e vai se corrigir? Que ação praticada nos últimos dias do ano de 2009 dá alguma indicação de que a sociedade ensaia voltar às boas com seus representantes políticos para que se possa concluir que um ano que começou complicado, como Sarney reconhece, terminou “brilhantemente”? Não, presidente Sarney, apesar dos números e das estatísticas, o ano político não terminou “brilhantemente”. A não ser para aqueles que, por fazerem parte da festa, nunca deixaram de julgá-lo brilhante.
Estamos aí diante, então, do grande drama. Há alguns anos, fiz uma entrevista com o escritor Carlos Heitor Cony para o Correio Braziliense. Nessa entrevista, Cony dizia que já não tinha a menor crença na democracia representativa. Sem se sentir obrigado a apresentar uma alternativa melhor, ele simplesmente dizia que algo tinha acontecido na velocidade das mudanças ocorridas nos últimos anos na sociedade (com o advento da internet, do noticiário em tempo real, das redes sociais, etc) que tinha patrocinado de vez o divórcio das pessoas e de seus representantes políticos. Apesar de eleitos por nós, os políticos passaram a formar uma casta que já não se preocupa conosco e vive à parte de nós. É por isso que Sarney consegue enxergar algo de brilhante aonde nós não vemos absolutamente nada.
Em primeiro lugar, as deformações do sistema fazem com que os políticos eleitos não sejam exatamente aqueles que nós realmente escolheríamos. Nas grandes votações, para presidente ou para os demais cargos executivos, ainda é possível enxergar alguma lógica no voto do eleitor. Mesmo que a escolha se revele depois errada, o pensamento por trás delas é perceptível: o eleitor elegeu Fernando Collor em 1989, por exemplo, movido pelo sentimento de total renovação que o fim da ditadura militar ensejava; votou em Lula em 2002 porque já tinha experimentado todas as demais combinações mais conservadoras e se frustrado com elas, especialmente no que dizia respeito ao cuidado com o trato do dinheiro público. No voto para o Legislativo, principalmente para deputado, essa lógica não aparece. Primeiro, porque o voto proporcional faz com que o eleito não seja necessariamente aquele nome em que o eleitor votou. É um sistema complicado, que acaba colaborando para o descompromisso do cidadão para com esse voto (quase ninguém lembra em quem votou para deputado). Segundo, porque a possibilidade de eleições seguidas formou uma casta de políticos e filhos de políticos. Numa sociedade que despreza essa atividade, ninguém quer ou se sente apto para entrar nesse jogo além desses profissionais de eleições e as suas famílias. Mesmo que queira, terá que aceitar as regras e condições estabelecidas pelas castas. As opções, portanto, são eles, e ponto final.
Então, certas de que já sabem o caminho das urnas, seguras de que têm os esquemas necessários para se eleger, essas castas políticas passam a atuar para si. Começa a importar menos para elas o sentimento da sociedade. Como costuma acontecer com qualquer outra corporação fechada, também a corporação política começa a ter uma percepção particular da realidade. Assim é que ela vê desfechos brilhantes para um ano em que revelou, como nunca, seus defeitos e privilégios.
É difícil imaginar como se vai sair dessa encalacrada. Como mostra a frase de Sarney, não se deve contar com a elite política para isso. Eles estão felizes, satisfeitos. O caminho provavelmente vai se dar mesmo pelo aprofundamento desse distanciamento e das tensões que virão disso. Com a perplexidade e com a indignação que uma frase como a de Sarney provoca. Se tivermos paciência para insistir na democracia, vamos achar o caminho. Porque é a democracia que permite expor de forma clara esse distanciamento entre a sociedade e a sua política. É ela que pode aprofundar essas tensões. E que acaba levando essa elite a, por bem ou por mal, modificar seu comportamento e se abrir para novas demandas e conceitos. Com a democracia, a gente provoca essa elite mais ou menos como quem cutuca um elefante com um palito de dentes. Demora, mas um dia o elefante se mexe.